Sempre que uma nova crise eclode entre Israel e territórios destinados ao futuro Estado palestino, lembro-me de um especialista em nacionalismo que certa vez escreveu numa rede social que, se não fosse o crescente antissemitismo na Europa desde o século XIX, as pressões para a criação de um Estado judeu teriam sido menores. Dentro da lógica da autodeterminação dos povos, um território e laços culturais em tese lastreados em relações consanguíneas bastaria para reivindicar soberania. Considerando que essas premissas ainda satisfazem as condições para construir um Estado-nação, a pergunta que fica é como lidar com as minorias que, por vontade própria e/ou falta de receptividade dos demais concidadãos, mantém-se como um grupo à parte da maioria.
Na teoria política contemporânea, a noção de nacionalismo cívico, fundamentada na adesão a valores da coletividade sem que isso implique em abandonar raízes ancestrais, parecia ser a resposta mais adequada para tal dilema. Porém, se fosse fácil implementar uma cidadania que, para além de carteiras de identidade e passaportes, independe da origem étnico-linguística-racial-religiosa dos indivíduos, ninguém ousaria, por exemplo, defender a solução de dois Estados para mitigar as tensões entre israelenses e árabes palestinos.
Estados plurinacionais — isto é, em que mais de um grupo cultural possui direito à cidadania — até funcionam por um tempo sob mão de ferro, como foi o caso da antiga Iugoslávia. Sob a democracia, há sempre o receio por parte dos diversos grupos que integram esse tipo de entidade política que determinada maioria étnico-racial, linguística e/ou religiosa, esmague o outro lado caso extremistas cheguem ao poder. Isso para não falar no surgimento de movimentos de libertação nacional mesmo em casos inequívocos de respeito aos direitos de minorias, como é o caso do separatismo catalão numa Espanha democrática e da pressão pela independência da Escócia num Reino Unido com grande descentralização administrativa e implementação de políticas multiculturais.
Na prática, todo Estado soberano ancora sua noção de nacionalidade num grupo cultural, majoritário ou não, cuja narrativa de identidade nacional prevalece sobre as demais. Exploro essa questão em mais detalhes no livro Shaping Nations and Markets, publicado pela Routledge e lançado nesta segunda-feira (16/10) em evento no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP). Nesse sentido, a armadilha da identidade — negada por liberais — é inevitável.
Não por outra razão talvez é que Alemanha e França proibiram protestos pró-Palestina no contexto da guerra que Israel declarou ao Hamas numa reação ao terrorismo praticado pelo grupo contra cidadãos daquele país. Também é pela mesma razão que lamentavelmente criminosos decidiram repetir os nazistas e estão marcando com a estrela de Davi residências de Berlim habitadas por judeus. A mesma lógica está por trás do resultado vergonhoso do referendo da Austrália que negou provisões constitucionais específicas à população aborígene do país.
A proposta previa reconhecer os povos aborígenes e das ilhas do Estreito de Torres com um órgão consultivo indígena, ao qual caberia aconselhar o parlamento sobre assuntos relativos à comunidade. Mais de 60% dos eleitores que compareceram às urnas votaram “não” no último sábado. Talvez seja a última expressão da onda populista-nacionalista anti-minoria, haja vista que no Canadá e na Nova Zelândia — outras nações de matriz colonial anglo-saxã — a reconciliação entre descendentes de colonizadores e povos indígenas já aconteceu.
No Brasil, o ódio a minorias hoje reside nas tentativas de limitação do acesso dos indígenas ao direito à terra, na oposição ao reconhecimento das desigualdades entre brancos e negros, na visão antinordestina muito presente no complexo Sul-Sudeste, como bem demonstrado pela discriminação sofrida por um frentista em Curitiba. Com a extrema-direita religiosa alinhada a Israel e setores da esquerda empregando o antissionismo para disfarçar antissemitismo, infelizmente não deve tardar a testemunharmos a desumanização de outros grupos por aqui com a chancela de forças políticas oficiais.
A noção de que uma determinada identidade sempre ganha centralidade na narrativa que sustenta concepções dominantes de nacionalismo está mais evidente do que era o caso desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Nesse contexto, apenas aqueles que representam o mainstream de um Estado-nação têm direitos individuais plenos na prática, inclusive a liberdade de manifestação, limitando, na prática, o alcance da democracia liberal.
O nacionalismo cívico parece ter sido uma simples utopia em meio ao tribalismo que insiste em se manifestar em meio a sociedades complexas. Selvagens, porém, sempre são os outros, insistem aqueles para quem o identitarismo é sempre manifestação das minorias. Universal é a perspectiva dos grupos dominantes. Todavia, falta combinar com aqueles postos à margem da cidadania.