Pesquisa feita pelo Observatório de Saúde na Infância traduz em números uma tragédia que muitos ainda resistem a admitir: o aumento da fome no país. O trabalho mostra que no ano passado ocorreram 113 internações de menores de um ano por desnutrição a cada 100 mil nascidos. É a pior taxa dos últimos 14 anos, apontam os dados, revelados pelo jornal O Estado de S. Paulo.
“Essa é a ponta do iceberg”, avalia o pesquisador em políticas de saúde Renato Tasca. “As internações dão uma mostra de casos mais graves. Mas quantos não têm acesso a um serviço de saúde?”, completa. Há ainda crianças que, mesmo em um estado aparentemente menos grave, terão de conviver com as consequências da falta de alimentação adequada. “São inúmeras as doenças relacionadas à desnutrição. E com dramáticos reflexos para o desenvolvimento infantil”, diz o pesquisador.
O avanço da insegurança alimentar está longe de ser uma novidade. Relatório da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), divulgado há três meses, mostra que mais de 61,3 milhões de brasileiros tiveram, em algum momento, de reduzir a quantidade e qualidade dos alimentos. E deste grupo 15,4 milhões ficaram sem comida e passaram fome por um dia ou mais.
Feito a partir de dados de 2019 a 2021, o relatório da FAO estampou ainda uma piora expressiva em relação ao período 2014 a 2016, quando a insegurança atingia 37,5 milhões de brasileiros.
O relatório da FAO não é o único a apontar o avanço do número de brasileiros que não sabem ao certo se vão ter o que comer na próxima refeição. E todas as pesquisas são um retrato do que é fácil de se ver pelas ruas do país.
Mas os dados não foram suficientes, por exemplo, para convencer o economista e presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Erik Alencar de Figueiredo.
Em um trabalho publicado em agosto, ele argumentou que, se de fato houvesse um aumento de fome no país, haveria um choque de internações por doenças ligadas à desnutrição. Não levou em consideração o fato de que os efeitos da fome não são imediatos. Mas eles chegam.
E os dados reunidos pelo observatório estão aí para mostrar que, sim, eles chegaram. Não é preciso dado de internações para saber que o impacto é sentido não apenas por menores de um ano. “A privação de comida, a falta de nutrientes é avassaladora para a saúde”, afirma Tasca.
Embora para crianças os efeitos sejam mais agudos, nem sempre são facilmente identificados. E é fácil entender as razões. As vulnerabilidades se somam. A falta de comida muitas vezes se associa à falta de acesso ao saneamento, por exemplo. “Num primeiro momento de atendimento, nem sempre a desnutrição é atribuída como causa”, diz o pesquisador.
Além da tragédia diária de não ter acesso a um direito básico, a insegurança alimentar, mesmo que superada, tem potencial para deixar a sociedade ainda mais adoecida. É preciso comida, tratamento e cuidado, sobretudo para crianças menores de cinco anos. “As consequências não serão resolvidas rapidamente. Fruto da desigualdade, o problema também requer envolvimento da sociedade”, diz Tasca.
A desnutrição certamente vai demandar mais do Sistema Único de Saúde (SUS). Também é indispensável que profissionais estejam atentos para notificar problemas relacionados à desnutrição. Quanto mais dados, mais difícil negar o óbvio.