Multinacionais norte-americanas que atuam no Brasil devem ser as maiores interessadas na antecipação das regras de preços de transferência previstas na MP 1152/22. Segundo especialistas em tributação internacional, o recurso, que consta em uma instrução normativa publicada recentemente, pode ser um caminho para que as companhias voltem a se creditar, nos Estados Unidos, pelo imposto pago no Brasil. Não há certeza, porém, que a alteração garantirá a tomada de créditos.
A opção antecipada poderá ser um caminho a ser seguido também por empresas com altos dispêndios com royalties ou que já usam o padrão da OCDE em outros países. As demais, segundo tributaristas, devem optar por aguardar a conversão em lei da MP para evitar aumento de carga tributária e se preparar para a elevação da complexidade acarretada pelas novas regras.
A possibilidade de antecipação consta na IN RFB 2.132/23, publicada em edição extra do Diário Oficial na última sexta (24/2). Por meio da norma, a Receita Federal permite que os contribuintes optem por utilizar as regras de preço de transferência constantes na MP 1152/22 ainda em 2023.
Segundo o texto da IN, os contribuintes interessados terão entre 1º e 30 de setembro para fazer a opção pelas novas regras, e a escolha será irretratável. A norma também traz capítulos sobre dedução de royalties e sobre os ajustes da base de cálculo do IRPJ e CSLL.
As mudanças no preço de transferência impactarão empresas localizadas no Brasil que realizarem operações com partes relacionadas no exterior, como coligadas ou controladas. A MP 1152, que ainda está pendente de análise pelo Congresso, acaba com o atual sistema de preços de transferência brasileiro, baseado em margens fixas, e aproxima o país às regras utilizadas pelos integrantes da OCDE. Os países do grupo utilizam o princípio arm´s lenght, que prevê que as condições das operações realizadas entre partes relacionadas devem estar de acordo com as condições que seriam praticadas entre partes não relacionadas em transações comparáveis.
A MP impacta no recolhimento do IRPJ e da CSLL, e deve evitar situações de dupla tributação ou de dupla não tributação. Além disso, as mudanças nas regras de preço de transferência são obrigatórias caso o Brasil opte por entrar na OCDE.
Levando em consideração a prorrogação do prazo, o Congresso tem até 1º de junho para analisar a MP 1152, que recebeu 108 emendas. O texto atual da medida estipula a entrada em vigor das novas regras a partir de 1º de janeiro de 2024. A redação, porém, prevê a possibilidade de opção antecipada.
Empresas norte-americanas
O possível interesse das companhias norte-americanas pela antecipação das novas regras vem de uma alteração promovida no final de 2021 pelo governo dos Estados Unidos. Por conta da falta de semelhança entre o Imposto de Renda brasileiro e o norte-americano, as empresas foram impossibilitadas de realizar o creditamento, no país, do tributo pago no Brasil.
Desde 2022, a alteração no cálculo dos preços de transferência interessa principalmente às empresas norte-americanas com atuação no Brasil, que veem na utilização do princípio arm’s lenght uma possibilidade de volta do creditamento.
“[A mudança] importa para a empresa americana que quer aproveitar, nos Estados Unidos, como crédito, o imposto que foi pago no Brasil. Importa sobretudo à empresa americana que tem uma subsidiária no Brasil, porque a subsidiária paga Imposto de Renda no Brasil, e a empresa americana quer usar esse Imposto de Renda como crédito para abater o imposto americano”, exemplifica a advogada Ana Monguilod, sócia do i2a Advogados e diretora da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF).
O reconhecimento, pelos Estados Unidos, de que o sistema tributário brasileiro é similar ao adotado por lá evitaria uma elevação da carga tributária. Porém, existem dúvidas se as mudanças nas regras de preço de transferência seriam suficientes para tanto.
Luis Flávio Neto, sócio do KLA Advogados e professor de tributação internacional do IBDT, destaca que os Estados Unidos têm um conceito de fonte diferente do Brasil, por exemplo. “Em algumas hipóteses o problema não está totalmente solucionado, mas com certeza já vai resolver o problema de muitas empresas”, afirma.
Royalties
Outro grupo de empresas que poderia ter interesse em antecipar as novas regras seria o de companhias que pagam royalties. Isso porque, por conta de peculiaridades da legislação brasileira, há uma grande limitação na dedução dos valores da base de cálculo do IRPJ.
“Nós identificamos um padrão de pessoas [jurídicas] interessadas [na antecipação], que seriam empresas que têm intangíveis, que pagam marca, patente, ou licença de software”, define Victor Polizelli, sócio do KLA Advogados e professor de tributação internacional do IBDT.
Entram nesse grupo as empresas do área de tecnologia, mas não só. Um representante de uma multinacional desta área lembra que, com a digitalização da economia, eletrodomésticos, carros e outros produtos possuem tecnologias que são protegidas por patentes e direitos autorais.
De acordo com especialistas, o principal interesse dessas companhias seria “trazer” a discussão sobre royalties para dentro dos preços de transferência, se afastando da restritiva legislação brasileira. Hoje, a Receita limita a dedução de valores referentes a royalties a até 5% da receita líquida de venda do produto. A título de exemplo, de acordo com a Portaria MF 436/58, a dedução de royalties pelo uso de marcas sem utilização de patente, processo ou fórmula de fabricação é de apenas 1%.
Já a advogada Bruna Camargo Ferrari, sócia do Lobo de Rizzo Advogados e Professora da Pós-Graduação da FGV Direito SP, aponta que também poderiam se interessar pela antecipação das regras as companhias que, pelas suas estruturas, fazem os cálculos para recolhimento dos tributos em outros países com base no princípio arm’s length, mas precisam fazer ajustes para chegar aos valores devidos no Brasil. “Principalmente importadoras de grandes multinacionais seguem a política de preços de transferência que vem de fora, seguindo o arm’s length. Por conta da regra brasileira elas acabam tendo muitos ajustes”, diz.
A tributarista, porém, acredita que a maioria das empresas vai optar por não antecipar as novas regras. A escolha, segundo ela, pode ser pautada pelo temor de aumento de carga tributária e pela complexidade das novas regras, que vão demandar mudanças internas nas companhias.
Há, ainda, que ser colocado na balança o fato de que a tramitação da MP 1152 sequer começou no Congresso. Em meio a uma grande quantidade de MPs tributárias esperando por apreciação, a medida sobre preço de transferência é provavelmente a mais complexa.
Para os especialistas consultados pelo JOTA, a edição da IN dá um sinal de que o tema é prioridade do governo, que atuará pela aprovação do tema. É um bom sinal, em meio a um mar de incertezas sobre o assunto.