Falências e recuperações judiciais de grandes empresas multinacionais vem ganhando força no mundo dos negócios, com reflexos econômicos, jurídicos e até mesmo sociais nos mais diversos pontos do globo especialmente nos locais onde estas empresas mantém ou mantinham negócios.
Dois setores econômicos foram particularmente afetados pela pandemia de COVID-19, nos quais se verificou uma multiplicidade de pedidos de falências e de recuperação: o setor de turismo e o de transporte aéreo. As restrições de circulação de pessoas geraram umasubstancial queda de demanda destes setores e, consequentemente, de sua receita, tendo que recorrer a pedidos de falência ou de recuperação judicial.
Nestes setores altamente internacionalizados, nos quais empresas atuam em diversos países, com credores e devedores plurilocalizados, com casos até mesmo de difícil identificação do seu verdadeiro centro de negócios. Entretanto, muitas vezes se antecipando a pedidos oriundos dos seus credores, ou até mesmo como um mecanismo de estratégia empresarial, um número cada vez maior de multinacionais tem postulado a proteção judicial em países onde entendem ser possível obter uma melhor proteção de seus interesses.
Com frequência, noticiam-se casos de pedidos de falências e de recuperações nos EUA, lastreados nas disposições do United States Bankruptcy Code, país onde supostamente a proteção à empresa em crise seria mais favorável, ou onde as regras comerciais seriam mais claras, somado, ainda, ao fato de se tratar do centro financeiro mundial.
Em tais procedimentos são incluídos os mais diversos tipos de créditos privados, mas também públicos, com pretensões relativas à questões alfandegárias e atos regulatórios, entre outras, o que nem sempre se mostra vantajoso ou, até mesmo, viável para os credores e dos devedores destas empresas.
Inevitavelmente, teremos um conflito de jurisdições, e temas como soberania e extraterritorialidade surgem no debate, já que a escolha de uma determinada jurisdição pode facilitar ou dificultar a cobrança de créditos da empresa em crise; por outro lado, questiona-se também se as disposições de um juízo falimentar podem operar efeitos em outras jurisdições, em especial quando se fala de créditos soberanos dos Estados ou de aspectos regulatórios que possam ser afetados pelas falências ou recuperações judiciais estrangeiras.
Ciente da necessidade de um aperfeiçoamento da legislação brasileira, buscou-se, então parâmetros normativos internacionais, notadamente inspirado nas normas da Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional (UNCITRAL). Tratam-se de leis-modelo derivadas de uma das faces desta comissão das Nações Unidas para o desenvolvimento do direito comercial internacional, fornecendo aos Estados uma estrutura jurídica pré-projetada e pensada no aperfeiçoamento das normas internas de cada um destes.
A lei-modelo sobre insolvência transnacional, de 1997, objetiva auxiliar os Estados a inserirem em sua legislação de recuperação e falências uma estrutura jurídica moderna capaz de lidar de forma mais efetiva com os processos de insolvência transfronteiriços, por meio da possibilidade e incentivo a cooperação e coordenação entre as diferentes jurisdições envolvidas, em vez de tentar a unificação da lei substantiva de insolvência. Respeitam-se, assim, as diferenças entre as leis processuais nacionais.
O legislador brasileiro buscou dar tratamento a estas questões – ou, ao menos, a algumas delas – inserindo capítulo próprio sobre a INSOLVÊNCIA TRANSNACIONAL na Lei de Falências. Assim, por meio da redação conferida pela Lei nº 14.112/2020, que acrescentou os artigos 163-A a 197-A, na Leis nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e alterou as Leis nº 10.522, de 19 de julho de 2002, e nº 8.929, de 22 de agosto de 1994, o legislador atualizou as normas nacionais referentes à recuperação judicial, à recuperação extrajudicial e à falência do empresário e da sociedade empresária internacionalizadas, trazendo maior segurança jurídica com vistas a um ambiente de negócios mais favorável.
Estes dispositivos autorizam um verdadeiro diálogo de jurisdições, por meio de uma espécie de auxílio judicial direto, através do qual os credores e devedores localizados em diferentes países podem obter decisões ou buscar validar decisões em outra jurisdição, esteja no Brasil a sede do juízo falimentar/recuperando principal, esteja no exterior essa sede.
É claro que as pessoas interessadas no processo podem optar por aceitar a jurisdição estrangeira e lá comparecerem perante o juízo falimentar ou da recuperação, valendo-se de advogados habilitados naquela jurisdição. Sem embargo, é preciso ponderar que tal decisão implica altos custos, além dos diferentes riscos que são muitas vezes difíceis de serem aferidos por estrangeiros ao litigarem em uma jurisdição com a qual não estão familiarizados. O comparecimento voluntário em juízo estrangeiro, ademais, pode implicar renúncia a outras jurisdições, inclusive aquela onde o interessado tem sua sede ou domicílio.
Afora estas opções, é possível que o interessado nacional possa simplesmente cobrar seus créditos na jurisdição nacional, optando por não reconhecer a jurisdição estrangeira, nem se valer dos novos dispositivos da Lei nº 14.112/2020, mormente se a empresa falida ou em recuperação no exterior tiver bens, direitos ou mesmo filiais constituídas sob a égide da legislação brasileira. Neste caso, caberá a empresa que pediu falência ou recuperação judicial no exterior, postular ao Judiciário brasileiro a incidência da Lei nº 14.112/2020.
Conquanto a Constituição da República estabeleça como direito fundamental o livre acesso à jurisdição, determinando que nenhuma ameaça ou lesão à direito será subtraída da apreciação judicial, não existe obrigação de um nacional brasileiro, ou mesmo de um estrangeiro com negócios no Brasil, se sujeitar à jurisdição estrangeira.
Isso somente ocorre se voluntariamente aceitar os efeitos das decisões estrangeiras, ou por meio da homologação de decisões estrangeiras no Brasil pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou, ainda, através de cooperação jurídica internacional, dentre as quais agora se agregam os dispositivos da Lei nº 14.112/2020.
Trata-se de lei inovadora e atenta ao processo de globalização da economia e dos negócios, permitindo um diálogo jurisdicional direto entre o juízo falimentar brasileiro e o estrangeiro, com requisitos e formalidades próprias essenciais para o reconhecimento de decisões e troca de informações internacionais.
Por ser uma inovação legislativa sem precedentes no Direito pátrio, apenas a maturação da jurisprudência brasileira permitirá avaliar os reais reflexos no cotidiano econômico das empresas, dos credores e, também, dos próprios operadores do direito brasileiros.
As disposições são muito inovadoras e demandarão muita interpretação, e terão reflexos diferentes a depender do ordenamento jurídico estrangeiro com o qual dialoguem, conforme sejam mais permeáveis ou não à aceitação de decisões brasileiras.