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Ele nunca quis negociar

Bolsonaro e seu grupo adotam estratégia de manter a sociedade dividida para garantir a coesão de seu grupo de apoio

Bolsonaro
Bolsonaro participa de protesto pró intervenção militar, em Brasília Foto: Reprodução / CNN

No Brasil, o real debate político — e de certa forma o ideológico — está circunscrito ao mundo da política e ao ambiente acadêmico. A maior parte das pessoas, notadamente nas redes sociais, não está interessada em escutar argumentos do outro lado. Lembra mais uma discussão sobre paixão futebolística do que debate entre pessoas de uma mesma sociedade em busca de um caminho para melhorar a vida da maioria. Na sociedade, não estamos falando e aprofundando temas importantes como o papel do Estado, como promover o crescimento econômico, como tratar da enorme dívida que já temos e está aumentando, como montar estratégias para a criação de empregos, como cuidar da parcela mais vulnerável de nossa população e, finalmente, como fazer tudo isto em dentro do regime democrático.

Há momentos, no debate público, em que a paixão é exuberante e isso é um sinal positivo de sociedades que exercessem a plenitude de sua liberdade. Esses são os momentos eleitorais, em que há disputa pela hegemonia para conduzir o Estado. É quando a polarização é natural, praticamente inevitável.]

Terminada a eleição, espera-se que o vitorioso faça um discurso para toda a Nação, apelando para a união da sociedade em busca de um bem comum, reconhecendo e aceitando a linha vitoriosa no pleito.

Já se disse por aqui que as nações prosperam com a crença de que suas instituições – em especial a Presidência da República – possam prever calamidades, deter seu impacto e restaurar a estabilidade. Mas não é isso o que estamos vendo no Brasil.

Depois de 2018, não há esse discurso pela serenidade. Tenho a impressão de que há um mecanismo automático, uma espécie de termostato, permanentemente ligado, que, ao perceber que o ambiente se esfria e se acalma, ele liga para esquentar, radicalizar e polarizar.

Pode ser um sinal dos tempos – um zeitgeist — mas pode ser, também, uma estratégia do presidente Bolsonaro para se diferenciar do que chamou de “velha política”. A velha política não é outra senão aquela onde se negocia interesses existentes na sociedade para encontrar um ponto de equilíbrio ponderado.

Seria de se esperar que, no surgimento de uma contingência importante para a sociedade aparecesse, naturalmente, a mais relevante virtude de um político que, segundo Aristóteles, é a prudência. Isso faria o governante apelar para união nacional contra a ameaça comum, assumindo o papel de liderança, que lhe cabe.

A contingência chegou, na forma da pandemia da Covid-19, a mais dramática ameaça à população mundial nos últimos 100 anos, mas a esperada atitude de busca de união nacional contra o novo coronavírus não surgiu.

A virtude da prudência, esperada de quem foi eleito para liderar a Nação, deu lugar ao vício da irresponsabilidade, materializado pela negação do problema, pela desinformação permanente em relação a sua dimensão e mais claramente pela identificação de um medicamento – a hidroxicloroquina — como solução milagrosa para a cura, mesmo sem qualquer comprovação científica.

Por que essa decisão de escolher o vício à virtude, quando essa poderia inclusive ajudá-lo a encontrar a desejada harmonia entre os Poderes da República e até facilitar sua pretensão de reeleição em 2022?

O debate entre os estrategistas digitais, o PhD em ciências políticas Felipe Nunes e o jornalista, Iago Bolívar, no webinar organizado pelo Jota em 15 de abril, “A politização da pandemia nas redes” nos ajuda a entender parte do problema.

O presidente Bolsonaro elegeu-se em um cenário crescente de polarização que vinha desde 2013, com a divulgação de escândalos de corrupção, o processo da Lava Jato e o impeachment da presidente Dilma Rousseff. O grande descrédito na política, associado a uma recessão sem precedentes e a um desemprego gigantesco, estimulou a desagregação da sociedade ente “nós e eles”, curiosamente proposto à esquerda por Lula e então adotado, à direita, por Bolsonaro.

Eleito sem base político-partidária, mas com muita militância popular – notadamente nas redes sociais – Bolsonaro e seu grupo adotam a estratégia de manter a sociedade politicamente dividida para garantir a coesão e a militância de seu grupo de apoio, este muito mais parecido com um fã-clube do que com uma agremiação política.

Para que mantenha a sua base de apoio ativa e mobilizada, Bolsonaro tem que manter o debate polarizado e acalorado. O contrário seria valer-se das instituições, notadamente as que controlam o Estado, como o Congresso Nacional e o Poder Judiciário. O problema é que o Governo Federal não tem base forte no Congresso Nacional e nem interlocução fácil no Poder Judiciário. Além do mais, sua base de apoio considera falta de atitude e submissão à “velha política” negociar no Congresso e buscar o Judiciário para dirimir questões legais.

A linha seguida pelo Palácio do Planalto, durante a crise, pode ser uma estratégia vencedora para um período eleitoral, mas durante esta pandemia poderá ter um custo social impagável. O debate das narrativas pode tudo, menos vencer “sua excelência os fatos”, como disse no século passado o dr. Ulysses Guimarães.

Os fatos serão determinados por nossa capacidade de enfrentar a Covid-19 e retomar o desenvolvimento econômico e social. O que esperamos – qualquer um de nós – é que as lideranças da Nação consigam adotar estratégias que minimizem o conjunto dos danos. Todos temos medo que a morte alcance nossas famílias e temos medo que nossos empregos, nossos negócios, nossas poupanças sejam dizimados. Alguns de nós também temem pela saúde do sistema democrático de freios e contrapesos.

A liderança nacional precisa ter a virtude de somar esforços para enfrentar a totalidade dessa crise usando o máximo de nossa potencialidade. E esse máximo envolve trazer para o lado da solução a energia da sociedade civil e do setor produtivo.

O enfrentamento de uma ameaça dessa proporção impõe uma liderança que busque a confiança da maior parte da sociedade, estimule a solidariedade social, diminua o calor das disputas políticas e busque a coesão social, a paz e a serenidade para a solução de problemas complexos e, finalmente, ajude a construir estabilidade nas relações internacionais, que são de enorme utilidade e importância.

Independente da cacofonia das redes sociais, os atuais governos, federal, estaduais e municipais, serão avaliados pela população a partir de suas atitudes durante a epidemia. As avaliações das vidas perdidas e dos danos sofridos, comparados com outras experiências internacionais, serão definitivas.

Tomando emprestado a expressão do investidor norte-americano Warren Buffet, após a crise bancária de 2008, quando a maré baixar é que vamos ver quem está nu.

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