
É legítimo que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se frustre com a resistência do Banco Central em reduzir a meta da Selic – um sentimento que, ao que parece, é partilhado pelo seu ministério –, mas não está claro que a publicização dessas críticas pela pessoa do presidente da República seja a forma mais apropriada de vocalizar a demanda do governo por juros menores e buscar um meio-termo junto a Roberto Campos Neto – o banqueiro central indicado por Jair Bolsonaro cujo mandato, salvo renúncia ou exoneração, dura até o fim de 2024.
Da mesma forma, confundir o debate momentâneo sobre a alta da Selic com uma discussão sobre a autonomia do BC tem o efeito de produzir ruídos desnecessários e motivar especulação financeira – tudo isso num momento em que a equipe econômica já se encontra devidamente ocupada com a elaboração de uma nova âncora fiscal, que deve substituir o teto de gastos, e com a reforma tributária. Nesse sentido, muitas críticas feitas à recente postura do presidente são razoáveis e até procedentes.
Dito isso, o debate atual, ao se concentrar na tensão entre Lula e Campos Neto, parece ignorar questões maiores e de maior consequência para a política monetária. No atrito que se apresenta, duas coisas ficam evidenciadas: primeiro, que setores relevantes da política e da opinião pública ainda não assimilaram inteiramente os sentidos e as implicações políticas de um Banco Central formalmente autônomo; segundo, que o arcabouço jurídico que sustenta a autonomia do BC ainda não foi capaz de comportar as expectativas dos diversos atores envolvidos no planejamento e na execução da política monetária.
A Lei Complementar 179/21 concedeu ao BC autonomia operacional para, por meio da manipulação da taxa Selic, perseguir metas de inflação estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) – colegiado integrado pelo presidente da autoridade monetária, pelo ministro da Fazenda e pela ministra do Planejamento e Orçamento. Na prática, o que se tem é um regime no qual os objetivos da política monetária são fixados pelo governo e perseguidos pelo BC.
A separação entre meios e fins da gestão da moeda parece ter dado a alguns atores e vozes influentes a ideia de que a atuação do BC é puramente técnica, e que a autonomia formal é um expediente destinado a separar dois reinos incompatíveis – o técnico e o político. Isso, no entanto, não é correto: a justificativa para se conceder autonomia ao BC não é insulá-lo da política, mas criar uma separação rígida entre o ciclo político-eleitoral, de curto prazo, e o planejamento macroeconômico que permite a estabilidade de preços. Não se trata, portanto, de deixar a técnica aos técnicos, mas de criar condições para que a autoridade monetária (que é, sim, integrada e dirigida por políticos) se curve ao cálculo de longo prazo. Dito isso, a autonomia do BC não exime a autoridade de ser convocada a prestar contas sobre as razões e consequências de sua condução da política monetária, bem como de eventual responsabilização política pela ineficiência das medidas por ela adotadas.
O que nos leva ao imbróglio atual: Lula é o primeiro presidente da República que é forçado a lidar com um BC conduzido por um presidente que não indicou. Apesar disso, os instrumentos disponíveis para a prestação de contas e responsabilização dos dirigentes do BC são essencialmente os mesmos que estavam em vigor desde o Decreto 3.088/1999, que impôs o regime de metas de inflação: o Comitê de Política Monetária (Copom) deve publicar as atas de suas sessões periódicas, nas quais decide sobre a taxa da Selic, e o banqueiro central deve escrever um relatório público ao ministro da Fazenda, justificando eventual descumprimento da meta fixada pelo CMN. Ambos os expedientes têm conteúdo essencialmente técnico, e seu papel principal é garantir a percepção de racionalidade e previsibilidade da política monetária perante o mercado financeiro, mas têm pouca utilidade para garantir sua accountability política.
Nos contextos nos quais o BC atuou com autonomia de fato, o presidente da República era uma peça-chave no diálogo institucional e na coordenação entre a autoridade monetária e a equipe econômica, pois ocupava papel equidistante entre os envolvidos (todos eles com a estatura de ministros de Estado) e tinha o poder de exonerar qualquer um deles. Nesse contexto, um cenário de ingovernabilidade macroeconômica era improvável, já que o banqueiro central, ainda que autônomo, sabia que sua demissão era um cenário possível. No arranjo institucional provido pela LC 179/21, contudo, o presidente deixou de ocupar o papel natural de articulação, na medida que a exoneração passou a ser tratada como uma hipótese não apenas remota, mas de altíssimo custo político, por exigir o apoio da maioria absoluta do Congresso Nacional. Por outro lado, a nova lei nada fez para garantir a coordenação no contexto do novo arranjo.
Nesse sentido, a insatisfação de Lula pode ser lida também como fruto da falta de coordenação entre a política monetária e as políticas fiscal e econômica – algo tornado possível pela inadequação dos mecanismos de accountability que hoje estão à disposição do governo para vocalizar suas razões e sensibilizar a autoridade monetária. Dissuadir o presidente do BC com dinâmicas de cenoura e porrete – isolá-lo nas indicações para as diretorias do órgão ou deixar de reconduzi-lo após o fim do seu mandato – é parte do jogo e pode ter sua utilidade, mas não substitui a coordenação e o diálogo institucional permanente. Diante do aparente desinteresse de Campos Neto em trabalhar de forma próxima à equipe econômica, Lula optou por escancarar a divergência, levando o impasse à arena pública. A estratégia, ruidosa como é, busca dar uma solução a um problema real.
Por um lado, o episódio revela uma verdade previsível: há grande diferença entre a autonomia garantida pela promessa de um presidente (que tem a prerrogativa constitucional de quebrá-la) e a que se dá por força de lei, e é importante evitar a confusão entre autonomia do BC e ausência de coordenação entre a política monetária e os demais ramos da política macroeconômica. Por outro, mostra que, no bojo da LC 179/21, há muito que se evoluir não apenas no diálogo da autoridade monetária com o Poder Executivo, mas também da comunicação da política monetária ao Legislativo (hoje, o Poder em melhores condições para exercer o papel de fiscalização) e à sociedade. Se isso não ocorrer, estaremos condenados a novos episódios de ingovernabilidade macroeconômica.