Voltou à pauta da Câmara dos Deputados o projeto de lei nº 3515/2015 que, a pretexto do nobre objetivo de combater o superendividamento dos consumidores, dentre outras medidas atinge restritivamente o modelo atual do parcelado lojista, também conhecido como parcelado sem juros.
De forma simplificada, o parcelado lojista é modalidade de venda com cartão de crédito em que o lojista financia o consumidor, de forma independente, a partir de sua própria política comercial. Permite que o consumidor alongue o prazo de pagamento do produto ou serviço adquirido, em parcelas iguais e mensais, sem que recorra a um financiamento bancário. Usualmente o lojista absorve esse custo e compensa esse alongamento de prazo antecipando os valores de seus recebíveis no cartão.
Essa engenharia financeira surgiu nos anos 1980, como solução para a limitada oferta de crédito pessoal existente diante da hiperinflação. O modelo subsiste até hoje, já que, a despeito da maior estabilidade financeira do país, os juros ao consumidor continuam muito elevados. Visto por muitos como peculiaridade brasileira, a verdade é que nos últimos anos modelos semelhantes têm sido replicados ao redor do mundo por fintechs inovadoras que buscam oferecer aos consumidores alternativas ao crédito bancário.
Segundo os dados do Banco Central relativos a fevereiro de 2021, quando recorre ao crédito pessoal não consignado ou ao rotativo do cartão de crédito para financiar suas compras o brasileiro paga, em média, 7,3% e 12% ao mês, respectivamente. O cheque especial, que teve teto máximo estabelecido recentemente pelo Banco Central, cobrou, em média, cerca de 6,5% ao mês. Já o lojista, para antecipar seus recebíveis, paga em média menos de 1% ao mês.
Essa diferença nas taxas de juros de cada modalidade de crédito não reflete apenas o risco de cada operação. Reflete, também, o grau de concorrência de cada mercado. Enquanto os mercados de crédito pessoal, rotativo do cartão de crédito e cheque especial seguem dominados pelos tradicionais players do sistema financeiro, o parcelado lojista se expandiu com a revolução provocada pelas “maquininhas”, mercado cada dia mais competitivo, desde a edição da Lei 12.865, em 2013.
Dessa forma, muitos dos que defendem o fim do parcelado lojista estão, na verdade, em batalha contra a elevação da concorrência e da inovação no setor financeiro. E utilizam dois argumentos principais.
O primeiro: o emissor dos cartões de crédito suportaria o risco da operação sem, no entanto, receber nada por isso. Tal argumento ignora que é o próprio emissor que define o limite de crédito de cada cartão, gerenciando o grau de risco que deseja suportar. Esse risco, a propósito, parece controlado. Segundo dados da ABECS, entidade que representa as empresas de cartão de crédito, 9 entre 10 consumidores pagam integralmente suas faturas de cartão de crédito.
Mas há algo ainda mais importante: os emissores são, sim, devidamente remunerados por seus serviços. Remuneram-se tanto pelas anuidades pagas pelos titulares dos cartões quanto pela chamada tarifa de intercâmbio. Essa tarifa corresponde a cerca de dois terços da taxa paga pelos lojistas para realizar uma transação com cartão de crédito e seu valor é majorado nas transações parceladas, de modo a remunerar o capital alocado nas operações. Fosse o risco insuportável, ou não remunerado, emissores não ofertariam a opção, como atualmente fazem.
O segundo argumento diz respeito aos supostos custos ao consumidor (e ao seu grau de transparência) que poderiam, inclusive, incentivar o superendividamento. A ponderação merece atenção, dada a relevância da proteção do consumidor para o desenvolvimento do sistema financeiro. No entanto, nada indica que propostas puramente proibitivas ou restritivas atacam eficazmente o problema. Ao contrário, acentuam-no: restariam ao consumidor apenas as modalidades de crédito mais caras, elevando exponencialmente – e não reduzindo – o risco de endividamento.
Não à toa, entidades e representantes dos setores de comércio e de serviços, da economia digital e do direito do consumidor têm defendido a manutenção do parcelado lojista, aliada a um investimento massivo em educação financeira para a população, que evite situações de superendividamento em qualquer contexto. Resta evidente que propostas visando à proibição ou a significativa restrição do parcelado sem juros não merecem prosperar.
Do ponto de vista econômico, os efeitos da mudança seriam desastrosos, já que o parcelado lojista responde por cerca de 50% do total de operações com cartões de crédito no país. Imaginem a proibição imediata desse volume de transações, considerando que o Brasil teve em 2020 seu pior desempenho econômico em 25 anos. Em contexto já deprimido pela pandemia, a proibição do parcelado lojista estrangularia em definitivo o varejo brasileiro ou empurraria necessariamente os consumidores para modalidades tradicionais (e mais caras) de crédito.
Do ponto de vista jurídico, por fim, a extinção ou a sensível restrição do parcelado lojista vai na contramão de princípios constitucionais fundamentais.
Atinge a defesa do consumidor – que perde opção de compra e é incentivado a modalidades mais custosas de crédito – e a livre concorrência – ao limitar as opções do varejo e ao regredir no movimento de ampliação da concorrência no sistema financeiro. A proibição ofende, ainda, a proporcionalidade: é inadequada, pois não atinge seu (suposto) objetivo de prevenir o superendividamento, e é desproporcional, ao provocar efeitos perversos para uma imensa gama de lojistas e consumidores, beneficiando apenas os que ofertam crédito mais caro.
É nesse sentindo, aliás, a recente jurisprudência do STF, que indica que normas proibitivas ou demasiadamente restritivas são inconstitucionais quando favorecem apenas os incumbentes e contribuem para potencial reserva de mercado, em detrimento da livre iniciativa e da livre concorrência.
Finalmente, destaque-se que recente pesquisa do Datafolha apontou que 3/4 da população costuma parcelar suas compras e que, para 80% dos consumidores, a possibilidade de parcelar o pagamento junto ao lojista é determinante na escolha do vendedor. Seus resultados indicam que a proibição afetaria milhões de brasileiros, e prejudicaria de forma mais significativa pessoas das classes C, D e E, mulheres e consumidores das regiões Norte e Nordeste.
Restringir o direito de competir de lojistas, retirar opções de consumo, tornar mais cara a aquisição de bens e serviços pela população – especialmente dos com menos acesso a bens e serviços – e retroceder no processo de ampliação da concorrência de serviços financeiros não parece bom caminho a se trilhar. Diante de seus efeitos deletérios, a proibição ou a restrição significativa do parcelado lojista é, hoje, proposta deslocada da realidade. Deve ser abandonada em favor de medidas que incentivem, racional e adequadamente, a transparência e a educação financeira da população.