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Confiança e conhecimento em tempos difíceis

O que a ciência nos diz é: nós não temos o direito de acreditar em qualquer coisa de acordo com nossa vontade

Imagem do microscópio eletrônico mostra o coronavírus isolado de um paciente nos EUA. As partículas do vírus são mostradas emergindo da superfície das células cultivadas em laboratório. Crédito: NIAID-RML

Não é apenas a Covid-19 que é uma novidade aterradora. A proliferação geométrica, febril e descontrolada de informações, relatos, testemunhos, memes, vídeos, guias e  instruções sobre um mesmo assunto alcançou uma magnitude inédita. Com os cidadãos encarcerados em suas residências, quase um planeta inteiro, munido com seus smartphones, computadores e televisores, acompanha com incredulidade aquilo que antes só havia imaginado em produções distópicas e filmes B saídos de mentes perturbadas.

O mais grave é que, a despeito da experiência trágica de alguns, ainda há seríssimos conflitos de opiniões que podem decidir a sorte de milhões de pessoas. E agora, entre nós, no Brasil, há poucos dias, plantou-se o incontornável germe da dúvida: o que é melhor fazer neste momento de pandemia, o radical isolamento social horizontal ou arregaçar as mangas e voltar ao trabalho para que a economia não entre em colapso? Atônitos, nos perguntamos: o que deve ser feito? Em que e quem acreditar para orientar nossas escolhas?

Antes dessa pandemia se tornar um perigo real que alcança todas as classes sociais e quase todas as nações, o mundo vinha mergulhando nas sombras de discursos pregando a desconfiança em relação a intelectuais, a universidades, a jornalistas e, principalmente, à ciência. Tudo começou há poucos anos com os embates sobre aquecimento global, passou pelos efeitos da vacinação, invadiu todas as esferas da cultura, até alcançar questionamentos acerca do ensino de biologia e o formato da Terra.

A ideia de pós-verdade significa simplesmente isso: a verdade, os fatos, as evidências disponíveis não são relevantes para que pessoas, grupos e nações formem suas crenças sobre questões cruciais. Em um movimento que culminou com as eleições americanas e com o Brexit, parece que pessoas passaram a aceitar que todos os discursos são igualmente válidos e, consequentemente, cada um teria o direito de escolher no que acreditar de acordo com suas inclinações privadas, ideologias, religiões, humor…

Nessa linha, narrativas atribuindo a pandemia a uma ação deliberada do governo chinês para destruir o capitalismo e dominar o mundo ganham corações e mentes de muitos, inclusive de pessoas com boa formação escolar e (supostamente) bem informadas. Teorias da conspiração escandalosamente absurdas que nunca passaram de piadas de bar são levadas a sério por cada vez mais pessoas, não raro, pautando os debates e guiando decisões de governantes. Ainda que sejam incoerentes, irracionais, grotescas, encontram mentes acolhedoras. Se os fatos não correspondem ao que pensam e ao que acreditam, os fatos é que estão errados.

Algo novo, porém, vem acontecendo nas últimas semanas. Essa proximidade real de uma séria ameaça à vida de milhões por uma doença que não escolhe classe social ou raça levou a uma decisão crucial: estamos obrigados a tomar uma decisão intelectual sobre em quem e no que devemos, individualmente e coletivamente, acreditar. E nesse passo, para nossa grata surpresa, é cada vez mais frequente ouvirmos vozes que dizem: o melhor a fazer nesta situação extrema é acreditar na ciência.

Em que pese a incerteza em relação ao controle da pandemia e de seus efeitos sociais e econômicos, trata-se de uma questão em que não há qualquer espaço para aventuras, apostas, adivinhas, ideologias e simpatias. Por que confiar em cientistas das mais diversas disciplinas e nas autoridades médicas? Seria porque usam guarda-pó branco com a abreviatura “Dr.” antes do nome e ostentam o título “PhD”, no final? Não.

Deve-se confiar na ciência por uma razão elementar: a ciência trabalha com conhecimento. Conhecimento e verdade, embora relacionados, são coisas distintas, pois algo que cientistas afirmam hoje pode perfeitamente ser contestado e revisto por colegas na próxima semana ou em décadas. Até meados do século 20, acreditava-se que o DDT era um eficiente controle de pragas na agricultura. Hoje, graças aos cuidadosos passos da investigação científica, conhecemos seus efeitos devastadores na saúde da população e no meio ambiente, o que fez com que o pesticida fosse banido em quase todo o mundo.

Para ser enquadrado como ciência, é preciso que o conhecimento seja passível de ser desafiado, ou falseável – caso contrário é simples opinião. A verdade joga um papel importante no conhecimento por ser o objetivo final da uma investigação. Porém o que realmente importa é que cientistas procuram usar recursos rigorosos, amplamente testados, publicamente verificáveis, expostos argumentativamente à luz de experimentos e revisões teóricas. O processo de produção de crenças na ciência é de maior confiabilidade por ser aquele que mais facilmente se afasta do erro, mesmo que sem garantias definitivas. É confiável porque os achados são expostos publicamente e cada passo pode ser revisto, contestado, corrigido pelos pares da comunidade. No fundo, o que a ciência nos diz é: nós não temos o direito de acreditar em qualquer coisa de acordo com nossa vontade.

A ciência não é um conjunto arrumado das melhores teorias e respostas, mas um modo de produzir crenças com rigor e com as melhores ferramentas que a mente humana for capaz de produzir. Negar a ciência, nesse sentido, pode significar credulidade ingênua ou má-fé: credulidade se estamos tão imersos nas nossas próprias opiniões ou nas opiniões da nossa tribo que somos incapazes de enxergar aquilo que nega e escapa às nossas crenças de partida; mas também pode ser má-fé, quando agentes distorcem deliberadamente os fatos com a única intenção de mentir a favor de seus interesses. Isso é extremamente grave quando vidas estão em jogo.

Assim como a ciência tem uma legitimidade epistêmica por causa dos seus procedimentos, do mesmo modo, se as autoridades médicas e sanitárias alcançam seus postos por seus méritos acadêmicos, científicos e administrativos e se seus propósitos estão instruídos pelas informações e evidências científicas e técnicas, essas autoridades também são confiáveis. É óbvio que, se uma pessoa está na posição de coordenador de combate à pandemia porque é sobrinho ou amigo do mandatário, ela não é alguém confiável, por melhor que sejam suas intenções.

Entretanto, ainda resta uma pergunta que incomoda aqueles que não pertencem às comunidades científicas ou que não possuem contato direto com as autoridades: como o público mais amplo pode ter acesso às melhores informações, ao conhecimento?

A resposta também é simples: lendo os jornais. É claro que todos sabemos que o jornalismo é conduzido por organizações privadas que também têm interesse econômicos. Embora possamos nos irritar com jornalistas que expressam opiniões que contrariam nossas visões de mundo, é preciso reconhecer que o (bom) jornalismo profissional tem regras para manter sua credibilidade: checagem de fontes, comparação de opiniões divergentes, apuração dos dois lados de um conflito, narrativas fidedignas e obediência aos fatos. Todos esses protocolos criam constrições que tornam o jornalismo muito mais confiável do que os grupos de WhatsApp da família e de amigos. Ademais, o grau de confiabilidade de uma notícia de jornal cresce de acordo com as ações de leitoras e leitores que, ao comparar as diversas fontes e refletir sobre sua consistência, podem reforçar, ou não, a plausibilidade das informações veiculadas. Não por acaso, em meio às incertezas da pandemia, é cada vez maior o número de pessoas que buscam a chancela do jornalismo profissional para se posicionar em relação às opiniões emitidas pelos profetas do momento que abundam nas mídias sociais.

Escrevemos tudo isso para dizer uma coisa simples: de todos os males que esta pandemia nos trará (não queremos nem mesmo pensar no número de vítimas que causará), pode haver algo positivo: as pessoas podem se dar conta de que há uma diferença crucial entre simplesmente acreditar e conhecer por meio de fontes confiáveis. Essa diferença, como vem sendo na história da espécie humana, é uma questão vital. Cientistas e jornalistas profissionais, mais que nunca a humanidade precisa de vocês!

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