Em um momento de guerra na Europa, crise das democracias ocidentais e militarização crescente, o professor Chris Thornhill, da Universidade de Manchester, na Inglaterra, prepara um novo livro sobre o papel de militares em democracias constitucionais. Especialista em Sociologia do Direito e Direito Constitucional Comparado, Thornhill tratará do Brasil, onde a participação de militares no governo bateu recorde na presidência de Jair Bolsonaro – fenômeno que ele chama de militarização vertical.
Recém-chegado ao país para atuar por dois meses como professor-visitante no IDP em Brasília e na Universidade Mackenzie em São Paulo, Thornhill deu uma entrevista ao JOTA sobre os riscos que enxerga para a democracia brasileira.
“As Forças Armadas têm uma proeminência mais forte no Brasil do que na maioria dos países democráticos. As Forças Armadas têm um papel incomum no Brasil. Isso traz alguns perigos”, afirmou Thornhill na entrevista.
Apesar de alertar para os riscos da militarização de regimes constitucionais, Thornhill não culpa a Constituição Federal de 1988 por eventuais problemas gerados por militares.
“Os problemas da Constituição só se tornaram tão destacados por causa da polarização intratável entre grupos sociais”, avalia.
Confira a íntegra da entrevista abaixo.
JOTA: O senhor acha que faz sentido falar em uma internacionalização do direito constitucional?
Chris Thornhill: Até certo ponto, todo direito constitucional é internacional. Pelo menos desde 1945 o desenvolvimento do direito constitucional e do direito internacional estão intimamente ligados. Não é um processo completamente simétrico. No entanto, os processos dominantes que criaram constituições democráticas razoavelmente estáveis foram marcados por uma convergência muito profunda entre o direito constitucional e o direito internacional. Uma crise no direito constitucional é geralmente uma crise no direito internacional. Eu diria que são áreas articuladas.
Mas eu seria cauteloso ao falar em uma internacionalização do direito constitucional. Certamente falaria em uma transnacionalização do direito constitucional. Onde as constituições nacionais funcionam, quando são relativamente bem-sucedidas na geração de princípios democráticos, isso se deve quase invariavelmente à articulação entre a constituição doméstica e o direito internacional.
Quando vemos processos de crise democrática ou crise constitucional, como tendemos a ver no momento, isso também tem a ver com um enfraquecimento da tração que as normas internacionais ganharam dentro da Constituição doméstica.
O senhor avalia que há uma crise democrática ou constitucional acontecendo no Brasil?
Só posso falar como observador. É muito importante evitar o excepcionalismo ao falar do Brasil, porque o Brasil faz parte de um conjunto de governos de diferentes regiões do mundo onde podemos identificar processos de enfraquecimento constitucional.
E quase invariavelmente – na verdade, sem exceção – isso está ligado a uma hostilidade seletiva em relação às normas internacionais. Isso geralmente é direcionado para os direitos humanos, previstos universalmente. Geralmente não é dirigido contra as normas de investimento internacional. Gostaria de dizer que o Brasil faz parte do contexto global.
Mas a questão sobre crise constitucional depende do que você entende por crise. Há claramente problemas constitucionais no Brasil hoje. Acho que é muito cedo para falar de uma crise constitucional completa. Em termos amplos, a Constituição brasileira está exposta a uma pressão considerável, mas está resistindo. A situação governamental não é a ideal, mas isso é um teste constitucional.
Muitos especialistas avaliam que a Constituição do Brasil está sob ataque.
Muitas constituições estão sujeitas à pressão. Mas eu classificaria o Brasil como um Estado com uma Constituição altamente pressionada em que há atores em nível governamental cujo respeito às convenções constitucionais e procedimentos constitucionais não são particularmente elevados.
Mas, do jeito que as coisas estão atualmente, o Brasil ainda é uma ordem constitucional democrática. Quinze anos atrás, eu teria dito a mesma coisa sobre a Rússia. Que a Rússia estava na família das democracias, mas tinha uma constituição que estava sujeita à pressão, mas agora a Rússia não está mais na família das democracias. Por outro lado, o Brasil está claramente operando como uma política democrática, mas tem uma Constituição pressionada.
O senhor vê riscos para a democracia brasileira?
Vejo riscos para as constituições democráticas em muitos países e certamente no Brasil. Estou falando de sistemas jurídicos, de sistemas políticos, que estão sob pressão, mas que ainda funcionam como democracias. Então, não estou falando da Rússia e não estou falando da Venezuela. Vejo algumas características comuns em democracias constitucionais desse tipo. Vejo um ataque muito forte às leis internacionais. Esta é uma característica muito comum em políticas constitucionais que estão sujeitas a estresse. Uma segunda característica comum é o descrédito dos atores judiciais – em casos extremos, incluindo a tentativa de manipulação de nomeações judiciais.
À medida que o desenvolvimento da democracia nas últimas décadas se tornou tão dependente da intersecção entre as normas internacionais e as normas constitucionais domésticas, as instituições judiciais adquiriram um grau muito elevado de autoridade. Em muitos aspectos, instituições judiciais se tornaram as instituições centrais, as organizações centrais, na preservação da democracia. Governantes que desejam atacar sistemas democráticos geralmente miram os tribunais, porque o pessoal empregado nos tribunais pode ser facilmente manipulado e os tribunais geralmente não possuem um grau muito alto de apoio popular. Então, é muito fácil se mobilizar contra os tribunais.
E os tribunais tornaram-se fundamentais para a destruição da democracia. Então, esses dois aspectos no cenário político atual no Brasil podemos encontrar em vários países diferentes, como Reino Unido, Estados Unidos sob Trump e menos sob Biden, Polônia, Índia. A Índia foi, em certos aspectos, o protótipo de todas essas tendências.
O que é específico para os riscos à democracia no Brasil?
Em governos populistas semiautoritários, muitas vezes vemos o que eu chamaria de militarização horizontal da sociedade, quando os conflitos entre grupos sociais se intensificaram. Governos populistas costumam promover a polarização social para gerar o que poderíamos chamar de apoio emocional para suas políticas.
O que é um pouco inusitado no Brasil, e essa pode ser uma das razões pelas quais há especial motivo de alarme, é que a polarização da sociedade se expressa em parte na presença reforçada dos militares na parte executiva do governo. Isso é incomum. Embora possamos observar um processo de militarização também na Índia, essa é uma característica menos fácil de encontrar em outros países que se aproximaram dos limites da democracia constitucional, mas que ainda são democráticos. Acho que há fortes razões culturais e sociais para isso.
Durante a transição para a democracia na década de 1980, os militares do Brasil não foram desacreditados da mesma forma que foram, por exemplo, na Argentina. Os militares mantiveram uma posição que não era inteiramente destituída de influência. Além disso, o fato de que, por diversos motivos no Brasil, os militares têm mais funções. Está ligado de alguma forma ao controle territorial. Está ligado às funções de controle territorial na Amazônia.
Assim, as Forças Armadas têm uma proeminência mais forte no Brasil do que na maioria dos países democráticos. As Forças Armadas têm um papel incomum no Brasil. Isso traz alguns perigos. Há razões políticas, históricas e culturais para isso. Acho que tratar como inteiramente excepcional a política brasileira no momento não é muito útil.
Acho que precisamos ver as coisas em uma perspectiva ampla, principalmente essa questão em torno dos militares. Há razões históricas bem específicas ou razões institucionais e políticas específicas como, por exemplo, pelo fato de o Brasil ter um território imenso, no qual as funções policiais e as funções normais de governo não são totalmente efetivas. Então, é em parte daí que vem a influência militar.
Também vem do fato de que na transição da ditadura militar para a democracia, de 1985 para 1988, os militares não foram tão menosprezados como em outras sociedades que saíram de períodos autoritários. De duas maneiras você pode ver características na política constitucional atualmente que são amplamente semelhantes às de outros países: o ataque ao direito internacional e o ataque às instituições judiciais.
Particularmente com o pano de fundo de que as instituições judiciárias, sob o governo Lula, se tornaram cada vez mais ativistas. Isso é muito típico. Mas o que é incomum é o papel dos militares. Não é completamente único e não é totalmente impossível de explicar por que os militares têm uma função diferente no Brasil de outros lugares
O senhor vê o mesmo grau de influência militar em outros países?
Tudo mudou um pouco com a guerra na Ucrânia. Pelo menos na Europa. Isso se aplica particularmente à Polônia, mas também pode se aplicar a outros países. O conflito na Ucrânia está tendo um impacto muito imprevisível na Polônia. E pode-se começar a observar a militarização do debate político, embora não a mesma presença institucional dos militares que você tem no Brasil. Isso é incomum no Brasil, mas não é completamente sem paralelo.
O que o senhor pensa sobre as tentativas de usar dispositivos constitucionais para justificar a interferência militar, normalmente mencionando o artigo 142?
Essas questões não são apenas constitucionais. Têm também uma dimensão extraconstitucional. As funções de ordem pública no Brasil são particularmente problemáticas. Uma ressalva que faço de forma bastante geral é que a maioria das constituições até a década de 1980 foram criadas sob condições militares. Assim, a relação entre o direito constitucional e os militares é uma questão da mais intensa importância causal.
Na década de 1980, você começou a ver uma tendência em que as constituições foram criadas se afastando dos regimes militares. A posição do Brasil nesse sentido é inusitada porque se você comparar o Brasil com sociedades autoritárias na Europa durante o período da guerra, ou mesmo na América Latina, os militares nunca foram fundamentalmente desacreditados. Então, isso criou uma ambiguidade sobre o papel dos militares.
Podemos encontrar exemplos de outras sociedades ainda democráticas, nas quais a militarização atingiu um nível extraordinariamente alto. Eu diria que a militarização é um fenômeno crescente, mas ocorre de maneiras muito diferentes.
A militarização voltou a se tornar um fenômeno tangível na Europa. Mesmo nos EUA é problemático, não é? O papel vertical dos militares nos EUA não é tão poderoso. Certamente, não se compararia com o papel vertical dos militares no Brasil. No entanto, o potencial para a militarização civil é bastante alto. Não acho que se deva exagerar essas coisas. Não acho que os EUA estejam perto de uma nova Guerra Civil, mas o potencial para a militarização civil está obviamente se tornando maior. Assim, a militarização assume diferentes formas.
Essa militarização está ligada à ascensão de partidos de extrema-direita?
É uma pergunta muito interessante e só posso responder em termos especulativos. Nós realmente não temos dados empíricos tão fortes sobre essa questão. Eu gostaria de fazer uma distinção entre o que poderíamos chamar de militarização vertical, que é quando as unidades militares regulares se envolvem na política, e a militarização civil, que é quando você vê um conflito crescente entre diferentes grupos sociais.
Agora, os dois processos não são totalmente separados um do outro. Normalmente, quando você vê a militarização civil, também vê a militarização vertical, mas não são exatamente a mesma coisa. Eu diria que no Brasil você pode ver claramente os dois.
Na maioria dos países onde podemos observar um enfraquecimento da democracia, tendemos a ver um aumento da militarização civil. Isso geralmente se deve ao enfraquecimento da infraestrutura estatal. Geralmente tem a ver com a redução de gastos com o bem-estar social. Geralmente é devido à polarização entre diferentes regiões e grupos sociais. Isso se tornou um fenômeno bastante difundido em algumas sociedades devido à fragmentação das estruturas de bem-estar social.
Como é possível se recuperar dessa militarização? A Costa Rica é um exemplo?
A resposta na América Latina é muito diferente da resposta na Europa. Isso ocorre porque as pressões militares sobre os estados europeus mudaram agora por causa da situação na Rússia. A resposta na América Latina para mim é bastante clara, que é essencial aumentar a tributação e investir mais em sistemas de bem-estar social.
Duas das sociedades mais obviamente militarizadas da América Latina agora são a Colômbia e o Brasil. Mas eles são militarizados de maneiras completamente diferentes. A Colômbia é um exemplo extremo de militarização horizontal, em que há uma frequente militarização nas relações entre diferentes grupos sociais. Isso inclui o exército regular. No Brasil, a militarização entre diferentes grupos sociais é bastante marcante.
Mas a questão mais essencial é a militarização das estruturas de governo através das funções de policiamento e funções de ordem pública das Forças Armadas, muitas vezes ligadas à consolidação territorial do governo. Em ambos os casos a solução é reforçar a capacidade do Estado, a capacidade institucional do governo. Os militares adquiriram esse papel no Brasil porque há regiões que possuem presença muito tímida do governo. Isso dá aos militares um certo destaque. Na Colômbia, a situação é diferente.
Parte disso também tem a ver com o fato de o governo não ter controle territorial total. No entanto, pelo menos em algumas regiões, o exército regular na Colômbia tem sido historicamente muito fraco, e por muito tempo persistiu uma condição de soberania múltipla em algumas áreas. Mas a solução é a mesma – que é construir a capacidade institucional do governo, o que você só pode fazer aumentando a tributação. Na minha opinião, não há outra maneira de fazer isso.
O senhor fala de uma militarização diferente da que ocorreu na Venezuela, por exemplo.
Como você pode ver, evidentemente, não sou brasileiro. Sou um grande admirador de Lula, pelo menos por suas conquistas passadas. Lula conseguiu conduzir um processo em que construiu a capacidade do Estado de várias maneiras. Mas isso sempre foi muito frágil, porque a estratégia de Lula de fortalecer a capacidade do Estado baseava-se em grande parte em um partido político. E isso significava que, assim que Lula desaparecesse do governo, suas conquistas poderiam ser facilmente desacreditadas por seus adversários. Então, sempre houve um elevado grau de conflito ou conflito potencial embutido nos procedimentos que Lula usou.
O importante é poder ir além do Partido dos Trabalhadores e estabelecer uma coalizão na sociedade que seja capaz de levar adiante o processo de construção de um Estado de bem-estar social. Se você olhar para os estados de bem-estar social bem-sucedidos na Europa, eles raramente foram construídos por um só partido. Geralmente eram construídos por meio de uma coalizão de diferentes partidos.
Na Europa, muitos estados de bem-estar social foram construídos por partidos de direita. A maioria dos sistemas de bem-estar na Europa fazia parte de um consenso social. Parece-me que o problema no Brasil é muito mais que a construção do estado de bem-estar social é providência de só um determinado grupo social. Se você observar todos os sistemas constitucionais do mundo, poucos foram criados e estabilizados sem um estado de bem-estar social. Assim, o estado de bem-estar social e a democracia constitucional são apenas desenvolvidos quando juntos.
A tributação se tornou mais difícil à medida que as perspectivas econômicas pioraram?
A tributação não é um fenômeno abstrato. Às vezes, diferentes elites devem ser cooptadas em apoio às estruturas tributárias. Em última análise, depende do grau de investimento social. Mas a alternativa não é muito atraente. A alternativa é provavelmente uma versão mais extrema do que existe agora.
Políticos, como Bolsonaro, costumam culpar a Constituição brasileira por problemas. Isso é um exemplo de pressão contra a Constituição do Brasil?
Obviamente, você pode ver qual é a minha posição política. Eu era um apoiador muito forte do Partido dos Trabalhadores. Eu destacaria algumas fraquezas na Constituição, mas as fraquezas que vejo na Constituição não são as mesmas identificadas por outros.
Eu diria que a Constituição é muito longa e a distinção entre direito constitucional e política pública não é suficientemente clara. Podem ser introduzidas demasiadas alterações, com muita facilidade. Mas há mais uma questão sobre o Brasil, que só posso levantar provisoriamente neste momento, e não posso falar com grande autoridade sobre isso.
Acho que o sistema político brasileiro não é verdadeiramente um sistema presidencialista. Acho que é um sistema semipresidencialista. E muitos problemas poderiam ser resolvidos se isso fosse reconhecido. Percebo que este é um ponto controverso no momento, especialmente porque alguns defensores do semipresidencialismo estão situados na direita política.
No entanto, a Constituição me parece criar as desvantagens do presidencialismo sem seus benefícios e as desvantagens do semipresidencialismo sem seus benefícios. Se fosse reconhecido que a prática constitucional real é semelhante à de um sistema semipresidencialista, alguns problemas, como a proliferação e a fraca institucionalização dos partidos políticos, poderiam ser mais fáceis de evitar. Mas nem todas as questões podem ser reduzidas a questões constitucionais. Não é como o Chile, onde obviamente havia um problema constitucional.
Quais são os problemas mais urgentes de nossa Constituição?
Em primeiro lugar, as disposições relativas às responsabilidades de ordem pública dos militares deixam tudo muito aberto à interpretação. Eu diria que a função dos militares no Brasil é em parte extraconstitucional.
Se você imaginasse os militares em um ambiente diferente, as disposições constitucionais sobre o papel dos militares na garantia da ordem pública não seriam particularmente significativas. Mas dado um ambiente de ordem pública em que os militares necessariamente têm funções bastante diferentes de outros países, a combinação desses fatores me parece um problema premente. Como mencionado, em segundo lugar, eu estaria interessado em um debate sobre se o presidencialismo realmente captura o sistema de governo.
Este é um debate muito importante, mas provavelmente não é o debate mais urgente agora. Terceiro, eu também estaria interessado em pensar no enraizamento do direito internacional, ou pelo menos dos direitos humanos universais, no sistema jurídico brasileiro. As atuais disposições para litígios com base em direitos humanos universais são bastante restritas, e os procedimentos para litígios perante o Supremo Tribunal Federal são restritivos. Estes me parecem problemas de natureza superior.
No entanto, não tenho certeza se o problema é inteiramente constitucional. Esta é em parte uma questão constitucional e em parte uma questão extraconstitucional. Em algumas sociedades latino-americanas onde o estado de direito não penetrou uniformemente na sociedade, a criação de mecanismos para facilitar o litígio individual pode ser muito eficaz.
Já vi isso na Colômbia e vejo algumas semelhanças entre a Colômbia e o Brasil. Acho que a facilitação do litígio de direitos individuais é particularmente importante como um ajuste estratégico para o sistema constitucional. No geral, não devemos ver todos os problemas como constitucionais. Uma convicção que tenho muito firme é que após a transição para a democracia no Brasil, particularmente depois que Lula chegou ao poder, o Brasil se tornou uma democracia muito avançada.
Portanto, o problema não pode estar simplesmente na Constituição. É um problema social. Eu veria os principais problemas ligados ao fato de que o aprofundamento do estado de bem-estar social que ocorreu sob Lula se baseou em fundamentos rasos. Pode haver cláusulas na Constituição que podem ser utilizadas para enfraquecer a democracia, mas, se houvesse um consenso mais fundamental na sociedade sobre certas áreas de políticas públicas, não faria diferença. Os problemas da Constituição só se tornaram tão destacados por causa da polarização intratável entre grupos sociais.