Enchente no RS

Os desafios da Defesa Civil, por quem dá vida ao sistema

Apesar de fundamental em áreas de risco ou em desastres, sistema sofre com falta de profissionalização e de capacitação

Em Lajeado (RS), Defesa Civil planeja ações contra estragos da enchente / Crédito: Mauricio Tonetto / Palácio Piratini

“Por mais que tu aprenda, que tu faça curso, tu nunca estás preparado para isso. Estou há 10 dias trabalhando direto na linha de frente. Tô fatigado, com sono, mas muito bem de coração por todas as pessoas que ajudei nesses dias. Eu, como servidor municipal da Defesa Civil, me sinto na obrigação, mais do que qualquer voluntário.”

Lindomar Constante já é avô. Tem 13 anos de Defesa Civil de Porto Alegre e conta que passou por muita situação complicada, nada perto do que presencia hoje. Após um dia de resgates, na última sexta-feira (10/5), ele falou à newsletter Por Dentro da Máquina com a voz cansada, mas firme para persistir na missão.

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O servidor público de Porto Alegre faz parte do grupo de 30 integrantes da Defesa Civil do município, 15 por turno. Todos na linha de frente. Ou melhor, em uma ponta da linha. Na outra ponta, tem gente como o Wesley de Almeida Felinto, chefe de gabinete da Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil, em Brasília.

Wesley não está com o corpo submerso, mas fica de olho no celular, imerso em reuniões e ligado na tela do computador. Em meio ao desastre, ele tenta resolver problemas de toda ordem e dar vazão aos pedidos de estrutura e dinheiro que chegam até Brasília.

No caso do Rio Grande do Sul, cerca de 440 municípios decretaram calamidade, dos quais mais de 100 já pediram acesso a verbas federais.

Lindomar e Wesley fazem parte do Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil, um mecanismo pelo qual o poder público, com a participação de União, estados e municípios, se organiza para atuar em 5 fases nas localidades ameaçadas ou afetadas por desastres naturais: prevenção, mitigação, preparação, resposta e reconstrução.

Esse sistema, porém, não é profissionalizado e, muitas vezes, suas atribuições não são claras nem mesmo para quem faz parte dele.

Diagnóstico produzido pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) revela, com base em questionários, entrevistas e respostas de grupos focais de servidores municipais e estaduais, que foram designadas cerca de 100 atribuições diferentes para a Defesa Civil.

Na essência, a função seria a de fazer a gestão de riscos e desastres. Na prática, a Defesa Civil faz de tudo um pouco na hora da emergência, nem sempre nas melhores condições de pessoal e de infraestrutura.

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“A gente faz um trabalho de grão em grão, que o é o possível. Com pouco recurso, sem o material que poderia dar atendimento melhor. São coisas que a gente pede, mas as pessoas dizem: ‘ah, vai ficar parado. Mas olha como é preciso”, conta Lindomar.

Se Lindomar lamenta que não trabalha com jet ski possante, como muitos voluntários que ajudam no resgate têm, Wesley articula o aumento do quadro de analistas administrativos e de engenheiros na sede em Brasília.

Até a semana passada, a Secretaria Nacional de Defesa Civil dispunha de 100 pessoas para o gerenciamento de emergências em todo o país. Agora, porém, uma força-tarefa se materializa para analisar, em até 48 horas, os pedidos de recursos provenientes das áreas afetadas pela enchente.

Na última sexta-feira (10/5), portaria do Ministério da Gestão e da Inovação designou 13 servidores, de diferentes especialidades, para atuar na atual crise.

Esse time volante que passa a contribuir com a Secretaria Nacional de Defesa Civil, órgão vinculado ao Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional, é formado por analistas técnicos em políticas sociais, analistas de infraestrutura e especialistas em financiamento e execução, entre outras especialidades.

Mais gente já foi requisitada, e os nomes devem ser apresentados nos próximos dias. Somente no governo federal, 22 órgãos, além de bancos públicos, têm tarefas relacionadas à enchente no RS.

Além deles, há centenas de servidores anônimos dos estados que devem entrar em cena quando é necessário usar o sistema de resposta.

Eles integram o Gade, Grupo de Apoio a Desastres e muitos estão no Rio Grande do Sul. O time formado por agentes de defesas civis estaduais e municipais, especialistas e voluntários com experiência de, no mínimo, 2 anos em áreas ligadas à gestão de riscos e desastres.

Esses servidores devem contar com capacitação continuada, “por meio da realização de reuniões técnicas mensais, avaliação das operações e capacitações anuais”. Segundo as regras do Gade, essa atuação é considerada “prestação de serviço público relevante” e, por isso, “não será remunerada”.

Profissionalização e capacitação

O cenário de guerra no Rio Grande do Sul abre caminho para expor as principais demandas de servidores que atuam na Defesa Civil de estados e municípios.

Diagnóstico produzido na Pesquisa Municipal em Proteção e Defesa Civil e Fortalecimento da cultura de Gestão de Riscos em Desastres, que integra o Projeto Elos, do Cemaden, entre 2020 e 2021, aponta para a necessidade de profissionalização e capacitação dessa força de trabalho.

Além de discutir a criação de carreiras próprias de coordenador e agente de Defesa Civil, hoje designadas como uma subcategoria da carreira de Bombeiro Militar, estudiosos, como a professora Maria da Glória Bonelli, da UFSCar, ponderam que a profissionalização está associada à capacitação, à compreensão adequada das atividades e à remuneração compatível.

“Pleitear profissionalização não pode ser lido como uma demanda corporativa, mas, sim, como um serviço que se apresenta à sociedade, com sua missão e com sua ética claramente estabelecidas”, afirmou a pesquisadora em seminário virtual do projeto Elos.

A pesquisa do Cemaden, que contou com questionários em 1.993 municípios, 31 entrevistas em profundidade, 10 grupos focais, em 190 cidades, além de outros 5 grupos apenas com integrantes da Defesa Civil em estados e municípios, revela, por exemplo, que 58% dos entrevistados eram servidores efetivos, contra 42% com outros vínculos. Muitos são comissionados.

Por consequência, a pesquisa também mostra um alto índice de rotatividade, com 36% dos entrevistados que estavam na atividade, no máximo, a 6 meses, problema considerado crítico.

No que diz respeito à remuneração, a análise de 51 editais de concursos públicos apontou que há um expressivo número de funcionários da Defesa Civil nos municípios, com curso superior, que recebem até 2 salários mínimos.

Coordenador do Projeto Elos, o pesquisador Victor Marchezini, do Cemaden, explica que a falta de profissionalização dificulta a correta designação de atribuições, com reflexo na capacitação de quadros especializados, inclusive para atuar na prevenção aos desastres.

“A gente não tem uma visão clara sobre quem faz parte da Defesa Civil em todo o Brasil. A Defesa Civil acaba se tornando uma espécie de ‘Severino, quebra-galho’. As pessoas observam o serviço na resposta aos desastres, mas se esquecem que a função principal é a gestão de emergências”, explica Marchezini, que atualmente coordena o Projeto COPE/Fapesp.

No governo federal, servidores da Defesa Civil foram contemplados com a Gratificação Temporária de Proteção e Defesa Civil (GPDEC). Porém, assim como ocorre em outros setores do serviço público, há distorções de remuneração entre servidores com atividades similares, que pertencem a diferentes carreiras.

A pesquisadora Gabriela Lotta, professora da FGV e coordenadora do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB), ressalta que servidores que atuam em áreas como a Defesa Civil, com ou sem remuneração adequada, ou mesmo sem atribuições claramente definidas, são, via de regra, vocacionados à missão de servir.

“São pessoas vocacionadas ao trabalho. Ao mesmo tempo, é um trabalho extremamente difícil. As condições, em geral, são ruins. Faltam recursos, faltam informações e, em geral, os salários são mais baixos. Mesmo assim, atuam com muita capacidade de adaptação, de criatividade e resiliência. Por isso, se as pessoas conseguem lidar bem com isso, elas são muito felizes no trabalho. O problema é quando elas, até por falta de condições, não conseguem exercer a sua vocação na linha de frente”, avalia a pesquisadora.

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