Paridade de gênero

Mulheres em cargos de liderança: presidente da Enap aponta caminhos para a igualdade

“Não dá para esperar quase 100 anos para ter proporção de representação em cargos de liderança”, afirma Betânia Lemos

Betânia Lemos, na campanha #QueroMais, por igualdade de gênero e contra a discriminação / Crédito: Enap

Como capacitar mulheres para reduzir a desigualdade com os homens na ocupação de cargos de liderança no serviço público? Esse é um dos desafios diante de Betânia Lemos, à frente da Escola Nacional de Administração Pública (Enap) desde fevereiro de 2023. Auditora de Finanças e Controle, com doutorado em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a servidora apresenta, nessa entrevista, um arsenal de medidas para furar o chamado “teto de vidro”, que freia a presença feminina, especialmente das mulheres negras, nos postos mais altos da administra pública. Betânia ainda mostra de que forma a paridade de gênero no topo pode impactar positivamente todo o serviço público.

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Presidente, falta muito para que as mulheres disputem em condições de igualdade um posto tão estratégico como o que a senhora ocupa?

Falta muito. Para começar, falta a gente adequar a nossa linguagem. A linguagem diz muito das características do povo. A nossa linguagem é muito machista. Então, eu faço questão de sempre usar presidenta, que é correto gramaticalmente. Na primeira vez que se começou a usar esse termo no feminino, houve até questionamentos. Quando a gente se refere a cargos de executivos, cargos de liderança, a gente sempre se refere no masculino. E isso já indica que falta muito para a gente chegar lá. Mas estamos no caminho.

Para além da linguagem, como enfrentar a desproporção entre mulheres e homens em cargos de liderança?

Realmente, é muito desigual a proporção de mulheres e homens ocupando os cargos públicos e os cargos de forma geral. E quando a gente olha para cargos de liderança, principalmente cargos mais altos no governo federal, cargos estratégicos, hoje CCE ou FCE 18 para cima, a proporção de mulheres é menor ainda. É preciso incentivar a participação das mulheres nesses espaços de poder. E isso é importante porque, quando a gente coloca pessoas diferentes, de diferentes grupos, na tomada de decisões políticas, a gente acaba promovendo a inclusão dos grupos na política pública. Porque só quem vive dentro de um grupo sabe o que realmente ele precisa. Quando há diversidade de pessoas nos cargos estratégicos, com homens, mulheres, pessoas diversas, a gente aumenta a produtividade. Você incentiva a criatividade, deixa que as pessoas atinjam o seu potencial máximo de produção.

“Não somos todas iguais, não temos as mesmas oportunidades. O teto de vidro que mulheres brancas enfrentam, por exemplo, vira teto de concreto quando a gente está falando de mulheres negras.”

Quanto mais alto é o cargo, menor é a proporção de mulheres. Quais seriam as ferramentas para reverter isso?

Eu tenho certeza que as políticas afirmativas de inclusão de gênero precisam ser executadas. E não só de inclusão de gênero, mas inclusão de outros grupos também. Porque quando a gente diz ‘mulher’, a gente generaliza. Não somos todas iguais, não temos todas as mesmas oportunidades. O teto de vidro que mulheres brancas enfrentam, por exemplo, vira teto de concreto quando a gente está falando de mulheres negras. Hoje, na administração pública (em todos os níveis, de acordo com estudo do BID), 18,6% das mulheres ocupam cargos de liderança, e os homens são 81,4%. Então, a diferença é muito grande.

Se a gente for esperar, naturalmente, mudar essa realidade, nós vamos esperar muitos, muitos anos. Tem um estudo da Laura [Angélica Moreira Silva], da Fundação João Pinheiro, que fez uma estimativa de que, se a gente continuar no ritmo que a gente está, vai gastar 88 anos para ter uma paridade de gênero nos cargos de liderança no serviço público. Isso é muito tempo. Então, essas políticas afirmativas contribuem e ajudam reduzir esse tempo. Não dá para esperar quase uma centena de anos para ter a mesma proporção de representação. E se a gente pensa em mulher negra, isso é mais grave ainda. Então, a gente realmente precisa dessas políticas.

Por exemplo?

São muitos tipos de políticas afirmativas. A gente precisa, desde a primeira infância, mudar a forma de criação, preparar as novas gerações para que elas venham com uma outra programação para que meninos e meninas cresçam como iguais, e não como seres diferentes simplesmente porque nasceram com corpos diferentes. Somos todos seres humanos e todos temos o mesmo potencial de desenvolvimento.

Vários países nórdicos, por exemplo, estão fazendo muitos experimentos de mudar a forma pedagógica para poder incentivar a igualdade de gênero desde a primeira infância. Tem que ter políticas de incentivo de mulheres nas carreiras de economia e orçamento, carreiras que cuidam da parte da distribuição de recursos na sociedade. Quando um servidor público atua, ele muda a vida de muitas pessoas.

A gente tem que incentivar, no ensino médio e no fundamental, as meninas a irem para esses cargos. Incentivá-las a assumir riscos. Cargos de liderança são cargos para assumir riscos. É preciso treinar as meninas para que a gente possa, cada vez mais, dividir esses espaços de tomada de decisão com os homens. Então, precisamos de políticas de cotas; políticas que incentivem a entrada das mulheres nos cargos de liderança; e um olhar especial para as mulheres negras, que é a maior parcela da população e hoje ocupa na administração pública federal a menor proporção de cargos de liderança.

O Portal do Servidor aponta que, em 2023, 58,8% dos cargos de liderança no Executivo federal eram ocupados por homens, contra 41,2% de mulheres, das quais 30% são pardas e 6% pretas.

O decreto 11.443, de 2023, diz que o percentual mínimo de mulheres negras em cargos comissionados no Executivo deve ser regulamentado. Por que isso ainda não aconteceu?

Bom, eu não vou saber responder. A gente tem um processo social de construção. A gente já tem o decreto no Executivo Federal de ocupação de cargos por pessoas negras, e aí não só por mulheres, mas pessoas negras, para promover essa reparação histórica. Temos a lei que foi promulgada de igualdade salarial entre homens e mulheres. Mas, essa específica, eu não sei por que está demorando. Eu espero que saia bem rápido. E eu tenho certeza que é a vontade desse governo que a regulamentação saia rápido.

Em relação às mulheres negras, o que a Enap tem feito para estimular a presença delas em cargos de liderança?

A Enap tem um programa, lançado junto com o Ministério da Igualdade Racial, no ano passado, que se chama Fiar, Formações e Iniciativas Antirracistas. Esse programa atua em três eixos: o primeiro é um eixo de formação de liderança, ou seja, preparar as pessoas negras, e em especial as mulheres negras, para ocupar posições de liderança estratégica. São cursos específicos voltados para essas mulheres e voltados para as pessoas negras.

A segunda linha de atuação é um letramento racial, que significa mostrar para as pessoas, os não negros, os brancos, o quanto que, se a gente está numa sociedade mais igualitária, todos ganham, não só as pessoas negras. Também serve para que a gente combata o próprio racismo estrutural. Muitas vezes a gente não quer ser racista, a gente é contra o racismo, mas como a gente cresceu numa sociedade racista, a gente comete racismo, às vezes, sem ver.

A terceira linha de atuação desse programa é a produção de evidências sobre desigualdade de raça e também de gênero, com dados, relatórios e pesquisas nessas duas linhas.

Na realidade, são dois programas. Um de formações e iniciativas antirracistas, e o outro, eu vou te dar um spoiler, é uma linha de formação em ações para as mulheres de inclusão de gênero. Ele está sem nome, mas a gente atuou nessa linha o ano passado todo. No dia 18, durante o Encontro Latino-Americano de Equidade de Gênero, que vai acontecer na Enap, a gente vai batizar esse programa. Ele vai se chamar Formações e Iniciativas Feministas. É o Fif. São dois programas, com três linhas de atuação.

Esses dois programas têm uma interseccionalidade, que é junto às mulheres negras. Ano passado, a gente fez um curso de liderança premium exclusivo para mulheres negras e, esse ano, elas vão passar por um processo de mentoria. Então, foram 50 mulheres negras formadas para serem líderes no Estado, e que vão agora passar por um processo de mentoria, que é um processo de formação bem mais aprofundado.

O programa Formação e Iniciativa Antirracista emitiu mais de 4 mil certificados nos diversos cursos desenvolvidos. A gente lançou mais de 50 iniciativas, formamos mais de 600 servidoras mulheres em diversos programas de liderança, capacitando-as para serem líderes. Também fizemos formação na área de ciências de dados, que é uma área típica de homens, para incentivá-las a ocuparem esses espaços.

Essa linha de formação de mulheres já está rodando…

Ela já está rodando. É um filho que está sendo nomeado um ano depois de ter nascido.

O Grupo de Trabalho de combate ao assédio foi concluído e o plano está em análise do MGI. Qual é a expectativa da senhora em relação a esse plano?

Então, a gente fez parte do GT, a Enap fez parte do GT, que ajudou a formular esse plano. Esse é um plano muito importante, que envolve homens e mulheres. Trata de assédio sexual, moral e todo tipo de violência. Foi formulado a várias mãos. Então, ele é um plano bastante robusto e, em breve, vai ser divulgado. Acredito que vai ser um ganho para toda a sociedade e para a administração pública.

Pode adiantar um pouco do que deve estar nesse plano?

Eu não posso adiantar. Mas eu vou repetir uma frase aqui da ministra Cida Gonçalves, das Mulheres, quando a gente estava divulgando o início desse GT. A ministra Cida terminou a fala dela dizendo que as mulheres precisam ser ouvidas. A palavra da mulher importa. Porque, muitas vezes, as mulheres falam e não são ouvidas ou acham que a culpa é delas, delas sofrerem o assédio. Então, isso permeou o grupo de trabalho. As pessoas que sofrem assédio têm que ter um espaço de escuta, um espaço de acolhimento.

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