Mineração

Mineração, solução de controvérsias administrativas e a ANM

A mediação e a conciliação estão na pauta do setor mineral. E a arbitragem?

Crédito: Pixabay

Um dos primeiros casos da minha vida profissional envolvia a sobreposição parcial de dois títulos minerários. O então Departamento Nacional de Produção Mineral – DNPM (antecessor da Agência Nacional de Mineração – ANM) havia outorgado uma Autorização de Pesquisa que adentrava, por erro de fechamento da poligonal, cerca de 30 metros na área da Concessão de Lavra vizinha.

Um problema comum e, dentro de uma lógica razoável, fácil de ser resolvido. Caso clássico a se observar, com pitadas de ingenuidade, a recomendação de Burnett e Bret, no excelente Arbitration of International Mining Disputes: advogado e cliente devem monitorar em conjunto as oportunidades de resolverem amigavelmente disputas minerárias, já que a indústria, por envolver atores relativamente  próximos e que tendem a construir relações longas, é especialmente forjada para soluções informais ou consensuais[1].

Não foi, todavia, o que ocorreu na prática. Partindo do Direito Administrativo impositivo e vertical[2], o órgão regulador e as partes, reféns de sua intransigência, optaram por escalar as animosidades e foram resolver a questão no Poder Judiciário.

Resultado: vêm litigando há quase duas décadas, sem sequer decisão de segunda instância, e a ben(mal)dita área de 30 metros, riquíssima em termos minerais, está com a operação paralisada desde então.

Aceleremos o tempo e vamos a 2019. Uma empresa desenvolve projeto mineral na condição de arrendatária da Concessão de Lavra. A área possui uma quase[3] barragem inoperante, herdada da arrendante.

A ANM identifica providências técnicas a serem tomadas na área. Dentro das camadas legais específicas do caso, envolvendo responsabilidade civil (contratual e extracontratual), minerária, ambiental e regulatória, estamos diante de uma provável disputa sobre quem, e em quais condições, deve resolver o problema.

Diferentemente do primeiro caso, a Agência convida (por e-mail) as partes para uma reunião. Elas comparecem espontaneamente, com seu pessoal técnico e jurídico.

Pela ANM estão gestores, profissionais técnicos e representante da Procuradoria. Após uma hora de conversa, todos os presentes assinam uma ata em que as empresas se comprometem não só a resolver as exigências técnicas, mas a descaracterizarem a estrutura. Passados alguns meses, ela está encerrada.

Em ambos os casos havia teses jurídicas sólidas para sustentar as posições individuais das partes. A diferença essencial entre um e outro não foi apenas a flexibilidade dos envolvidos no segundo, mas o traquejo dos profissionais da ANM em conduzir o caso com foco na solução, ouvindo as considerações das partes e evitando o discurso de poder unilateral.

Tudo indica que precedentes como o do segundo caso serão mais comuns. Em 6 de janeiro, a ANM publicou a Resolução nº 21/20, alterando o seu Regimento Interno para, entre outros assuntos, detalhar as competências de mediação e conciliação estabelecidas no art. 2º, XIV, da Lei 13.474/2017.

A norma, fazendo menção à Resolução CNJ nº 125/10, cria a Assessoria de Resolução de Conflitos, com 11 modalidades de competência. Incluem desde a possibilidade de equacionar conflitos territoriais entre a mineração e áreas indígenas/quilombolas, passando pela moderação de interesses entre titulares de direitos minerários, e incluindo a articulação entre a atividade mineral e projetos de infraestrutura, usinas hidrelétricas e outros de geração de energia.

Esse modelo de atuação regulatória chega em boa hora, apesar de quase três décadas de atraso. A lei de criação da Agência Nacional do Petróleo (ANP) já previa a conciliação e arbitramento desde 1997; a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) conta com a Superintendência de Mediação Administrativa, Ouvidoria Setorial e Participação Pública (SMA) desde 1998.

Há muito o que aprender com as experiências desses órgãos[4]. Se bem executado, o modelo pode reduzir as disputas, destravar investimentos e permitir à ANM concentrar seus esforços na construção de uma fase virtuosa, com foco no aperfeiçoamento de condutas e coexistência de interesses.

Superaria, assim, o sistema binário de ganha e leva tudo vs. perde e não leva nada. Nesse contexto, é de se imaginar que outras áreas de 30 metros não tenham destino tão kafkaniano.

E por falar na estrutura de outras agências, é intuitivo questionar se as disputas não conciliadas envolvendo os títulos minerários poderão ser solucionadas por arbitragem.

Diferente da lei da ANP, que estabelece essa possibilidade nos contratos de concessão, a lei da ANM não previu dispositivo semelhante, talvez em razão da diferença de sistemas regulatórios entre as duas indústrias (sistema de contratos vs. sistemas de atos). Outros países que adotam contratos de concessão mineral, como Guiné, Moçambique, Afeganistão e Congo[5], preveem cláusulas arbitrais nesses instrumentos.

Mas a arbitragem público-privada no Brasil não está tão longe da mineração quanto parece. O contrato firmado entre a Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM) e a Perth Resources para desenvolvimento do Projeto Palmeirópolis, relacionado ao primeiro leilão da Projeto de Parceira de Investimentos (PPI) no setor mineral, estabeleceu a arbitragem como mecanismo de solução de controvérsias.

Isso está previsto nas minutas dos contratos anexos aos editais dos projetos de cobre de Bom Jardim (GO) e fosfato de Miriri (PE). Todos torcem para que não haja desentendimentos em tais contratos, já que o PPI é uma aposta sedutora para a atração de novos investidores.

Mas, caso venham a acontecer, é provável que o setor mineral experimente um novo patamar técnico de disputas, com maior probabilidade de decisões equilibradas.

Aguardemos os resultados da Assessoria de Resolução de Conflitos da ANM, na esperança de que sua conduta forje uma nova cultura de desencorajamento de litígios. Mais uma vez citando Burnett e Bret – por sua vez, usando as palavras de Abraham Lincoln, de 1850 – convença seus vizinhos a cederem sempre que puderem; ainda haverá negócios suficientes[6].

 


[1] Tradução livre, com certa liberdade poética, dos itens 16.02 e 16.05 do livro Arbitration of International Mining Disputes: Law and Practice, de Henry Burnett e Louis-Alexis Bret (Oxford, 2017).

[2] Expressões muito bem cunhadas pelo Professor Floriano de Azevedo Marques Neto, no artigo Desapropriações não expropriatórias, publicado no JOTA em 15/10/19: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/publicistas/desapropriacoes-nao-expropriatorias-15102019>.

[3] Estrutura classificada como barragem na Política Nacional de Segurança de Barragens – PNSB, ainda que de pequena estrutura.

[4] Eduardo Espíndola Arantes relata, com detalhes, uma disputa ocorrida em janeiro de 2007, entre uma

Concessionária de Transmissão de Energia Elétrica e uma Concessionária de Distribuição de Energia Elétrica, resolvida por mediação. Os detalhes podem ser acessados em: <https://www.aneel.gov.br/documents/656835/14876412/Monografia_Pos_Graduacao_Eduardo_Arantes.pdf/a851d0f9-4ffe-4a02-85fc-394eccbabefa>.

[5] Para estudo detalhado das cláusulas arbitrais em contratos de concessão mineral, sugere-se consulta à plataforma Resource Contratcs (<https://www.resourcecontracts.org>), inciativa do Banco Mundial, Universidade de Columbia e outros parceiros.

[6] Tradução livre de parte do seguinte trecho: “Discourage litigation. Persuade your neighbors to compromise whenever you can. Point out to them how the nominal winner is often a real loser – in fees, expenses and waste of time. As a peacemaker the lawyer has a superior opportunity of being a good man. There will still be business enough”.

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