O tema da propriedade intelectual é atualmente previsto no Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio – ADPIC (Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights – TRIPS), cujo tratado passou a vigorar em 1995, junto com o Acordo de Marraqueche que criou a Organização Mundial do Comércio – OMC (World Trade Organization – WTO), com sede em Genebra, na Suíça.
Além das regras multilaterais que especifica as condições para a defesa da propriedade intelectual, encontra-se no art. 31 as disposições sobre o licenciamento compulsório (que em termos usuais corresponde à quebra de patentes).
A proposta de licenciamento compulsório, de caráter temporário, foi levantada pela Índia e África do Sul. Ao contrário da tradicional conduta brasileira no passado, o atual governo brasileiro não aderiu à proposta das duas economias emergentes. Essa posição confronta-se diretamente com a relevante posição brasileira no licenciamento compulsório de medicamentos para o tratamento do HIV/AIDS em 2003, em liderança conjunta com a Índia e a África do Sul.
Somente em maio de 2021 o Governo Joe Biden, dos Estados Unidos, posicionou-se favorável à medida de licenciamento temporário para a fabricação de vacinas contra o Covid-19.[1] Apesar de forte crítica à mudança do posicionamento norte-americano, principalmente liderado pela Alemanha, a União Europeia também aderiu de forma favorável à África do Sul e da Índia.[2][3]
O Brasil, por sua vez, antes contrário à posição dos países em desenvolvimento, liderados pela Índia e África do Sul, alterou sua decisão um dia após a manifestação favorável dos Estados Unidos, conforme nota à imprensa de 7 de maio de 2021.[4]
Frente ao cenário atual sobre patentes das vacinas contra o Covid-19, algumas inferências são observáveis. Em um primeiro momento, a posição favorável dos Estados Unidos pelo licenciamento ocorre em um momento em que grande parte da sua população já se encontra vacinada. Além disso, a China é a maior nação com patentes no mundo, suplantando a histórica posição norte-americana.[5]
Outra questão da reticência das nações europeias em apoiar a posição da Índia na OMC decorreria do seu processo interno de vacinação ainda lento, o que poderia ocorrer uma possível perda de lucro para as empresas farmacêuticas em seu território europeu.
A posição brasileira é particular ao se afastar do tradicional tratamento de licenciamento compulsório com fundamento em saúde pública, bem como do anterior alinhamento de posições com a Índia na OMC, no que se refere à defesa dos interesses dos países em desenvolvimento na organização.
A situação da pandemia e do acesso de vacinas contra o Covid-19 enquadram-se como novos elementos a ampliar o abismo que separa as nações desenvolvidas e as em desenvolvimento. Se algumas nações como Índia e China, ou mesmo os que integram o grupo dos BRICS, apresentam forte presença econômica no plano internacional, flexibilizando essa divisão histórica, herdada dos processos de colonização e imperialismo ao longo dos séculos, as deficiências sócio-econômicas ainda são relevantes e se agravaram com o atual contexto sanitário a partir de 2020.
Frente a este cenário hodierno, é interessante revisitar a obra do Ha-Joon Chang, intitulada: Chutando a Escada. A estratégica do desenvolvimento em perspectiva histórica (tradução de Luiz Antonio Oliveira de Araujo. São Paulo: UNESP, 2004). Em linhas gerais, Chang analisa a questão do desenvolvimento dos países de maneira histórica e comparativa. Nesse exercício, ele descreve que as economias desenvolvidas, como os Estados Unidos, Reino Unido e França, utilizaram-se no século XIX (e mesmo nos séculos anteriores) de forte intervenção estatal, protecionismo e de práticas de desenvolvimento de sua indústria nacional antes de se tornarem obcecados defensores do livre-comércio. E mesmo as instituições internacionais que apregoam as boas práticas de gestão (good governance), estas são resultado e não causa do desenvolvimento das nações. Para tanto, importante questão é levantada ao final da obra: a OMC com suas regras de garantia do livre-comércio, que restringe medidas protecionistas, seria uma nova versão dos tratados desiguais típicos do século XIX?
O século XIX vivenciou a instituição dos acordos de amizade, comércio e navegação, conhecidos como acordos desiguais. A exemplo, a coação militar forçou a assinatura de tais acordos nas décadas de 1840 e 1860 pela França e Reino Unido com a China. Os acordos obrigavam a China a entregar regiões e portos ao domínio externo, assegurar jurisdição extraterritorial aos estrangeiros e benefícios comercias (como a permissão do comércio do ópio), inseridas no contexto das Guerras do Ópio. No caso brasileiro, os tratados desiguais foram assinados como forma de reconhecer a sua independência em 1822 pelas nações europeias, principalmente por Portugal e Reino Unido.
Essa conduta portanto, deixa a entender que os países em desenvolvimento não deveriam seguir a trajetória das nações industrializadas e sim traçar um novo caminho. Em outros termos, os países desenvolvidos estariam, portanto, “chutando a escada” do desenvolvimento pelo qual haviam subido anteriormente.
A partir das reflexões da obra e do atual contexto de tratamento da pandemia do Covid-19, em que demonstra uma ausência de coordenação multilateral eficaz, é cada vez mais recorrente a necessidade de aprofundar o debate sobre o desenvolvimento sócio-econômico e rever os conceitos de globalização, de práticas neo-liberais e de livre-comércio frente à atual situação das nações emergentes e em desenvolvimento. Reconhecer “novas escadas” de desenvolvimento no atual século XXI é uma necessidade premente das nações que ainda não alcançaram seu pleno desenvolvimento.
[1] BBC NEWS. Covid: US backs waiver on vaccine patents to boost supply. 6 de maio de 2021. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-us-canada-57004302. Acesso em 7 jun. 2021.
[2] KRISHNAN, Murali; WESEL, Barbara. India’s push for COVID vaccine patent waiver hits EU roadblock. DW. 17 de maio de 2021. Disponível em: https://www.dw.com/en/indias-push-for-covid-vaccine-patent-waiver-hits-eu-roadblock/a-57557338. Acesso em: 7 jun. 2021.
[3] BLENKINSOP, Philip; O’DONNELL, Carl. EU supports COVID vaccine patent waiver talks, but critics say won’t solve scarcity. Reuters. 6 de maio de 2021. Disponível em: https://www.reuters.com/world/europe/eu-willing-discuss-covid-19-vaccine-patent-waiver-eus-von-der-leyen-2021-05-06/. Acesso em 7 jun. 2021.
[4] MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES – MRE. Vacinas e patentes – Nota Conjunta do Ministério das Relações Exteriores, do Ministério da Economia, do Ministério da Saúde e do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações. Nota à Imprensa nº 56, de 7 de maio de 2021. Disponível em: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/vacinas-e-patentes-2013-nota-conjunta-do-ministerio-das-relacoes-exteriores-do-ministerio-da-economia-do-ministerio-da-saude-e-do-ministerio-da-ciencia-tecnologia-e-inovacoes. Acesso em: 7 jun. 2021.
[5] WORDL INTELLECTUAL PROPERTY ORGANIZATION – WIPO. China Becomes Top Filer of International Patents in 2019 Amid Robust Growth for WIPO’s IP Services, Treaties and Finances. 7 de abril de 2020. Disponível em: https://www.wipo.int/pressroom/en/articles/2020/article_0005.html. Acesso em: 7 jun. 2021.