“Art. 117. O curso da prescrição interrompe-se:
I – pelo oferecimento da denúncia ou da queixa;
[…]
IV – pela sentença ou acórdão condenatórios recorríveis ou por qualquer decisão monocrática ou acórdão que julgar recurso interposto pela parte;
[…]
VII – pelo oferecimento de agravo pedindo prioridade no julgamento do feito, pela parte autora, contra a demora do julgamento de recursos quando o caso chegou à instância recursal há mais de 540 dias, podendo o agravo ser renovado após decorrido igual período.”
Segundo a nova redação que se propõe ao inciso I, do art. 117, do Código Penal, o curso da prescrição interrompe-se “pelo oferecimento da denúncia ou queixa”, não mais pela recebimento. A prescrição é um instituto que visa a aferir a inércia do aparato estatal. Parece claro, assim, que no momento em que a peça acusatória é oferecida, independentemente do recebimento ou não pelo Poder Judiciário, não há que se falar mais em “inércia estatal”.
Mais uma vez, RENÉ ARIEL DOTTI discorda de forma retórica e afirma, [simple_tooltip content=’IBCCrim. ANO 23 – Nº 277 – dezembro /2015 – ISSN 1676-3661′]“Entre as novas causas propostas para interromper a prescrição consta a substituição da decisão do juiz pelo simples oferecimento da denúncia ou queixa (CP, art. 117, I). Nada mais excêntrico. O Ministério Público é parte na relação processual competindo-lhe, privativamente, a promoção da ação penal pública (CF, art. 129, I). Não lhe é conferido o poder de controle jurisdicional sobre a aptidão ou inépcia da inicial acusatória que é ínsito ao magistrado quando recebe ou rejeita a petição. Trata-se de manifestação personalíssima e sujeita ao requisito constitucional da fundamentação, sob pena de nulidade (CF, art. 93, IX). A mesma objeção vale para o PL do Senado 658/2015”[/simple_tooltip].
Excêntrico só se for para os juristas da “Terra Brasilis”. Em uma rápida pesquisa de direito comparado, encontramos interrupções no prazo prescricional por simples atuações do Ministério Público. No caso do direito brasileiro, é bom lembrar, a modificação que se propõe está ainda aquém do que ocorre nos demais países, propondo-se apenas a revogação de uma distorção pois nada se justifica que a prescrição só seja interrompida com o recebimento da denúncia, não com a atuação do Ministério Público (que já demonstra que o órgão estatal de acusação não está inerte). Vejamos o quão excêntrica é a previsão e a prescrição ser interrompida por atos do Ministério Público em geral:
O art. 7º do Código de Processo Penal Francês dispõe que a prescrição será interrompida [simple_tooltip content=’ “Le Code de procédure pénale prévoit deux causes d’interruption qui valent quelle que soit l’infraction: les actes de poursuite et les actes d’instruction. La jurisprudence est venue préciser les contours de ces notions en s’attachant à l’esprit de l’interruption plus qu’à la lettre du Code. Entrent ainsi dans la catégorie des actes de poursuite l’ensemble des actes réguliers par lesquels le ministère public et la partie lésée déclenchent l’action publique (citations à comparaître, réquisitoires introductifs, supplétifs ou définitifs, plaintes avec constituion de partie civile etc.) (…) Quant aux actes d’instructions, ils sont admis avec la même largesse: il s’agit certes de ceux qu’accomplissent les juridictions d’instruction compétentes (interrogatoire, transport sur les lieux, commission rogatoire, perquisition, saisie, avis de fin d’instruction, etc.), mais aussi des actes d’enquête réalisés par la police judiciaire em préliminaire ou em flagrance (procès-verbal constatant une infraction, audition de témoin, visite domiciliarie etc.) et par les agents spécialisés (procès-verbaux dressés par les inspecteurs du travail….)” – MATHIAS, Éric. Procédure pénale. Rosny-sous-Bois: Bréal, 2007, pp. 82-83.’]por cada ato de instrução ou investigação[/simple_tooltip]: [simple_tooltip content=’Tradução livre: “Artigo 7. Em matéria criminal e com reserva das disposições do artigo 213-5 do código penal, a ação pública prescreve em dez anos contados do dia em que cometido o crime se, neste intervalo, não tiver havido nenhum ato de instrução ou de investigação.”’]“En matière de crime et sous réserve des dispositions de l’article 213-5 du code pénal, l’action publique se prescrit par dix années révolues à compter du jour où le crime a été commis si, dans cet intervalle, il n’a été fait aucun acte d’instruction ou de poursuite”[/simple_tooltip].
A doutrina interpreta como “acte d’instruction ou de poursuite” eventuais interrogatórios, apreensões, relatório de constatação de infração, oitiva de testemunhas, visita domiciliar etc, bem como outros atos do processo criminal:
[simple_tooltip content=’MATHIAS, Éric: Procédure pénale. Rosny-sous-Bois: Bréal, 2007, pp. 82-83. Tradução livre: “O código de processo penal prevê duas causas de interrupção que valem para qualquer infração: os atos de investigação e os atos de instrução. A jurisprudência vem delinear os contornos destas noções associando-se ao espírito da interrupção mais que à letra do código. Entram assim na categoria de atos de investigação o conjunto de atos regulares pelos quais o ministério público e a parte lesada desencadeiam a ação pública (citações para comparecimentos, acusações introdutórias/iniciais, supletivas/complementares ou definitivas, representação da parte ofendida etc.) (…) Quanto aos atos de instrução, são admitidos com a mesma amplitude: são aqueles adotados pela jurisdição de instrução competente (interrogatório, mobilização, carta rogatória, buscas, apreensões, pareceres finais), mas também pelos atos de pesquisa/investigação realizados pela polícia judiciária preliminarmente ou no flagrante (registro verbal de constatação de infração, oitiva de testemunhas, visitas domiciliares etc.) e por agentes especializados (registros feitos por inspetores de trabalho…)”.’]“Le Code de procédure pénale prévoit deux causes d’interruption qui valent quelle que soit l’infraction: les actes de poursuite et les actes d’instruction. La jurisprudence est venue préciser les contours de ces notions en s’attachant à l’esprit de l’interruption plus qu’à la lettre du Code. Entrent ainsi dans la catégorie des actes de poursuite l’ensemble des actes réguliers par lesquels le ministère public et la partie lésée déclenchent l’action publique (citations à comparaître, réquisitoires introductifs, supplétifs ou définitifs, plaintes avec constituion de partie civile etc.) (…) Quant aux actes d’instructions, ils sont admis avec la même largesse: il s’agit certes de ceux qu’accomplissent les juridictions d’instruction compétentes (interrogatoire, transport sur les lieux, commission rogatoire, perquisition, saisie, avis de fin d’instruction, etc.), mais aussi des actes d’enquête réalisés par la police judiciaire em préliminaire ou em flagrance (procès-verbal constatant une infraction, audition de témoin, visite domiciliarie etc.) et par les agents spécialisés (procès-verbaux dressés par les inspecteurs du travail….)”[/simple_tooltip].
O § 78c (1) do Código Penal Alemão (Strafgesetzbuch – StGB) prevê que a prescrição será interrompida com o primeiro interrogatório do acusado, a formalização de que a investigação tenha sido iniciada (pela polícia ou pelo Ministério Público), dentre outros fatores, inclusive como o [simple_tooltip content=’“StGB, § 78c Unterbrechung (Interrupção) (1) Die Verjährung wird unterbrochen durch (A prescrição se interrompe com): die erste Vernehmung des Beschuldigten, die Bekanntgabe, daß gegen ihn das Ermittlungsverfahren eingeleitet ist, oder die Anordnung dieser Vernehmung oder Bekanntgabe (o primeiro interrogatório do acusado, com a comunicação de que contra ele foi instaurada investigação, ou com o mandado de interrogatório ou a sua comunicação), 1 – jede richterliche Vernehmung des Beschuldigten oder deren Anordnung (qualquer interrogatório do réu realizado pelo juiz ou com o mandado do mesmo), (…) 2 – jede richterliche Beschlagnahme- oder Durchsuchungsanordnung und richterliche Entscheidungen, welche diese aufrechterhalten (qualquer mandado de apreensão ou de busca, e decisão do juiz que mantenha o mesmo), 3 – den Haftbefehl, den Unterbringungsbefehl, den Vorführungsbefehl und richterliche Entscheidungen, welche diese aufrechterhalten (o mandado de prisão, de internação, de comparecimento forçado, e decisão do juiz que mantenha o mesmo), 4 – die Erhebung der öffentlichen Klage (instauração da ação penal), 5 – die Eröffnung des Hauptverfahrens (abertura do processo principal), 6 – jede Anberaumung einer Hauptverhandlung (qualquer realização de uma audiência principal), 7 – den Strafbefehl oder eine andere dem Urteil entsprechende Entscheidung (o mandado de prisão ou outra decisão em decorrência da sentença), (…) http://www.gesetze-im-internet.de/stgb/__78c.html’]deferimento de medidas judiciais contrárias ao interesse do sujeito passivo, como buscas e apreensões, mandado de detenção etc[/simple_tooltip].
Indo para o lado dos países componentes da Rede Iberoamericana de Cooperação Jurídica Interncional, o art. 110 do Código Penal Federal do México prevê: [simple_tooltip content=’http://www.diputados.gob.mx/LeyesBiblio/pdf/9_120315.pdf’]“La prescripción de las acciones se interrumpirá por las actuaciones que se practiquen en averiguación del delito y de los delincuentes, aunque por ignorarse quiénes sean éstos no se practiquen las diligencias contra persona determinada”[/simple_tooltip].
O art. 83 do Código Penal do Peru: “La prescripción de la acción se interrumpe por las actuaciones del Ministerio Público o de las autoridades judiciales, quedando sin efecto el tiempo transcurrido”. O Código de Processo Penal do mesmo país, no art. 339, 1, é expresso em dizer que “La formalización de la investigación suspenderá el curso de la prescripción de la acción penal”.
O art. 104 do Código Penal do Paraguai prevê atos do Ministério Público e do Poder Judiciário que interrompem a prescrição, inclusive quando expedidos [simple_tooltip content=’“Artículo 104.- 1º La prescripción será interrumpida por: 1. un auto de instrucción sumarial; 2. una citación para indagatoria del inculpado; 3. un auto de declaración de rebeldía y contumacia; 4. un auto de prisión preventiva; 5. un auto de elevación de la causa al estado plenario; 6. un escrito de fiscal peticionando la investigación; 7. una diligencia judicial para actos de investigación en el extranjero.”’]contra os interesses do sujeito passivo[/simple_tooltip].. O art. 132, 2, 2ª, do Código Penal da Espanha também não nega efeitos ao ato de [simple_tooltip content=’“2ª No obstante lo anterior, la presentación de querella o la denuncia formulada ante un órgano judicial, em la que se atribuya a una persona determinada su presunta participación en un hecho que pueda ser constitutivo de delito o falta, suspenderá el cómputo de la prescripción por un plazo máximo de seis meses para el caso de delito y de dos meses para el caso de falta, a contar desde la misma fecha de presentación de la querella o de formulación de la denuncia” – https://www.iberred.org/sites/default/files/codigo-penal-en-vigor.pdf.‘]formulação de uma denúncia perante o órgão jurisdicional[/simple_tooltip].
A prescrição é um instituto que visa a aferir a inércia do aparato estatal, dentro do qual se encontra o Ministério Público, não tendo vinculação necessária com os dos atos do Poder Judiciário. Tanto isso é verdade que corre a chamada prescrição em abstrato na fase de investigação, em que nem sempre há atuação jurisdicional.
Da análise das legislações de outros países, nota-se que apesar de em algumas os prazos prescricionais não serem tão alargados, os atos e ações do Ministério Público e do Judiciário [simple_tooltip content=’Em algumas legislações, mesmo que haja sucessivas interrupções, é previsto um prazo máximo de prescrição. É o caso do Código Penal do Paraguai que, em seu art. 104, prevê diversas hipóteses de interrupção da prescrição e, ao final, dispõe: “Sin embargo, operará la prescripción, independientemente de las interrupciones, una vez transcurrido el doble del plazo de la prescripción”.’]interrompem mais vezes o prazo prescricional[/simple_tooltip]. Aliás, esta é a real essência da prescrição: se o Ministério Público e o Judiciário atuam, dentro de um prazo razoável, sem que o réu aja para atrasar a macha processual, não há porque se falar em inércia.
A modificação no inciso IV do artigo 117 impõe a interrupção da prescrição quando de qualquer decisão expedida durante a vigência do processo, alinhando-se quase integralmente, aliás, com o texto do Projeto de Lei nº 236/2012, que propõe um novo Código Penal. Conforme bem destacado pelo Relatório Final do Projeto de Lei do Senado n. 236, de 2012 (Novo Código Penal), [simple_tooltip content=’Disponível em: <http://www.senado.leg.br/atividade/rotinas/materia/getPDF.asp?t=143412&tp=1>. Acesso em 19 de dezembro de 2015.’]“A proposta de alteração deixa expresso que qualquer decisão de tribunal, condenatória ou confirmatória da sentença, é hipótese de nova interrupção da prescrição. E não haveria sentido ser de forma diversa, na medida em que o Estado, dentro dos prazos estipulados em lei, de forma igualitária para todos, analisando os recursos interpostos no caso concreto, manifestou-se novamente sobre a pretensão apresentada pelas partes em tempo hábil. É dizer: houve prestação jurisdicional a tempo e, por isso, nova interrupção da prescrição”[/simple_tooltip] (destacou-se).
A proposta indica, ainda, a necessidade de se interromper a prescrição “por qualquer decisão monocrática ou acórdão que julgar recurso interposto pela parte”. Em relação a essa parte específica, o Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa do Senado afirma: “não há sentido na interrupção da prescrição pelo proferimento de ‘qualquer decisão monocrática’, como proposto pelo MP. Essa decisão não possui a mesma qualificação de mérito das hipóteses narradas acima; e sequer exige a análise da demanda principal da ação penal, como é o caso da decisão sobre pedido feito por terceiro acerca de restituição de coisas apreendidas. Assim sendo, julgamos de constitucionalidade questionável a parte final do inciso citado”.
A crítica não procede e interpreta de forma equivocada a modificação proposta pelo MP. O instituto da prescrição é relacionado ao ius puniendi e assim é evidente que uma decisão monocrática em autos de restituição de coisas apreendidas não terá o efeito de interrupção no prazo. O caso, então, limita-se às decisões monocrática ou acórdão que julgar recurso interposto na causa principal.
No mais, o que significa que uma proposta é “constitucionalidade questionável”? É um meio termo entre constitucional e inconstitucional? A expressão não parece técnica. Acusar uma norma de inconstitucional não pode ser sinônimo de uma simples falta de simpatia por ela. É essencial indicar qual dispositivo da Constituição está sendo violado, o que em nenhum momento foi feito. Questões de política criminal possibilitam que o legislador infraconstitucional preveja mais prazos de interrupção da prescrição, sem que isso viole qualquer artigo da Constituição Federal. Aliás, todo o estudo comparativo que se propôs neste artigo já deixou evidente que o Brasil está muito aquém na previsão de interrupções de prazos prescricionais se comparado a países muito mais evoluídos na sistemática criminal.
Continuando, a alteração que se propõe no inciso VII, do art. 117, conforme bem exposto na exposição de motivos do anteprojeto apresentado à [simple_tooltip content=’http://www.combateacorrupcao.mpf.mp.br/10-medidas/docs/medidas-anticorrupcao_versao-2015-06-25.pdf’]sociedade civil e jurídica[/simple_tooltip], tem por propósito harmonizar o tratamento da prescrição com a necessidade de inércia da parte para sua incidência. O instituto da prescrição objetiva conferir segurança jurídica ao réu quando o autor não adota as providências que lhe são cabíveis (dormientibus non sucurrit jus). Sancionar o autor com a extinção de seu direito quando age de modo diligente, como ocorre hoje, é um contrassenso.
As críticas negativas trazidas pela Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa do Senado a essa específica mudança são: “Não nos parece que este deva ser o caminho para o combate da impunidade. Se existem muitos recursos protelatórios, a resposta a ser dada é a modificação da estrutura do processo penal, ou mesmo a punição da procrastinação de má-fé. Se o Poder Judiciário demora a julgar, é evidente a necessidade de mudança na gestão dos tribunais”.
Mais uma vez, não parece técnico colocar a culpa nos atrasos dos Tribunais como justificativa exclusiva para não se empreender mudanças na legislação. Aliás, é justamente o contrário. A Lei serve para modular condutas de acordo com a realidade. Precisamos ver se o sistema funciona. Mesmo que tenhamos uma justiça dentro de metas fixadas, nada obsta que a legislação fixe um patamar temporal para se evitar impunidades. Vejamos:
Entre os dias 10 e 11 de novembro, durante o VIII Encontro Nacional do Poder Judiciário, promovido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) foram aprovadas as Metas Específicas de celeridade para o Judiciário brasileiro alcançar em 2015. Para os Tribunais Regionais Federais foi previsto: [simple_tooltip content=’http://www.cnj.jus.br/images/gestao-planejamento-cnj/2015/Metas_Espec%C3%ADficas_aprovadas_no_VIII_Encontro_v1.pdf’]“Reduzir o tempo médio de duração do processo, em relação ao ano base 2014: I) na fase de conhecimento, para o 1º grau dos TRTs que contabilizaram o prazo médio acima de 200 dias, em 1%; para o 2º grau dos TRTs que contabilizaram o prazo médio de 201 a 300 dias, em 1%; e para o 2º grau dos TRTs que contabilizaram o prazo médio acima de 300 dias, em 3%”[/simple_tooltip].
Nota-se, assim, que a mudança que se propõe, de interrupção da prescrição “quando o caso chegou à instância recursal há mais de 540 dias”, é muito além das metas de eficiência previstas pelo próprio CNJ, a se evidenciar que a problemática não é somente de “falta de gestão”, mas de política criminal: dar eficiência, respeitados os direitos individuais.