Como foi a atuação da SG em condutas anticompetitivas?
Acho que é bem evidente que a gestão focou muito, se fosse elencar uma área de principal atuação, no combate a cartéis em licitações. A gente vê isso em diferentes frentes. Um investimento muito grande na detecção proativa de carteis, na criação de uma unidade de análise de informações – o nosso LAB – , com treinamento, softwares de investigação, montagem de um aparato voltado para isso, no desenvolvimento do projeto Cérebro, no tratamento de análise de dados de licitações com foco na detecção proativa de carteis, no esforço grande de mais cooperação com autoridades investigativas no brasil afora. Foi um eixo de investimento muito grande nosso, com bons resultados.
Ao mesmo tempo, isso não significou menor atenção ao nosso programa de leniência, pelo contrário. Uma das principais entregas dessa gestão foi a consolidação e o crescimento absolutamente sem precedentes do nosso programa de leniência. É impressionante o que nosso programa de leniência atingiu nestes últimos três anos do ponto de vista de recordes consecutivos do numero de assinaturas. Até junho a gente já bateu, ja igualou o número de todo o ano passado inteiro – que foi um recorde histórico do Cade.
Por quê o programa vem crescendo?
Diria que a gente finalmente conseguiu, por meio de experiência em casos reiterados e esforço muito grande de segurança jurídica, transparência – uma coisa que fizemos foi a edição do Guia de Leniência – tornar o programa de leniência do Cade nacional e mundialmente confiável. Um programa que hoje é tomado como um programa em que as empresas se sentem seguras para assinar um acordo. A procura pelo programa cresceu muito. Nos últimos dois anos o número de pedidos de marker [interesse de assinar acordo] cresceu 500%. Quando assumi a SG, a nossa unidade de leniência tinha três pessoas, hoje tem 11. Uma das principais entregas foi o fortalecimento e a consolidação do nosso programa de leniência. Um dado interesante é ver a passagem de ter um número muito grande de leniências internacionais para um percentual muito maior de leniências nacionais, que significa consolidação do programa aqui dentro, com as empresas brasileiras utilizando isso.
E o programa de Termos de Compromisso de Cessação?
O programa surgiu de uma norma de política de negociação de TCC, que é da época do [Carlos] Ragazzo [antecessor de Frade na SG], mas que teve a execução da sua política grandemente durante meu mandato. Vejo isso no crescimento intenso do número de TCCs. Antes, você tinha cinco TCCs por ano e agora, 60 TCCs por ano. Então alguma coisa aconteceu aqui dentro. Acho que isso mudou totalmente a feição do Cade na análise de condutas anticompetitivas com uma série de fatores relacionados. O foco em soluções acordadas, que tem vantagem de redução de custo administrativo, maior celeridade, redução de questionamentos no Judiciário e assim por diante, mas que veio acompanhada, em razão das obrigações dos TCCs, de benefícios impressionantes na qualidade dos casos.
Nos casos de cartéis, ter a necessidade de reconhecimento de participação nas condutas e a necessidade de colaboração com as investigações melhorou substancialmente os casos. A gente teve o benefício que advém de um acordo com melhoria das investigações, detecções de novos casos e daí em diante.
Surge uma pergunta: ao ter política de acordos o Cade não está enfraquecendo o seu enforcement, em vez de estar multando? Você vê que até nisso a política de TCC teve efeito contrário a esse. A gente antes tinha uma política em que o Cade aplicava um certo conjunto de multas e contribuições pecuniárias por ano, da ordem de R$ 100 milhões, para no ano passado ter chegado a R$ 800 mihões. A política de acordos, então, não se traduziu em menos enforcement, mas em mais enforcement. As empresas hoje pagam mais e são mais punidas do que eram antes da política de acordos. Isso é mais enforcement.
Por que admitir participação aumentou o número de acordos?
Olha como as regras de TCC são duras: tem que reconhecer participação na conduta, tem que colaborar trazendo provas etc e tem que pagar e muito. Por que as empresas vêm? Na minha opinião, por uma mistura de transparência de regras – antes não havia regras e a empresa não sabia o que esperar, hoje ela sabe e isso é essencial, sabe que vai ter que pagar muito e sabe que é duro, mas ele sabe o que esperar. A introdução da politica de acordo veio acompanhada do endurecimento do Cade, no sentido de detectar mais casos e ter punição severa. Então o cara acaba fazendo um acordo porque sabe que se tem um caso contra ele no Cade a chance de ao final ser severamente punido é alta.
Mesmo sem a participação do Ministério Público?
Isso é uma coisa que a gente teve que trabalhar. Como o TCC, ao contrário da leniência, não gera imunidade penal, quando o cara admite participação no ilícito aqui isso pode acabar gerando um problema penal para ele, se não tiver garantia semelhante do MP. Isso fez por exemplo nascer o Memorando de Entendimento com o MPF-SP para que um indivíduo que faça o TCC aqui também possa buscar o MP para tentar obter algum tipo de benesse penal lá. Até nisso, isso seria uma dificuldade do TCC mas que não foi suficiente para inibir pessoas e empresas a buscar os TCCs.
A arrecadação do Cade fechou em quase R$ 800 milhões no ano passado. Bate R$ 1 bilhão neste ano?
É possível, estamos chegando na metade do ano com o mesmo resultado do meio do ano passado. Mas o segundo semestre sempre tende a ter mais coisas. É possível, mas é dificil prever nesse momento.
No início do século, o Cade não aplicava multas maiores que 1% do faturamento. Hoje, há uma queixa dos advogados de que a SG e o tribunal aplicam multas muito altas, está elevando a barra e aplicando valores maiores. Você concorda com essa avaliação? Por que seguir este caminho?
Concordo que sem dúvida há uma percepção de que as multas do Cade e a punição do Cade é alta. Esse foi um movimento importante para fortalecimento do combate a condutas anticompetitivas. Se a gente permanecesse num patamar que havia num passado, a meu ver já distante, a gente não conseguiria ter se afirmado como autoridade de defesa da concorrência e não conseguiria fazer com que as empresas começassem a agir de forma mais competitiva. Está em linha com grandes autoridades do mundo, que de fato que colocam punições pesadas. Mas você vê que essa é uma discussão em franco debate, porque tem de um lado no empresariado uma percepção de que as multas são bastante altas. Do outro lado você vê, aqui dentro, no debate de vantagem auferida, membros do conselho que acham que não. Acham que é pouco. Tem mensagens do Congresso Nacional, de vários parlamentares achando que é pouco. Não é um debate brasileiro, é um debate mundial se as multas estão adequadas, altas ou baixas. Tem opiniões para todos os lados, estamos num momento em que a autoridade vai ter que estudar isso para ver a adequabilidade e proporcionalidade de suas multas, esse debate já está acontecendo.
É um caminho natural aumentar o valor das punições para criar incentivo negativo cada vez maior às condutas…
Se você ver histórico de autoridades consolidadas, esse foi o caminho natural de todas elas. Acho que o Brasil já atingiu esse ponto.
Você se arrisca a dizer que com essa evolução grande parte dos mercados relevantes estão mais competitivos e há mais concorrência que há dois, três anos?
Acho difícil dizer. É meio difícil medir isso no curto prazo. Acho que seria um estudo interessante para daqui a alguns anos ver os potenciais efeitos que isso teve. Mas acho tranquilo dizer que sem dúvida uma atuação mais incisiva do órgão de concorrência contribui para isso. Um outro fator que tem a ver com isso e foi impulsionador importante do programa de leniência tem a ver com o fato de que o empresariado brasileiro e internacional passou a ver no Cade, de fato, um fator de risco, no sentido de ver a atuação do órgão aumentando. O Cade começou a ficar mais conhecido e os agentes começaram a pensar em ter um pouco mais de cuidado, porque tem um órgão que está trabalhando. E uma segunda mensagem: um órgão que, se eu for pego, me dá punições severas. Não tenho a menor dúvida de que uma das razões para o crescimento do programa de leniência tem a ver com isso, a percepção de um maior risco de detecção e de uma punição severa pela autoridade antitruste. Isso tem efeitos muito maiores do que os da leniência, quero crer.
Os programas de leniência e TCC cresceram, mas o Cade ainda possui um volume alto de investigações próprias. Por quê?
Um dos focos da nossa gestão foi aumentar a capacidade de detecção ex-officio de carteis. A gente não foi por um caminho de relegar nosso enforcement apenas ao programa de leniência. É o caminho que algumas autoridades fazem, não é diferente do caminho europeu e americano. Decidimos não seguir esse caminho aqui – embora continue extremamente relevante nosso programa de leniência. Por que é assim? Hoje, mais ou menos 50% dos nossos casos de detecção não vêm de leniência. Esse número decresceu. Até recentemente, mais ou menos dois terços do nossos casos vinham de casos que não eram de leniência. Seria equivocado dizer que nossa detecção ex-officio cresceu em relação a leniência, na verdade foi o contrário, nosso programa de leniência cresceu, o que é um caminho natural de autoridades mais maduras – nos EUA e Europa é 90% – e nossos melhores casos vêm de leniência. Então leniência é e continuará sendo importante – provavelmente vai crescer a sua relevância dentro dos nossos casos. Mas é um entendimento nosso que não pode deixar de investir em detecção ex-officio. Isso é importante para o próprio programa de leniência.
Isso é especialmente relevante num país como o Brasil em que a gente ainda depende muito de detecção ex-officio para encontrar carteis. Historicamente a gente se desenvolveu como autoridade investigando antes de ter um programa de leniência maduro, então vem do passado. Mas também é uma decisão proativa que tomamos de investir nisso. A leniência é muito importante mas a gente vê muito que os casos que vêm do programa muitas vezes pegam carteis já no declínio. O cara está vindo para a leniência depois que o cartel atingiu seu auge. Tem uma série de fatores para a gente investir em investigação ex-officio. Desde a gente pegar casos que não seriam pegos pelo programa de leniência, até pegar casos enquanto ainda estão no seu auge, antes de atingirem pico e incentivo ao próprio programa de leniência. O cara tem menos chance de vir para a leniência se ele sente que não vai ser pego de outra forma.
Algumas autoridades vêm usando algoritmos para identificar combinações de preços em licitações e no mercado. Como está isso aqui no Brasil?
A nossa iniciativa relativa a isso é o projeto Cérebro. É focado em cartéis em licitação porque é especialmente pernicioso e é mais fácil utilizar esse tipo de mecanismo para detecção. Em comparação, isso não é caminho de várias autoridades. Os Estados Unidos, por exemplo, não acredita muito em filtro, não trabalha muito com isso. Outras autoridades tiveram sucesso nisso e estão fazendo.
O Cérebro já identificou carteis que demandariam mais investigação?
O Cérebro ainda está em desenvolvimento e sempre estará em desenvolvimento. Requer atualizações e aprimoramentos constantes, mas já está operacional em relação ao começo da gestão. Já tem o uso dele para algumas utilidades, como aprofundar investigações etc. Diria que o primeiro uso público, com resultado concreto disso, são os dois Processos Administrativos que acabamos de abrir no cartel de órteses e próteses. A gente fez a operação Mercador de Veneza e um dos fatores que a gente usou para pedir busca e apreensão e filtrar o caso e ver, detectar onde estava havendo suspeitas de conluio e etc, foi o Cérebro. Temos outros casos mapeados que provavelmente vão gerar processos no futuro também.
Alguns defendem a regulamentação da figura do whistleblower. Alguém que não participa da conduta, mas tem conhecimento e procura a autoridade mediante recompensa. Qual sua avaliação?
Acho positivo. É uma experiência que algumas autoridades lá fora já começaram a utilizar e acho que nessa questão de detecção de ilícitos a gente tem que se valer de todos os instrumentos que estão à disposição. Lógico que com cuidado, dentro da lei. Pode ser, num futuro próximo, mais um instrumento que pode ser utilizado na detecção de carteis e outros ilícitos.
A Corte Europeia de Justiça manteve o uso de informações da Receita Federal em análises da autoridade de concorrência. Aqui, a Receita e o Banco Central fazem investigação próprias e temos a impressão de que o diálogo com o Cade poderia ser melhor. Como isso se deu durante seu mandato?
O Cade sempre teve uma mistura de sorte e competência para ter relações excelentes com diferentes órgãos do governo federal, estadual, municipal. A gente sempre soube que todos esses órgãos são extremamente necessários para nosso trabalho. Falo com sinceridade, que não tem nenhum órgão com o qual a gente não tenha nenhuma relação quando precisamos ter casos juntos.
O que acho é que a legislação brasileira e a regulamentação interna de várias instituições ainda têm muito a avançar quando falamos de investigação de ilícitos e a integração de diferentes órgãos. Diria até que, como legado da Lava Jato, talvez a principal dificuldade identificada, não só dentro do Cade, mas no contexto geral, ainda é como fazer com que todos os órgãos que são responsáveis pela investigação e punição de um ilícito se coordenem para que a investigação seja o mais efetiva possível, para que depois se consiga fazer troca de informações, de provas etc. Para que depois se coordene para haver punição proporcional, tanto para cima quanto para baixo.
E, mais um fator, para que se coordenem quando estamos falando de instrumentos de leniência também. É o perigo do que chamo da canibalização dos órgãos e dos instrumentos de leniência. Para que os instrumentos se somem e não se canibalizem, isso ainda é uma dificuldade no Brasil e é talvez a principal barreira a ser vencida num futuro próximo, se a gente quer continuar tendo um Estado que vai detectar ilícitos múltiplos, que envolvem várias esferas, que são os grandes ilícitos.
Vemos essa dificuldade de coordenação na Lei Anticorrupção…
Hoje, uma empresa que está envolvida em algum ilícito que envolve múltiplos crimes, como corrupção, cartel, lavagem, fraude e etc. tem que passar por inúmeros balcões, caso ele queira cooperar e fazer uma leniência, um acordo, ou não. É isso, a interação entre esses múltiplos órgãos pode ser altamente positiva e catapultar as investigações ou, se não for bem feita, pode minar as investigações. É papel nosso fazer com que seja o primeiro caminho e não o segundo caminho.