O cenário é conhecido. Enfrentamos uma demanda crescente e exponencial do mercado de trabalho por profissionais das áreas de engenharia, desenvolvedores de software e tecnologia da informação. O aumento da capacidade computacional e de modelos de negócios inovadores torna a realidade cada vez mais virtual e a necessidade por mão-de-obra qualificada e computadorizada cada vez maior.
Por outro lado, trabalhar para uma grande empresa cada vez menos está nos planos de engenheiros de software e profissionais da área de tecnologia. A autonomia que o empreendedorismo proporciona é muito atrativa e, quando somada a possibilidade de multiplicar o investimento inicial em criar uma startup, torna o vôo solo opção cada vez mais escolhida.
Cabe pontuar que a tecnologia se faz grata aliada, trazendo consigo consideráveis reduções de orçamentos estruturais para montar o próprio negócio, em especial para startups de base tecnológica, permitindo que empreendedores com know-how se posicionem competitivamente no mercado. Com isso, a demanda, que já era alta, tende a aumentar e o cenário de escassez de profissionais, de evasão e de competitividade é notório.
O panorama induz o surgimento de um interessante fenômeno no Vale do Silício denominado de Acqui-Hiring, neologismo criado para definir a aquisição (“acquisition”), por parte de grandes empresas, de startups em early-stage com a intenção de obter para si talentos contidos no âmbito de startups que buscam escalar seus negócios no mercado (“hiring”).
Empresas líderes no mercado de tecnologia, como o Google, o Facebook e a brasileira Nubank vem efetuando operações de acqui-hiring com vistas a suprir a intensa e crescente demanda por profissionais ligados à área de tecnologia, em especial engenheiros de software que já possuem projetos e operações em curso, com alta capacidade de agregar valor por terem participado ativamente na concepção, desenvolvimento e acabamento de produtos tecnológicos de ponta.
Apesar de serem transações amplamente noticiadas na mídia, chamando a atenção de investidores e empreendedores, trata-se de instituto pouco abordado em termos acadêmicos[1]. Por ser recente e híbrido, possui pouca literatura apta a oferecer background teórico, precedentes jurídicos pacificados e doutrina uníssona. Persiste, assim, lacuna teórica e negligência intelectual sobre o assunto, ganhando importância a análise de situações fáticas para uma ampla gama de áreas.
De qualquer modo, trata-se de movimento estratégico de recrutamento com alto teor de sucesso que, em um mercado dinâmico e volátil, possibilitando a retenção de talentos, o desenvolvimento de novas tecnologias e sobrevivência de muitas empresas (e o fim de outras). Mas de fato vale a pena para empresas iniciar um processo de M&A para contratar profissionais?
Fato é que a operação de Acqui-Hiring necessariamente está imbuída de uma série de deveres e responsabilidades que devem ser observadas, normalmente as mesmas ligadas a transações empresariais costumeiras. O dever de cuidado (duty of care) em relação a acionistas e stakeholders, devendo os responsáveis pela operação atuarem de forma informada, límpida e honesta, equilibrando a balança de interesses.
Também subsiste o dever de lealdade (duty of loyalty), que preconiza o dever dos diretores de pautar suas ações com base nos melhores interesses de todos os envolvidos. Podemos mencionar também responsabilidades fiscais e contratuais de todos os envolvidos. É evidente, por isso, que a decisão de seguir em frente com uma transação de acqui-hiring passa por muitas fases de avaliação de viabilidade, com a consequentemente ponderação dos prós e contras envolvidos em prosseguir com a operação.
A comunidade de early adopters[2], por exemplo, vê com maus olhos o alastramento do fenômeno de acqui-hiring, pois o mesmo indica a facilidade com que empresas de base tecnológica podem ser descontinuadas[3], afetando a perenidade do uso de serviços e produtos no tempo.
Além disso, o cenário é incerto quando se analisa a possibilidade de continuidade dos funcionários na empresa adquirente. Isso porque não há qualquer tipo de proteção jurídica que garanta sua permanência, apresentando taxas de rotatividade significativamente maiores do que trabalhadores contratados pelo método formal[4]. A ausência de voz ativa desses profissionais, que raramente estão elencados voluntariamente na nova empresa, é o grande motivador de um descompasso organizacional.
No entanto, cada vez mais empresas optam pelo referido procedimento em vez de optarem pelo rito padrão de contratação de funcionários. São três os principais fatores que impulsionam a abordagem estratégica de uma operação de acqui-hiring: incorporar ao time profissionais de ponta para elaborar estratégia corporativa em torno do produto principal; impulsionar a inovação com o objetivo de trazer novos funcionários para desenvolver um produto novo e trazer talentos novos para melhorar a oferta de um produto já existente.[5]
A possibilidade de incorporar, em uma única grande transação, um time completo e entrosado de profissionais, com mesmo método e forma de trabalho, é bastante atraente. Dessa forma, a operação de acqui-hiring permite que o adquirente adquira novas competências de forma rápida e orgânica, facilitando a reconfiguração dos profissionais ao novo ambiente de trabalho. Terceiriza-se a inovação, mesclando a estrutura de uma grande empresa com o dinamismo e as boas ideias de uma startup.
Do ponto de vista jurídico, são muitos os desafios, mas o tema de propriedade intelectual é o que mais chamará a atenção dentro de uma operação de operação de acqui-hiring. Se tomarmos como referência um típico procedimento de due diligence, teremos, inicialmente, as exigências do investidor-comprador baseadas no rígido mapeamento do know-how da empresa a ser adquirida. A ausência de uma mínima governança em propriedade intelectual, como no exemplo da ausência de cessões de direitos autorais dos desenvolvedores que atuaram na startup ou que ainda atuam como colaboradores, a possibilidade de saída repentina de cérebros ou um baixo número de depósitos naquela autarquia federal, representarão uma operação acqui-hiring de alto risco ou, quando muito, de valuation baixo. Nessas condições, portanto, o perfil típico das startups em early-stage, desapegadas a processos organizacionais minimamente estruturados, sem uma preocupação no mapeamento da propriedade intelectual e concentração do know-how em seu poder de controle, constituirão um tripé nocivo em suas pretensões de ser adquirida ou se fundir com outras empresas com recursos abundantes para desembolsos de altas cifras.
Como disse o cofundador da gigante Facebook – empresa entusiasta da ferramenta de contratação através de aquisição: “Nós compramos companhias para conseguir excelentes pessoas.”[6]. As operações de acqui-hiring vão muito além do desembolso de significativas cifras.
[1] BHARGAVA, Neha; VENUGOPALAN, Vishwanath. Acqui-Hires: Revolutioninzing Strategy & Transforming Organizational Structures. MBA Research Fellowship at the Wharton Mack Center for Technological Innovation, 2013.
[2] Adotantes iniciais de novos produtos, serviços e tecnologias, por vezes antes mesmo destes serem lançados ao grande público. Entusiastas de novas tecnologias que se propoem a experimentação, tornando-se os primeiros clientes de startups em estágio inicial.
[4] KIM, J. Daniel. Startup Acquisitions as a Hiring Strategy: Worker Choice and Turnover. Wharton School, University of Pennsylvania, 2020
[5] MORALES, Omar. Factors that lead to retention of acquired engineers at Microsoft in Silicon Valley, 2017. Theses and Dissertations. 851. https://digitalcommons.pepperdine.edu/etd/851
[6] Tradução livre: “We buy companies to get excellent people”.