A inovação tecnológica encontra um desafio particular na área da saúde: a efetividade de se incorporar um novo tratamento ou equipamento sem desequilibrar financeiramente o sistema, para garantir que ele permaneça prestando atendimento a todos. O tema foi um dos destaques da 52ª Convenção Nacional Unimed, realizada em Brasília na semana passada, entre os dias 3 e 5 de outubro.
“O ideal seria que pudéssemos acompanhar a incorporação das novas tecnologias no mundo real, para saber se elas de fato trazem os benefícios prometidos. Será que os pacientes estão vivendo mais? Hoje, temos poucos dados”, afirmou a engenheira de produção e mestre em avaliações econômicas para avaliação de tecnologias em saúde Vanessa Teich, do Hospital Israelita Albert Einstein.
Na avaliação de Teich, para provar o benefício em saúde, uma nova tecnologia precisa ser capaz de melhorar a qualidade de vida ou aumentar o tempo de vida do paciente. Só a partir dessa constatação será possível estimar se valeria incorporá-la ao rol de tratamentos já existentes – no Sistema Único de Saúde (SUS) e também na saúde suplementar.
Além disso, é preciso considerar quanto o novo tratamento agrega de custo ao sistema, “comparando o preço praticado hoje ao preço do novo tratamento”, completa.
Segundo Teich, um desafio para a saúde suplementar é identificar o custo adicional máximo que pode ser implementado sem gerar custo excessivo para os beneficiários das operadoras de planos de saúde – caso ele seja muito elevado, o custeio pode se tornar inacessível.
“No SUS, há um orçamento definido. No sistema suplementar, não há. Novas tecnologias podem levar a um aumento de custo equivalente a R$ 40 mil por pessoa ao ano”, exemplificou a especialista. Por isso, a situação desafia combinar acesso à saúde com a capacidade de pagamento da sociedade, seja por meio dos impostos que financiam o SUS, seja por meio das mensalidades dos planos.
Alternativas para o sistema de saúde
O evento também pautou fatores críticos para a sustentabilidade dos planos de saúde, como a integração com o setor público, o fortalecimento da gestão clínica e da inovação e a redução dos conflitos que chegam ao Judiciário. “Os planos de saúde são parte da solução para levar assistência de qualidade a mais brasileiros. Mas, sem sustentabilidade, não há inclusão”, afirmou o presidente da Unimed do Brasil, Omar Abujamra Junior.
A Convenção contou também com a participação, durante a abertura, do vice-presidente da República, Geraldo Alckmin; do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira; do ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e corregedor nacional de Justiça, Luis Felipe Salomão; do presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), Paulo Rebello; do presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), José Hiran da Silva Gallo; do presidente da Associação Médica Brasileira (AMB), Cesar Eduardo Fernandes; e do presidente da Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB), Marcio Lopes de Freitas, além de deputados federais e outras lideranças do setor da saúde e do cooperativismo.
Os últimos anos têm sido de desafios para a saúde suplementar no país. Dados divulgados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) demonstram que, em 2022, o setor teve seu pior resultado desde 2001, início da série histórica da agência. No ano passado, as operadoras de planos de saúde tiveram prejuízo operacional de R$10,7 bilhões.
Entre os fatores que impactam esses resultados estão: o crescimento da frequência de uso dos planos de saúde; o fim da limitação de consultas e sessões de terapias ambulatoriais; o aumento do preço de procedimentos e insumos médicos; a obrigatoriedade da oferta de tratamentos cada vez mais caros, com doses a cifras milionárias por paciente, sem um processo adequado de avaliação de sua efetividade e impacto econômico; a ocorrência de fraudes; e a judicialização.
Para os especialistas, autoridades e representantes do setor que participaram da Convenção, é preciso encontrar uma solução que garanta equilíbrio e estabeleça contornos para incorporações de tecnologias, tratamentos e medicamentos que deverão ser fornecidos pelas operadoras de saúde.
Cooperação e gestão clínica
“Precisamos trabalhar mais em conjunto com o setor público, porque o desafio da incorporação de medicações de alto custo é nacional”, disse durante o evento Luis Fernando Rolim Sampaio, diretor executivo da Seguros Unimed. O médico participou de mesa sobre as oportunidades de cooperação público-privada para tornar o sistema de saúde mais eficiente e inclusivo.
Na prática, o aumento dos custos no sistema de saúde suplementar pode pressionar o SUS – uma das consequências lógicas é que, se o setor privado não der conta de prestar atendimento, esses beneficiários precisariam migrar para os equipamentos públicos.
“Precisamos trabalhar mais em conjunto com o setor público, porque o desafio da incorporação de medicações de alto custo é nacional.”
“Não conseguimos deixar de olhar para o setor privado como um desafio de implementar uma política nacional de atenção especializada”, afirmou Iris Vinha, coordenadora-geral de atenção hospitalar do Ministério da Saúde.
Nessa linha, seria preciso fazer uma revisão da tabela SUS, que define quanto uma instituição conveniada receberá para prestar atendimento – segundo ela, cerca de 60% dos atendimentos de alta complexidade são prestados por hospitais filantrópicos, que muitas vezes atendem também a saúde suplementar.
“Assim como há a necessidade de ampliação de acesso a partir da construção e distribuição de serviços de saúde. Quase 60% dos hospitais brasileiros prestam serviços ao SUS direta ou indiretamente”, comentou. “Precisamos estar bem regulados localmente. O Ministério precisa parar de ser uma espécie de ‘banco’, que libera o recurso, e começar de fato a olhar para que esse sistema seja eficiente, apoiando os estados e municípios”.
Também tema central na agenda para tornar o sistema mais eficiente é o fortalecimento da gestão clínica por parte das operadoras de planos de saúde. Nesse sentido, o médico de família Gustavo Gusso afirma que é preciso mudar a lógica do setor, permitindo uma melhor coordenação da jornada do paciente e a detecção de doenças antes que elas se desenvolvam ou se agravem.
“Se fizermos com que o paciente seja filtrado pelo sistema de saúde [sendo direcionado ao especialista a partir de uma avaliação clínica inicial], o valor preditivo aumenta muito, o que é demonstrado estatisticamente. É importante entender que não tem como se fazer um sistema de saúde ideal sem esse filtro”, destaca.
Segundo Gusso, a gestão clínica colabora para a assertividade do diagnóstico de doenças graves. Um exemplo seria a prevalência de câncer colorretal na população, em torno de 0,1%. Entre os pacientes que buscam diretamente um especialista por conta de sintomas, essa prevalência aumenta para 2%.
Em comparação, quando a “filtragem” é feita por um médico generalista, que avalia previamente o paciente e o encaminha ao especialista com base em critérios clínicos, esse percentual sobe para 36%, o que otimiza todo o processo assistencial. Assim, o especialista, em vez de lidar com inúmeros “alarmes falsos”, pode dedicar-se aos casos com maior probabilidade de doença e a, efetivamente, tratar os pacientes com câncer.
Judicialização da saúde
Outro fator que desafia o setor é a judicialização – quando um paciente busca o Judiciário para obter um tratamento que não faz parte do rol de coberturas. De acordo o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e corregedor nacional de Justiça, Luis Felipe Salomão, “a saúde suplementar foi ganhando corpo, acompanhando a evolução dos tempos, com grande relevância para a população em geral. No Brasil, se suprimida a saúde suplementar, é provável que o sistema de saúde público quebre”.
“No Brasil, se suprimida a saúde suplementar, é provável que o sistema de saúde público quebre.”
O ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, também do STJ, defendeu a busca de soluções consensuais para conflitos relativos à saúde como ferramenta para a sustentabilidade do setor.
“Precisamos olhar para a maneira como gerimos o Poder Judiciário. O Brasil é um país escasso em juízes e precisamos olhar com mais cuidado para que a assistência judiciária seja fornecida por critérios objetivos a quem realmente precisa. Mas também a jurisprudência trazida com a inovação do CPC [Código de Processo Civil] tem soluções que promovem mais previsibilidade jurídica”, destacou.
Na visão de Maria Lúcia Pizzoti Mendes, desembargadora e coordenadora do núcleo de métodos consensuais do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), uma solução para diminuir o litígio na saúde – questão que atinge tanto o sistema público quanto a saúde suplementar – seria implementar alternativas extrajudiciais, como a mediação, antes do início de um processo.
“O processo não pode ser uma via de comunicação porque ele não permite que ninguém se comunique. O cliente não consegue se comunicar com o juiz, assim como as empresas também não conseguem de forma efetiva”, disse durante sua participação na Convenção.
De acordo com Pizzoti, nos cinco primeiros meses de 2023, o número de ações na Justiça de São Paulo envolvendo planos de saúde bateu o montante de processos em todo o ano de 2022. “Precisamos encontrar uma via de solução dos problemas, pois as operadoras não querem perder os clientes, e estes não querem perder o plano de saúde”, pontuou.
Para colaborar com isso, ela organiza um programa de conciliação que será lançado em São Paulo no início de novembro, destinado às operadoras de planos de saúde e aos beneficiários. “Nós temos na Justiça um processo caro, que às vezes vai levar dez anos [até a conclusão]. A mediação encurta esse caminho e reduz os custos, porque ela pode ser feita antes do início da ação judicial”, avaliou Pizzoti.
Inovação e tecnologias digitais
Parte da solução passa pela capacidade de inovar. Em outro painel da Convenção, Mark Britnell, professor da University College London (UCL) e da Universidade de Toronto, defendeu que, “sem uma estratégia nacional e organizações locais tomando conta do seu próprio ‘destino’”, não haverá como promover inovação sustentável na saúde.
Ele é autor de livros sobre o tema comparando experiências internacionais sobre financiamento e sustentabilidade de sistemas de saúde – “Human: Solving the Global Workforce Crisis in Healthcare” e “In Search for the perfect health system”, nas edições em inglês.
Britnell ressaltou que são necessárias vontade política, competência da gestão e colaboração dos profissionais de saúde para acelerar a inovação visando a sustentabilidade do sistema de saúde, assim como para manter as alternativas encontradas no longo prazo.
“Às vezes é difícil inovar por questões políticas. Isso é comum em vários lugares do mundo. Todas essas organizações públicas, privadas ou de filantropia enfrentam o mesmo problema. Quando olhamos para inovação é preciso pensar como podemos melhorar. Existem poucas soluções, e é mais uma questão de adaptação de um sistema complexo”, ressaltou.
Ele pontua, ainda, que falar em inovação requer considerar o tripé formado por invenção, adaptação e difusão. “O medo é um componente principal para parar a inovação. Eu acredito que a falta de confiança que caracteriza os sistemas de saúde está atrasando os avanços na área”, alertou.
Além disso, a inovação seria central para acompanhar as mudanças no perfil da população, que passou a viver mais, o que pode pressionar os sistemas de saúde que não se adaptarem. Britnell apontou que, nos últimos 60 anos, globalmente a população passou a viver quase duas décadas a mais.
“No entanto, infelizmente, a proporção de tempo que as pessoas vivem em situações precárias não mudou, o que é um agravo para pessoas que vivem com doenças crônicas. A inovação na saúde precisa ser implementada para melhorar esse quadro”, afirmou.
As novas tecnologias para lidar com essa nova realidade passariam por soluções simples, como aquelas que promovam a redução do tempo que os médicos gastam com atividades administrativas no consultório, por exemplo – estimado atualmente em 30% a 40%. Isso deixaria os profissionais livres para atuar onde são mais efetivos, como no atendimento direto à população.
“A proporção de tempo que as pessoas vivem em situações precárias não mudou, o que é um agravo para pessoas que vivem com doenças crônicas. A inovação na saúde precisa ser implementada para melhorar esse quadro.”
“Hoje é possível criar um hospital administrado totalmente de forma digital por meio da internet das coisas; desde a entrada do paciente ao monitoramento em tempo real por meio de um centro de comando dentro ou fora do hospital”, disse Britnell ao citar exemplos como os da Índia e da Arábia Saudita, que testam o modelo.
Segundo ele, com a digitalização e a internet das coisas seria possível reduzir as internações em 70%. Além disso, algoritmos que monitoram se há um acréscimo ou decréscimo na respiração e na frequência cardíaca de pacientes, por exemplo, poderiam promover uma redução significativa dos custos de uma internação.
“Isso tudo é acionado por inteligência artificial, fazendo com que o médico atue de forma mais eficiente, e todo sistema funcione de modo mais inteligente”, explicou.