Luiz Orlando Carneiro
Foi repórter e colunista do JOTA
O Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria para permitir o compartilhamento de dados de órgãos de controle com o Ministério Público, para fins penais, sem a intermediação do Judiciário. No entanto, ainda falta definir os termos e a abrangência. No total, seis votos foram dados, mas a divergência, aberta por Alexandre de Moraes, foi seguida por outros quatro ministros.
O voto de Dias Toffoli, relator do caso, era mais restrito: para ele, no caso da Receita Federal, há que se diferenciar dados globais de detalhados — que não podem ser compartilhados sem quebra de sigilo por parte do Judiciário. Por outro lado, Rosa e Barroso ressalvaram que, para eles, o STF não poderia incluir o Coaf no julgamento, que deveria se restringir apenas à Receita.
Nesta quarta-feira (27/11), a sessão foi encerrada depois que quatro votos foram colhidos. O julgamento será retomado nesta quinta. Faltam votar Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Celso de Mello. O Supremo analisa a possibilidade de compartilhamento de dados da Receita e do antigo Coaf, hoje Unidade de Inteligência Financeira (UIF), sem autorização judicial. A posição foi manifestada na sessão plenária do Supremo Tribunal Federal (STF) na retomada do julgamento sobre o envio de informações.
Para Moraes, não há a necessidade de distinguir dados globais de detalhados quanto à Receita: todos podem ser compartilhados. Luiz Edson Fachin, Rosa Weber, Luís Roberto Barroso e Luiz Fux acompanharam o entendimento.
As discussão se dá no RE 1.055.941. Em 15 de julho, Toffoli suspendeu todos os processos judiciais com dados compartilhados pelos órgãos de fiscalização instaurados à revelia de supervisão do Judiciário no país. Entraram na decisão os inquéritos e procedimentos de investigação criminal (PICs) dos MPs Federal e estaduais.
Só a partir deste momento, o caso passou a tratar também da UIF. A decisão foi dada em resposta à defesa do senador Flávio Bolsonaro (PSL). Mais tarde, o filho do presidente da República entrou com uma reclamação no STF dizendo que o MP ainda assim seguia com a investigação. Toffoli afirmou que, como se tratava de um caso concreto, a reclamação deveria ser redistribuída. Gilmar Mendes se tornou relator e mandou parar a apuração.
O ministro Luiz Edson Fachin foi o primeiro a votar na sessão, retomando o julgamento. Ele sublinhou que se trata de um recurso extraordinário muito específico, contra decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), que anulou ação penal em razão do compartilhamento de dados pela Receita Federal com o MP sem autorização judicial.
Segundo o TRF3, os dados abrangeriam sigilo bancário e, portanto, estariam condicionados à prévia autorização judicial para serem compartilhados para fins de investigação criminal ou instrução processual penal. No caso, o tribunal entendeu que o crime contra a ordem tributária estava demonstrado exclusivamente com base nas informações compartilhadas.
O ministro diz, no entanto, que, no julgamento, deu-se apenas a expansão do que deve ser a repercussão geral em RE. A decisão referente ao senador Flávio Bolsonaro (PSL), de suspensão da investigação contra ele movida pelo MP do Rio de Janeiro, foi tomada, frisou, numa reclamação (RCL 36.679), relatada pelo ministro Gilmar Mendes. O RE é de relatoria de Dias Toffoli.
Fachin, assim como Alexandre de Moraes, entendeu constitucional o compartilhamento de todos os dados da Receita e relatórios da UIF com os órgãos de persecução penal. Para ele, os direitos fundamentais não podem servir de escudo para a atuação de organizações criminosas.
O ministro considera viável a "irrestrita remessa das informações coletadas pelo Fisco, bem como da integralidade do procedimento fiscalizatório, sendo desnecessária, em ambos os casos, prévia autorização judicial”. Para ele, é possível o compartilhamento de informações entre o Fisco e o Ministério Público, quer quando referentes a montantes globais, independentemente da instauração de procedimento fiscal, quer quando, tendo havido procedimento fiscal, compreenda contas, extratos bancários, depósitos e aplicações financeiras.
Quanto ao antigo Coaf, Fachin afirmou que a instituição financeira tem o dever jurídico de comunicar às autoridades qualquer irregularidade. “É dever dos servidores públicos federais, dentre eles, o de levar a conhecimento da autoridade competente as irregularidades cuja ciência é fruto do exercício do cargo”, disse. Para ele, o compartilhamento dos dados não merece censura.
Fachin cita o jurista Gustavo Badaró, que representou o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) da tribuna, mas que sustentou em sentido oposto ao voto do ministro. Badaró argumentou pela importância de definir de forma clara as funções de cada órgão para coibir abusos do Estado contra os cidadãos. "Toda concentração de poderes é perigosa e precisa de controle para evitar arbítrio. Por isso, o Estado não deve concentrar, num mesmo ente ou instituição, o poder informacional e o poder da persecução penal", disse o advogado na sustentação oral, ressaltando o direito ao sigilo.
Na sequência, o ministro Luís Roberto Barroso votou. Antes, no entanto, ele pediu desculpas ao presidente do STF, Dias Toffoli. Isso porque, na saída da sessão da última quarta-feira (20/11), o ministro disse que precisaria "chamar um professor de javanês" para explicar o voto do presidente. Barroso fez referência a um conto de Lima Barreto: O Homem que Sabia Javanês. De acordo com ele, foi "captado por microfone poderoso" quando já estava no Salão Branco, ou seja, fora do plenário. "O comentário trazia a picardia legítima de uma roda de amigos e não constituía declaração pública”, afirmou.
Ao voltar ao tema em discussão, Barroso recusou, inicialmente, abranger o Coaf no julgamento para seguir "a linha minimalista que temos adotado aqui em matéria de repercussão geral". Por fim, ele acompanhou a proposta de tese de Alexandre de Moraes.
"O caso em questão envolvia tão somente o acesso pela Receita aos dados do contribuinte e seu compartilhamento com o Ministério Público. Em rigor técnico, portanto, a decisão deveria se cingir a esses pontos. Porém, como a decisão cautelar se estendeu a outros temas – como COAF/UIF, Banco Central e CVM –, e tendo em vista que esta matéria é importantíssima para o enfrentamento da lavagem de dinheiro e o cumprimento de obrigações internacionais do Brasil, por exceção absoluta, estendo minha decisão também para as demais situações."
Barroso fez, então, uma análise da situação do país. Ele diz que o Brasil vive a necessidade de enfrentar três tipos de crimes: a criminalidade violenta, a organizada (facções criminosas, tráfico de drogas e armas) e a institucionalizada (lavagem de dinheiro).
Essa discussão está, de acordo com ele, num momento de disputa de narrativas. "Muita gente quer transformar a indignação nacional numa trama para perseguir gente honesta. Há uma tentativa de reescrever a história. Tudo seria uma conspiração de policiais federais e procuradores", criticou.
O ministro abordou, então, o caso de Flávio Bolsonaro. Ele lembrou que a defesa do senador protocolou em 15 de julho uma petição avulsa, em que sustentou que o processo criminal instaurado pelo Ministério Público fluminense teve como fundamento a quebra de sigilo de dados pelo Coaf. "Entendeu o requerente em postulação engenhosa que haveria inequívoca similaridade com a matéria dessa repercussão geral e obteve a suspensão de seu processo e na mesma decisão fossem suspensos também todos processos e inquéritos que versavam sobre o tema na repercussão geral”, disse.
Ao criticar a posição que defende a autorização judicial para o compartilhamento de dados, Barroso afirmou que "não precisamos nem de mais uma etapa burocrática nem de mais um recurso". Ele apontou ainda que as duas turmas da Corte têm decisões no sentido de que é legítima uso de dados da Receita pelo MP para fins de persecução penal.
Por outro lado, o ministro ressaltou: "todos os atos devem ser formais. Não há espaço para pedidos informais, curiosidade, bisbilhotice. Ninguém nessa vida deve ser protegido, ninguém deve ser perseguido. Tudo deve seguir critérios objetivos".
Em seguida, a ministra Rosa Weber, ao votar, da mesma forma que Barroso, também afirmou que o objeto da repercussão geral deve se limitar ao compartilhamento de dados da Receita com o MP e a Polícia Judiciária, e não deve envolver a UIF (ex-Coaf), cuja finalidade não se confunde com a Receita. Ela enfatizou a importância da observância do devido processo constitucional. Rosa afirmou que a repercussão geral é pressuposto especial de admissibilidade do RE e este também exige o pré-questionamento da matéria a se julgar.
De acordo com ela, não há inconstitucionalidade na previsão de envio de dados de eventual prática de sonegação fiscal ao MP. A simples comunicação não configura quebra de sigilo. O que é necessário é que se respeite o rito previsto. Rosa diz que o STF tem admitido que provas resultantes de quebra de sigilo sejam compartilhadas para fins de instrução penal. Ela cita Moraes: as limitações impostas ao inquérito administrativo fiscal existem e são claras. Não se justifica impor condicionantes ao compartilhamento.
Para a ministra, o MP pode ter acesso aos dados do processo administrativo, mas resguardado sempre o sigilo. Ela afirma, ainda, que vai aguardar a discussão sobre a tese para tratar da UIF, mas que reputa constitucional o compartilhamento integral dos dados, observada a LC 105.
Por fim, votou o ministro Luiz Fux. Ele defendeu que a Receita Federal está sujeita ao Código Tributário, que diz não ser vedada a divulgação de informações fiscais para fins penais. Em relação ao ex-Coaf (UIF), Fux disse que é possível requerer aos órgãos competentes dados sobre pessoas envolvidas em atividades suspeitas. De acordo com o ministro, tais registros podem ser apresentados ao MP.
Dados fiscais não estão, para Fux, coberto pelas proibições do artigo 5º da Constituição Federal, quais sejam, dos sigilos bancário e telefônico. O ministro assentou que a intermediação do Judiciário na comunicação entre Receita e MP violaria a própria titularidade do MP na ação penal. "Não se pode exigir que a Receita e a UIF peçam licença ao juiz para fornecer dados sobre operações suspeitas de lavagem de dinheiro", disse, acompanhando a divergência aberta por Moraes.