Depois de 20 anos, como se nada houvesse acontecido, os talibãs voltaram ao poder. E, ao que parece, estão mais fortes do que nunca: sabem operar a tecnologia contemporânea, se comunicar pelas redes sociais, coletar dados biométricos e até fazer memes.
O Afeganistão é um lugar tão belo quanto inóspito: não tem contato com o oceano e é cortado por montanhas gigantescas. Seu clima atinge extremos de calor e frio, demandando versatilidade dos grupos que habitam este país. Sua posição estratégica, no meio da antiga Rota da Seda, atrai atenção de poderes históricos. Por isso, o recém-nomeado Emirado Islâmico do Afeganistão possui um apelido sugestivo: o Cemitério de Impérios.
Na Guerra Fria, a União Soviética também não sucedeu: foi repelida por uma milícia apoiada pelos estadunidenses, os mujahideen. Com o vácuo de poder após a saída dos soviéticos, facções entraram em conflito pelo comando. A vencedora foi a facção dos “estudantes” ou, na língua pashto, “Taliban”.
Entre 1996 e 2001, os talibãs dominaram o país, impondo o regime rigoroso da sharia e ganhando fama através do completo desrespeito aos direitos humanos e apoio ao terrorismo. Lá, protagonizaram eventos horripilantes, como as execuções em estádios de futebol, o apoio à Al-Qaeda e a violência contra mulheres e meninas, como a jovem Malala. Com a notícia de que, após os atentados de 11 de setembro, o regime talibã abrigava o terrorista Osama Bin Laden, teve início a ocupação americana do Afeganistão.
Hoje, a antiga imagem dos talibãs, rurais e ultrapassados, já não existe mais. Em um mundo de tecnologias exponenciais, o perigo também é maior: estamos diante do Talibã 4.0.
Como parte de sua ideologia antiocidental, o Talibã se orgulhava de rejeitar a modernidade. O regime, inclusive, chegou a banir o uso da internet nos anos 90. Especialistas remontam que, por volta de 2007, o grupo operou uma virada epistemológica: se a tecnologia era vista como uma ameaça, a partir de então, ela se tornaria uma ferramenta para viabilizar seu projeto de poder.
Em 2011, já se noticiava que o grupo realizava ataques por meio do ciberespaço e, em 2018, o New York Times avisava: “The Taliban have gone high-tech. That poses a dilemma for the US”. O jornal falava do uso de equipamentos modernos, como óculos de visão noturna e lasers infravermelho. Entretanto, o que a recente reconquista do Afeganistão demonstrou é que, além da tecnologia militar, os talibãs também dominam o jogo comum do ambiente digital.
Hoje, a indústria, o mercado financeiro e o setor jurídico querem ser 4.0. E o Talibã, que, segundo a OTAN, opera uma rede avaliada em bilhões de dólares, não é diferente. Existem três fatores que marcam a relação preocupante do fundamentalismo com a quarta revolução industrial: a comunicação instantânea através da internet, o uso de armamento sofisticado e a conquista de um big data deixado pelo fim da ocupação americana.
Neste contexto 4.0, uma imagem resume o que é o Talibã atual. Em agosto de 2021, celebrando a retomada de Cabul, extremistas reencenaram a célebre foto em que soldados hasteiam a bandeira dos EUA em Iwo Jima, tirada no final da Segunda Guerra. Logo após a saída dos americanos, soldados talibãs decidiram se vestir com equipamento militar estadunidense de alta tecnologia e hastear a bandeira branca e preta do Talibã.
A reencenação foi feita em tom jocoso, divulgada com frases provocativas pelas redes sociais e demonstrou que os talibãs possuem e operam equipamento sofisticado, além de dominarem a comunicação em massa, usando uma simples fotografia como meme, afirmação de poder e provocação aos EUA.
Tal especialização no uso das redes sociais se intensificou no início dos anos 2010, com a notícia de que grupos terroristas como o Estado Islâmico utilizavam o ambiente digital para recrutar militantes e espalhar propaganda. O maior símbolo do terror 4.0 talvez seja a divulgação de execuções espetacularizadas e filmadas com equipamento profissional.
Nesta guerra simbólica, o grupo extremista também se espalhou através de canais como o Youtube, o Twitter e os aplicativos como WhatsApp e Telegram. Apesar da insistência na moderação de conteúdo, o Talibã se mostrou resiliente, conseguindo engajar seus seguidores mesmo trocando frequentemente de plataforma. Esse fator foi essencial para que o mundo soubesse – em tempo real – das conquistas talibãs, servindo como forma de intimidação dos opositores e de mobilização dos aliados.
Além da afirmação digital da narrativa ultra religiosa, o poderio bélico do grupo também se sofisticou após a chegada e partida dos EUA. A guerra é sempre responsável pela intensificação do desenvolvimento tecnológico. Se a Segunda Guerra começou com cavalos e biplanos, se encerrou com radares, caças de guerra e bombas atômicas. Contudo, se a Guerra do Afeganistão trouxe pouco progresso tecnológico para os EUA, o MIT Technology Review afirma que o Talibã aproveitou a ocupação como um verdadeiro workshop.
Em 2001, eram um grupo munido de morteiros e fuzis soviéticos ultrapassados. Hoje, possuem sistemas de geolocalização e comunicação estratégica, bombas acionáveis por celular e dispositivos de análise biométrica. Isso sem mencionar que, segundo a BBC, herdaram 73 aeronaves, 100 veículos blindados, 2.500 jipes militares, centenas de mísseis e baterias de artilharia, explosivos e pelo menos 3.600 rifles M4 Carbine. Porém, o que mais chama atenção é a herança de equipamentos capazes de verificar a identidade da população afegã.
Além dos armamentos sofisticados, o jornal The Intercept[1] relata que o Talibã conquistou dispositivos chamados de HIIDE (sigla traduzível para ‘equipamento de uso manual para detecção de identidade’). Esses aparelhos cruzam dados biométricos e informações pessoais com as bases de dados oficiais do Afeganistão, fornecendo um insight detalhado sobre a população afegã para um Talibã cada vez mais interessado no uso de dados pessoais para finalidades políticas.
Voltemos alguns anos no tempo. Em 2016, um ônibus com 200 passageiros foi interceptado por extremistas talibãs. Os passageiros foram obrigados a inserir seus dedos em dispositivos de escaneamento e 12 passageiros foram executados após serem identificados como membros do exército afegão[2].
O caso indica que, ainda na ilegalidade, o Talibã já buscava acesso a bases de dados nacionais e via na biometria uma potente ferramenta para identificação de inimigos. Não à toa, legislações como o GDPR e a LGPD entendem que dados relativos à filiação política e biometria devem ser tratados com maior rigor e segurança.
Agora, controlando o país, o grupo tem acesso a um vasto repositório de informações que contém mais de 40 tipos de dado por pessoa identificada, permitindo a detecção de membros do exército afegão e da polícia afegã. O sistema APPS (Afghan Personnel and Pay System) foi criado para possibilitar a organização das forças militares afegãs, mas não possuía medidas básicas de compliance em proteção de dados[3].
Coletava dados em excesso, registrando até preferências alimentares dos soldados, e não possuía qualquer plano de emergência para um retorno do Talibã ao poder. Um sistema chave para a geopolítica global, mas fora de qualquer padrão razoável de proteção de dados e privacidade.
Sendo assim, os militantes extremistas possuem, com relação a cada soldado, dados como alocação militar, especialidade, nome de parentes próximos e outras informações que põem em risco não somente os titulares, mas suas famílias e comunidades.
A construção do APPS só foi possível porque o Afeganistão não possuía qualquer legislação em matéria de proteção de dados, permitindo o saciamento do apetite voraz dos americanos por dados pessoais da população afegã. Além do APPS, outras bases de dados mais amplas estão em posse do Talibã, como a AABBIS, antes controlada pelo governo afegão, que possui dados sobre pelo menos 8 milhões de cidadãos afegãos.
Esses dados poderão ser facilmente utilizados para perseguir jornalistas independentes, militantes da oposição ou lideranças feministas que se insurgem contra a retirada dos direitos das mulheres afegãs.
O big data caiu nas mãos erradas e, ao que parece, essas mãos já estão acostumadas à tecnologia. Como se vê, estamos diante de um grupo perigoso que abandonou a tecnofobia e abraçou a modernidade, entendendo que as promessas da quarta revolução industrial podem ser direcionadas para as mais diversas finalidades espúrias.
Hoje, o Talibã faz promessas de moderação. Afirmam que não perseguirão aqueles que colaboraram com a ocupação americana, que não oprimirão as minorias religiosas e que não retirarão os direitos das mulheres.
Contudo, os primeiros indícios são os piores possíveis: segundo relata a Anistia Internacional, o Talibã já passou a “registrar” todos que trabalharam para os governos afegão e estadunidense. Ainda, segundo a Anistia e a ONU, o grupo terrorista já começou a executar os dissidentes, além de ter massacrado membros da etnia hazara ao conquistar a província de Ghazni.
Tais notícias demonstram que todas profundas mudanças tecnológicas e sociais também terão influência na guerra e na paz. Se a Segunda Revolução Industrial permitiu o surgimento da lâmpada elétrica, também gerou a metralhadora automática e a bomba atômica.
Com a quarta revolução, não será diferente. Somos radicalmente favoráveis ao progresso tecnológico e contrários à tecnofobia. Contudo, o mundo não é um mar de rosas. Everybody wants to be 4.0. Até militantes violentos e ultra religiosos do interior do Afeganistão.
[1] Disponível em: <https://theintercept.com/2021/08/17/afghanistan-taliban-military-biometrics/>.
[2] Disponível em: <https://tolonews.com/afghanistan/taliban-used-biometric-system-during-kunduz-kidnapping>.
[3] Disponível em: <https://www.technologyreview.com/2021/08/30/1033941/afghanistan-biometric-databases-us-military-40-data-points/>.