Prezados leitores do JOTA,
Recentemente, noticiou-se[1] que a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) vai decidir, sob o rito dos recursos repetitivos, se é possível ou não ao magistrado, observando a fundamentação, o contraditório e a proporcionalidade da medida, a adoção de modo subsidiário, de meios executivos atípicos no processo civil.
No acórdão de afetação, compreendeu-se que o tema tem sido objeto de inúmeras decisões colegiadas e monocráticas no âmbito daquela Corte Superior, de modo a demonstrar o caráter multitudinário da questão subjacente, ensejando-se o exame em caráter repetitivo[2]. Antes, portanto, de examinar a questão na execução fiscal, cabe uma pequena incursão pelo tema, de modo genérico.
Sem dúvida, urge que se forme um precedente obrigatório, no âmbito daquela Corte Superior, no tocante aos parâmetros para a adoção das medidas executivas atípicas, no processo civil, visto que, até o presente momento, o que se tem são decisões extraídas de recursos especiais esparsos, não afetados pela sistemática dos repetitivos, sem a força, portanto, de impor observância aos juízes e tribunais espalhados pelo país.
Não custa ainda ressaltar que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) a ADI 5941/DF, ajuizada pelo Partido dos Trabalhadores, a fim de que se defina se é constitucional a determinação da apreensão da carteira nacional de habilitação e/ou suspensão do direito de dirigir, da apreensão de passaporte, da proibição de participação em concurso e licitação, com pauta prevista para 23 de junho do ano em curso.
A verdade é que, seja no STF ou no STJ, faz-se extremamente importante, em nome da segurança jurídica, uma definição objetiva quanto à possibilidade de adoção e, em se confirmando, a indicação dos parâmetros e limites para que tais medidas venham a ser estipuladas pelos magistrados.
Enquanto não surgem os precedentes, é de se dizer que, de uma maneira geral, a maioria dos ministros do STJ tem adotado uma linha – o que nos dá um norte do que provavelmente virá a ser a definição da Segunda Seção – que toma em conta os parâmetros estabelecidos em dois julgados de 2019[3], na 3ª Turma, sob a relatoria da ministra Nancy Andrighi. Basicamente, o que se tem entendido é que as situações devem ser analisadas casuisticamente, não havendo uma negativa genérica e abstrata a impedir a concessão dessas medidas. Apontam-se, como parâmetros, a proporcionalidade, a subsidiariedade, a fundamentação, o contraditório e a existência de mínimos indícios de que o devedor tem patrimônio e o está ocultando, para que a medida coercitiva não se torne punitiva.
Intriga-nos, no entanto, a injustificável rejeição que se tem detectado no STJ – e isso não parece que virá a ser dirimido nem no repetitivo afetado recentemente e nem na ADI em curso no STF – quanto à incidência dessas medidas atípicas em sede de execução fiscal.
Mais que injustificável, soa contraditória a posição que se extrai no STJ, justamente porque a execução fiscal é o grande gargalo do Poder Judiciário. Segundo dados da Pesquisa Justiça em Números 2021[4], do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2020 estavam em curso mais de 75,4 milhões de processos, com 52,3% deles em fase de execução. Desses, 68% eram fruto de cobrança de dívidas da Fazenda Pública, representando uma taxa de congestionamento de 87%, com uma duração média de tramitação de 8 anos e 1 mês.
Mas que razões levam o STJ, ao menos até o presente momento, a rejeitar as medidas executivas atípicas nos processos de execução fiscal?
O primeiro julgado que pode ser apontado como referência no tema se deu no âmbito da 1ª Turma da Corte.[5]Cuidava-se originariamente de executivo fiscal contra o ex-prefeito de Foz do Iguaçu (PR). Em primeiro grau, foi determinada a penhora de 30% do salário recebido pelo ex-prefeito na Companhia de Saneamento do Paraná, com a retenção do valor em folha de pagamento. Posteriormente, o Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) deferiu pedido do município para inscrever o réu em cadastro de inadimplentes, nos órgãos de proteção de crédito, e suspendeu seu passaporte e sua Carteira Nacional de Habilitação, como forma de coagi-lo a pagar a dívida.
Por apertada maioria (3 a 2), o colegiado concedeu a ordem, determinando a exclusão das medidas atípicas constantes do aresto do TJPR. Segundo o voto do relator, tratando-se de Execução Fiscal, o raciocínio toma outros rumos quando medidas aflitivas pessoais atípicas são colocadas em vigência nesse procedimento de satisfação de créditos fiscais. Ainda de acordo com o voto, o Estado é superprivilegiado em sua condição de credor, porque dispõe de varas comumente especializadas para condução de seus feitos, um corpo de Procuradores altamente devotado a essas causas, e possui lei própria regedora do procedimento (Lei 6.830/1980), com privilégios processuais irredarguíveis. Assim, sendo o crédito fiscal altamente blindado dos riscos de inadimplemento, por sua própria conformação jusprocedimental, a suspensão da CNH e do passaporte representaria um excesso.
Por sua vez, a 2ª Turma do STJ[6], seguindo este julgado acima referido, decidiu à unanimidade não conhecer de recurso, esposando entendimento de que as medidas atípicas aflitivas pessoais não se firmam placidamente no executivo fiscal, de modo que a aplicação delas, neste contexto, resultaria em excessos, conforme afirmado no precedente referido no parágrafo anterior.[7]
Há vozes na doutrina que sustentam ser digno de aplausos tal posicionamento do STJ. Conforme André Pagani de Souza, o tratamento dado ao fisco já é de ampla vantagem no processo de execução fiscal e lhe conferir mais vantagens do que já tem resultaria em um processo extremamente injusto e viabilizador de excessos, o que desmoralizaria o próprio Estado-juiz como distribuidor de justiça, sacrificando um interesse genuinamente público, comprometendo a credibilidade do cidadão em todo o sistema de justiça.[8]
Com a devida vênia, ousamos discordar desse entendimento. A existência de um procedimento próprio para as execuções fiscais, com algumas prerrogativas processuais atribuídas ao poder público, não deve servir de condão para obstar a adoção de quaisquer medidas tendentes a assegurar a efetividade da execução, inclusive aquelas atípicas, desde que, repita-se, sejam respeitados os parâmetros da subsidiariedade, fundamentação, proporcionalidade, contraditório e indícios de ocultação de patrimônio.[9]
Ora, o tratamento diferenciado dado ao Poder Público nos feitos executivos fiscais decorre da própria natureza do crédito, e não da presença da Fazenda na lide. Tanto é assim que há alguns entes que não são – a rigor – pessoas jurídicas de direito público e, por circunstâncias diversas, promovem execuções fiscais, como a Confederação Nacional da Agricultura, os conselhos de fiscalização profissional e a Caixa Econômica Federal. Esses entes, vale dizer, não possuem as mesmas prerrogativas da Fazenda Pública.
Outrossim, a justificativa da existência de varas privativas, citada no acórdão da 1ª Turma do STJ, tampouco se sustenta, porque isso não atende aos interesses da Fazenda Pública credora, mas, sim à organização do próprio Poder Judiciário.
Também não se é de ignorar a parcela de contribuição que, no cenário atual, o Poder Público tem dado em relação à dívida ativa, ultrapassando-se aquela visão tradicional de ajuizamento indiscriminado, às vésperas da prescrição. Não à toa, instrumentos como os negócios processuais, as transações tributárias e a escolha dos créditos a serem executados, com base no rating da dívida, são prova cabal dessa mudança de paradigma. No âmbito federal, por exemplo, a Fazenda Pública já não ajuíza execuções fiscais nas quais o valor seja menor do que R$ 20 mil[10].
Fora isso, é de se destacar que já se tem observado, por muitos magistrados e cortes do país, a flexibilização, muitas vezes sem respaldo legal, de algumas prerrogativas da Fazenda na execução fiscal, como a interpretação de que se dispensa a prévia garantia do juízo para o oferecimento de embargos, contrariando o art. 16, § 1º, da Lei 6.830/80.
Não parece razoável ignorar ainda a prevalência do interesse público. Ora, admite-se a incidência das medidas atípicas, muitas vezes até mesmo contra o poder público[11], fazendo prevalecer o interesse privado, mas não se admite em benefício da Fazenda, em executivos fiscais? Não se estaria reduzindo a dívida ativa (dinheiro público) a um patamar inferior?
Ao que se nos parece, os entendimentos aqui apresentados, no âmbito da 1ª e da 2ª Turmas do STJ, afiguram-se mais, com o devido respeito, uma resposta crítica ao tratamento diferenciado que historicamente a Fazenda Pública dispôs nas relações processuais, que argumentos jurídicos aptos a justificar a não incidência de tais medidas nas execuções fiscais.
Não por menos, Marcos Youji Minami defende a aplicabilidade de medidas atípicas em execução fiscal, mesmo com o entendimento (ainda incipiente) do STJ pelo não cabimento. Afirma o autor que “em situações de ineficiência dos meios típicos previstos, não há, em tese, impedimentos para as medidas atípicas nas execuções fiscais”[12], desde que, diz ele, respeitados determinados parâmetros, conforme apontamos linhas acima.
Ora, se o art. 139, IV, é cláusula geral executiva, e não há no CPC ou na LEF uma vírgula sequer excetuando ditas medidas atípicas nas execuções fiscais, está o STJ extrapolando os limites legais ao rejeitar a aplicação. Pelo próprio posicionamento não unânime verificado na 1ª Turma, revelar-se-ia crucial também a afetação de algum recurso ao regime dos repetitivos, para que se pudesse debater o assunto de maneira mais ampla e, assim, chegar a um precedente vinculante também em relação a este tema.
[1] https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/11042022-Repetitivo-vai-definir-se-o-magistrado-pode-adotar--de-modo-subsidiario--meios-executivos-atipicos.aspx, acesso em 19 de abril de 2022.
[2] ProAfR no REsp 1955539/SP, Rel. Min. Marco Buzzi, Segunda Seção, STJ, julg. 29/03/2022.
[3] REsp 1.782.418/RJ e REsp 1.788.950/MT, 3ª Turma, STJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 23.04.2019.
[4] https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/09/relatorio-justica-em-numeros2021-12.pdf, acesso em 20 de abril de 2021.
[5] HC 453870/PR, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 25/06/2019.
[6] REsp 1802611/RO, Rel. Ministro Og Fernandes, julgado em 08/10/2019.
[7] Na mesma Segunda Turma, no AgInt no REsp 1921066/PB, sob a relatoria do Ministro Mauro Campbell Marques, julgado em 16/11/2021, e no AgInt no REsp 1859654/PB, sob a relatoria do Ministro Herman Benjamim, julgado em 01/09/2020, decidiu-se estritamente na mesma linha de raciocínio.
[8] SOUZA, André Pagani de. Medidas executivas atípicas são inadequadas para execuções fiscais. In https://www.migalhas.com.br/coluna/cpc-na-pratica/358731/medidas-executivas-atipicas-sao-inadequadas-para-execucoes-fiscais, acesso em 20 de abril de 2022.
[9] PEIXOTO, Marco Aurélio Ventura; PEIXOTO, Renata Cortez Vieira. Fazenda Pública e Execução. 2. Ed.
Salvador: Jus Podivm, 2021, p. 139.
[10] Art. 20 da Lei 10.522/02 - Serão arquivados, sem baixa na distribuição, por meio de requerimento do Procurador da Fazenda Nacional, os autos das execuções fiscais de débitos inscritos em dívida ativa da União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados, de valor consolidado igual ou inferior àquele estabelecido em ato do Procurador-Geral da Fazenda Nacional.
Ato do Procurador-Geral, atualmente, fixa o limite em R$ 20.000,00 (vinte mil reais).
[11] Sobre o assunto da incidência das medidas atípicas contra o Poder Público, ver: PEIXOTO, Marco Aurélio Ventura; SOARES, Patrícia de Almeida Montalvão; PEIXOTO, Renata Cortez Vieira. Das medidas atípicas de coerção contra o poder público: aplicabilidade e limites. In TALAMINI, Eduardo; MINAMI, Marcos Youji (coord). Medidas executivas atípicas. 2. Ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2020, pp. 153/178.
[12] MINAMI, Marcos Youji. Da vedação ao non factibile: uma introdução às medidas executivas atípicas. Salvador: Editora JusPodivm, 2020, 2ª edição, p. 262.