Tida informalmente como a xerife do mercado de capitais brasileiro, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) é a autarquia da administração pública federal que tem a responsabilidade de fiscalizar todas as atividades do mercado.
Ao fazê-lo, a CVM produz Direito. Nem sempre, todavia, sua aplicação segue um caminho coeso, de direcionamento claro. Quando a coesão não vem, a insegurança ocupa o espaço.
O tema do conflito de interesses nas sociedades anônimas e nos fundos de investimento emoldura com precisão o retrato da falta de direcionamento harmonizado das decisões do colegiado da CVM em temas conceituais relevantes.
Ao longo dos últimos 20 anos, ao julgar casos emblemáticos envolvendo conflitos de interesse, a CVM reiteradamente oscilou em seu entendimento, ora interpretando o conflito como formal, ora como material, o que resultou em seguidas decisões discrepantes.
Situações como essa não são compatíveis com o atual estágio de evolução do mercado de capitais brasileiro. Precisamos encontrar o caminho da estabilidade e da segurança do Direito produzido pela CVM.
As decisões da CVM são proferidas por um colegiado formado por cinco pessoas: o presidente da autarquia e quatro diretores. Em temas polêmicos, as opiniões dos membros do colegiado eventualmente divergem. E quando ocorre a substituição de um integrante do colegiado por outro que tenha entendimento antagônico, pode naturalmente ocorrer uma mudança de posicionamento da CVM. Assim, acaba por faltar, ao colegiado, colegialidade.
A produção do Direito aplicado, que deveria funcionar com a segurança de uma bússola, apontando sempre para o mesmo norte de solução em casos idênticos, acaba funcionando mais como uma biruta, virando, mesmo em casos conceitualmente idênticos, para a posição do entendimento prevalente daquela específica composição de colegiado da data de cada julgamento.
E haja mudança de colegiado. Desde a sua criação, em 1976, a CVM já teve 77 diretores diferentes. Oito nomeados ao longo da década de 1970, 27 ao longo da década de 1980, 20 longo da década de 1990, 11 ao longo da primeira década deste século, 10 ao longo da década de 2010 e um na década atual, em 2021[1]. Em adição, nesse mesmo espaço de tempo a CVM teve também 19 presidentes distintos. Assim, ao todo, a autarquia já teve praticamente uma centena de distintas formações de colegiado ao longo de seus 45 anos, o que representa, em uma visão simplista, mais de duas diferentes formações de colegiado por ano.
Seu corpo técnico, este sim estável, é de altíssima qualidade nas mais diferentes superintendências e produz excelentes manifestações técnicas. Mas a rotatividade dos membros do colegiado, cada qual com sua própria e individual formação e visão de mundo, conduz a uma dificuldade natural de formação de direcionamento decisório em questões conceituais, por mais que o debate se dê em alto nível de proficiência.
Mas o Direito aplicado pela CVM em casos conceituais análogos não deveria comportar decisões radicalmente opostas, se alternando, mudando de lado ao sabor de opiniões individuais que deveriam se render à prevalência da unicidade de um entendimento colegiado. O colegiado da CVM precisa ser dotado de um instrumento que lhe permita exarar decisões com efeito vinculante e de aplicação geral em relação a temas que sejam dotados de relevância e transcendência, isto é, temas que sejam de alto impacto econômico ou jurídico e que, concomitantemente, sejam recorrentes.
Com um mecanismo como esse, o colegiado da CVM poderia, no julgamento de um determinado processo administrativo, incidentalmente declarar que determinada questão conceitual do caso fosse reconhecida como de repercussão geral e de aplicação vertical a todos os casos presentes e futuros, funcionando como uma súmula de jurisprudência administrativa da CVM.
Teríamos, assim, a forçosa aplicação do princípio da colegialidade, através do qual, em julgamentos subsequentes, um membro de colegiado estaria obrigado a votar segundo a orientação já firmada pela autarquia, mesmo que seu entendimento pessoal fosse divergente.
Para que houvesse respaldo a que o presidente e os diretores da CVM agissem de forma efetivamente colegiada em questões repetitivas, respeitando o entendimento prévio definido pelo próprio colegiado da autarquia em detrimento de eventuais posições individuais divergentes, deveria haver uma mudança no regimento interno da CVM.
A Lei nº 6.385/76, em seu artigo 6º, § 7º, diz que a CVM funcionará como órgão de deliberação colegiada de acordo com seu regimento interno, e no qual serão fixadas as atribuições do presidente, dos diretores e colegiado.
Assim, o regimento interno da CVM poderia prever a possibilidade de que determinadas decisões do colegiado, dentro de determinados parâmetros, pudessem ser tomadas com força de repercussão geral para temas de notória relevância para o mercado.
A implantação de um mecanismo de expedição de súmulas de jurisprudência administrativa da CVM, com força vinculante e de observância mandatória, seria um significativo passo de afirmação da importância da autoridade, de suas decisões e da segurança jurídica como princípio de Direito.
[1] https://www.gov.br/cvm/pt-br/acesso-a-informacao-cvm/institucional/antigos-colegiados