Foi sancionada no dia 09/03/2015 mais uma importante novidade legislativa. Trata-se da Lei n. 13.104/2015 que, em linhas gerais, prevê o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio.
A Lei é de autoria da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da [simple_tooltip content=’Investigação da situação da violência contra a mulher no Brasil. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=130748&tp=1>. Acesso em 31 mai. 2015′]Violência contra a Mulher[/simple_tooltip]. Com a sanção presidencial, o assassinato de mulher por razões de gênero (quando envolver violência doméstica e familiar ou menosprezo e discriminação à condição de mulher) passa a ser incluído entre os tipos de homicídio qualificado.
De maneira específica, a Lei n. 13.104/15, considera feminicídio quando o crime é praticado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino: quando envolver violência doméstica e familiar ou menosprezo e discriminação contra a condição de mulher. A pena prevista para homicídio qualificado é de reclusão de 12 a 30 anos.
A violência contra as mulheres tem deixado uma ferida intensa e dolorida. Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Sangari, com base nos dados do Sistema Único de Saúde, denominada Mapa da Violência no Brasil 2012 demonstrou que entre 1997 e 2007, 41.532 mulheres foram assassinadas no Brasil; ou seja, em média 10 mulheres foram assassinadas por dia ou ainda, [simple_tooltip content=’WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da violência 2012: a cor dos homicídios no Brasil. Disponível em: <http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2012/mapa2012_cor.pdf>. Acesso em 03 mai. 2015 ‘]4,2 assassinadas por 100.000 habitantes[/simple_tooltip].
A agressão contra as mulheres se explica desde a perspectiva das relações desiguais de poder entre as mulheres e homens, que se expressa através de distintas formas de discriminação, exclusão e exploração. A normalização da violência é tão excessiva que impregna o nosso cotidiano, passa a fazer parte de uma realidade quase inalterável e na interiorização desta por parte das próprias mulheres que atuam com base em um padrão de submissão imposto pela cultura patriarcal.
A violência normalizada se transmite e se reproduz socialmente nas ideias, valores e práticas. Ditas manifestações alcançam todos os âmbitos da vida das mulheres e claramente intervém nos distintos espaços da vida das mulheres nos quais se desenvolvem, incluídas as instituições do Estado.
Temos assistido nos últimos tempos notícias nos jornais sobre o assassinato de mulheres pelo marido ou namorado, ex ou atual. Na verdade são crimes de violência contra a mulher que denotam a desigualdade de gênero. São geralmente noticiados como crimes “passionais”, como uma ocorrência policial comum sem revelar o que na verdade está por trás dessa realidade, o assassinato misógino de mulheres cometido por homens.
Grande parte dessas mulheres foi morta quando resolveu terminar a relação amorosa, demonstrando que a dominação masculina prepondera nestas relações. Além disso, a mesma dominação é revelada nos expedientes policiais, processuais e nos corredores dos fóruns. Muitos crimes contra as mulheres são investigados e julgados sem qualquer perspectiva de gênero. Não se leva em consideração as desigualdades entre homens e mulheres, a subordinação, a submissão da mulher nas relações. Muitas mulheres sequer acreditam que aquele homem, com quem conviveram, possa matá-las.
Sob a ótica de uma necessária e diferenciada proteção à mulher, o Brasil editou o Decreto n. 1.973, em 1º de agosto de 1996, promulgando a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, concluída em Belém do Pará, em 09 de junho de 1994.
Dispõe o art. 1º da referida Convenção:
Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada (grifo nosso).
Cumprindo as determinações contidas na referida Convenção, em 7 de agosto de 2006 foi publicada a Lei n. 11.340, criando mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do §8º do art. 226 da Constituição Federal, que ficou popularmente conhecida como “Lei Maria da Penha” que, além de dispor sobre as várias formas de violência contra as mulheres, criou os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e estabeleceu medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar, nos termos dispostos no art. 1º da mencionada Lei.
E agora, recentemente, com a edição da Lei n. 13.104/15 o Estado Brasileiro completa o sistema de proteção às mulheres, criando como modalidade de homicídio qualificado, o chamado feminicídio, que ocorre quando uma mulher vem a ser vítima de homicídio simplesmente por razões de sua condição de sexo feminino.
Destaco alguns pontos importantes da nova Lei.
I – Prevê o feminicídio como qualificadora do crime de homicídio quando é praticado contra a mulher(a) por razões da condição do sexo feminino(b);
II – Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolver:
a) violência doméstica e familiar contra a mulher;
b) ou menosprezo e discriminação contra a mulher.
III – prevê causas de aumento da pena de 1/3 até a metade se o crime for praticado:
ü durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto;
ü contra menor de 14 anos, maior de 60 ou pessoa com deficiência;
ü na presença de descendente ou ascendente da vítima.
IV– Considera-se crime hediondo;
Vejamos a seguir alguns comentários sobre cada um deles.
I – Prevê o feminicídio como qualificadora do crime de homicídio quando é praticado contra a mulher por razões da condição do sexo feminino;
a) Sujeito passivo: mulher
Para que possa incidir a qualificadora do feminicídio é necessário que o sujeito passivo seja uma mulher, e que o crime tenha sido cometido por razões da sua condição de sexo feminino. Assim, indaga-se, quem pode ser considerada mulher, para efeitos de reconhecimento do homicídio qualificado?
Existem três posições na doutrina para identificar a mulher com a finalidade de aplicar a qualificadora do [simple_tooltip content=’BARROS, Francisco Dirceu. Feminicídio e neocolpovulvoplastia: as implicações legais do conceito de mulher para os fins penais. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/37145/feminicidio-e-neocolpovulvoplastia>. Acesso em 15 jun. 2015’]feminicídio[/simple_tooltip], a saber:
1) O critério psicológico.
Existirá defesa no sentido de que se deve desconsiderar o critério biológico para identificar como mulher, toda aquela em que o psíquico ou o aspecto comportamental é feminino.
Adotando-se esse critério, matar alguém que fez a cirurgia de redesignação de gênero ou que, psicologicamente, acredita ser uma mulher, será aplicado a qualificadora do feminicídio.
2) O critério jurídico cível.
Deve ser considerado o sexo que consta no registro civil, ou seja, se houver decisão judicial para a alteração do registro de nascimento, alterando o sexo, teremos um novo conceito de mulher, que deixará de ser natural para ser um conceito de natureza jurídica.
3) O critério biológico.
Deve ser sempre considerado o critério biológico, ou seja, identifica-se a mulher em sua concepção genética ou cromossômica. Neste caso, como a cirurgia de redesignação de gênero altera a estética, mas não a concepção genética, não será possível a aplicação da qualificadora do feminicídio.
[simple_tooltip content=’BARROS, Francisco Dirceu. Feminicídio e neocolpovulvoplastia: as implicações legais do conceito de mulher para os fins penais. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/37145/feminicidio-e-neocolpovulvoplastia>. Acesso em 15 jun. 2015′]Francisco Dirceu Barros [/simple_tooltip] observou que o grande problema à utilização do critério psicológico para conceituar “mulher”, reside no fato de que o mesmo é formado pela convicção íntima da pessoa que entende pertencer ao sexo feminino, critério que pode ser, diante do caso concreto subjetivo, algo que não é compatível com o Direito Penal moderno.
De outro lado, o critério jurídico cível, data vênia, também não poderia ser aplicado, pois as Instâncias cível e penal são independentes; assim, a mudança jurídica no cível representaria algo que seria usado em prejuízo do réu, afrontando o princípio da proibição da analogia in malam partem, o corolário da legalidade proíbe a adequação típica “por semelhança” entre fatos.
Ademais, ainda na defesa do critério biológico, para Francisco Dirceu Barros, o legislador, mesmo sabendo que existem outros gêneros sexuais, não incluiu os transexuais, homossexuais, gays ou travestis, sendo peremptório ao afirmar que “considera-se que a há razões de gênero quando o crime envolve: ‘
[simple_tooltip content=’BARROS, Francisco Dirceu. Feminicídio e neocolpovulvoplastia: as implicações legais do conceito de mulher para os fins penais. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/37145/feminicidio-e-neocolpovulvoplastia>. Acesso em 15 jun. 2015’]menosprezo ou discriminação à condição de mulher[/simple_tooltip].'”
A frase prevista originalmente no projeto de lei “menosprezo ou discriminação à condição de gênero”, foi substituída por “menosprezo ou discriminação à condição de mulher”.
Para [simple_tooltip content=’GOMES, Luiz Flávio. Feminicídio: entenda as questões controvertidas da Lei 13.104/2015. Disponível em: <http://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/173139525/feminicidio-entenda-as-questoes-controvertidas-da-lei-13104-2015>. Acesso em 15 jun. 2015′] Luiz Flávio Gomes[/simple_tooltip], mulher se traduz num dado objetivo da natureza. Sua comprovação é empírica e sensorial. De acordo com o art. 5º, parágrafo único, a Lei n. 11.340/2006 deve ser aplicada, independentemente de orientação sexual. Na relação entre mulheres hetero ou transexual (sexo biológico não correspondente à identidade de gênero; sexo masculino e identidade de gênero feminina), caso haja violência baseada no gênero, pode caracterizar o feminicídio.
Assim, para este autor, no caso das relações homoafetivas masculinas definitivamente não se incidirá a qualificadora. A lei falou em mulher e por analogia não poderia aplicar a lei penal contra o réu. Não podemos admitir o feminicídio quando a vítima é um homem (ainda que de orientação sexual distinta da sua qualidade masculina).
Posição da autora: a qualificadora do feminicidio incide quando o sujeito passivo for mulher, entendido na minha forma de ver de acordo com o critério psicológico, ou seja, quando a pessoa se identificar com o sexo feminino, mesmo quando não tenha nascido com o sexo biológico feminino.
Em tese, não se admite analogia em desfavor do réu. No entanto, a Lei Maria da Penha já foi aplicada a mulher transexual por decisão da 1ª Vara Criminal da Comarca de Anápolis em Goiás, da lavra da Juíza Ana Claudia Veloso Magalhães (Processo n. 201103873908, TJGO).
A transexualidade caracteriza-se por uma contradição entre a identidade sexual ou de gênero com o sexo biológico, o que causa uma dificuldade terminológica. Pode ser considerada, portanto, mulher transexual o indivíduo que nasce com anatomia masculina e se identifica com o gênero feminino, e como homem transexual a pessoa que nasce com anatomia feminina, identificando-se com o [simple_tooltip content=’GONÇALVES, Camila de Jesus Mello. Transexualidade e direitos humanos: o reconhecimento da identidade de gênero entre os direitos da personalidade. Curitiba: Juruá, 2014, p. 66.’]sexo masculino[/simple_tooltip].
A mulher transexual é uma pessoa adulta que se identifica como sendo do sexo e gênero femininos, embora tenha sido geneticamente — e oficialmente, pelos pais, quando do nascimento — designada como pertencente ao sexo masculino. Portanto, em virtude da incongruência sexo versus mente (ou cérebro), uma mulher transexual reivindica o reconhecimento social e legal como mulher.
Tal quais as mulheres genéticas, as mulheres transexuais adotam nome, aparência e comportamentos femininos em razão de sua necessidade de querer e necessitar ser tratadas como quaisquer outras mulheres.
Além disso, a alteração que a Lei sofreu pouco tempo antes de ser aprovada, que substituiu o vocábulo “gênero” pela expressão “condição de sexo feminino”, na verdade não altera a interpretação, já que a expressão “por razões de sexo feminino” prende-se, igualmente, a razões de gênero. O legislador não almejou trazer uma qualificadora para a morte de mulheres. Se assim fosse bastaria ter colocado: Se o crime for cometido contra mulher, sem utilizar a expressão “por razões da condição de sexo feminino”.
Esse posicionamento é diverso do defendido por Thiago Mota (2015), no qual expõe que “somente as pessoas a quem o direito reconhece (civilmente) como mulheres podem ser o passivo do crime”, mas comenta a possibilidade de a transexual ser vítima do crime de feminicidio se esta tiver feito a cirurgia de redesignação de gênero e alterado o registro civil.
Portanto, entendemos que toda vez que uma mulher, assim entendido como toda pessoa que se identificar com o gênero feminino, independente da realização da cirurgia de mudança de sexo, for morta em razão desta condição, incidirá a qualificadora do feminicidio.
b) Requisito normativo: “razões da condição de sexo feminino”.
O Projeto que deu origem à Lei n. 13.104/2015 (PL 8.305/2014) sofreu, pouco tempo antes de ser aprovado, uma modificação: o termo “gênero” foi substituído pela expressão “condição de sexo feminino”.
No entanto, entendemos que esta modificação não altera a interpretação, já que a expressão “por razões da condição de sexo feminino” prende-se, da mesma forma, a razões de gênero.
Observa-se que o legislador não trouxe uma qualificadora para a morte de mulheres. Se assim fosse teria dito: “Se o crime é cometido contra a mulher”, sem utilizar a expressão “por razões da condição de sexo feminino”.
Uma vez explicado que a qualificadora não se refere a uma questão de sexo (categoria que pertence à biologia), mas a uma questão de gênero (atinente à sociologia, padrões sociais do papel que cada sexo desempenha) vale trazer algumas considerações sobre o assunto.
O conceito de gênero procura esclarecer as relações entre mulheres e homens. Ele apareceu após muitos anos de luta feminista e de formulação de várias tentativas de explicações teóricas sobre a opressão das mulheres. A ideia de que existe uma construção social do ser mulher já estava presente há muitos anos. Mas, permaneciam dificuldades teóricas sobre a origem da opressão das mulheres, sobre como inserir a visão da opressão das mulheres no conjunto das relações sociais, sobre a relação entre essa e outras opressões, como, por exemplo, a relação entre opressão das mulheres e capitalismo. Não existia uma explicação que articulasse os vários planos em que se dá a opressão sobre as mulheres (trabalho, família, sexualidade, poder, identidade) e, principalmente, uma explicação que apontasse com mais clareza os caminhos para a superação dessa opressão.
Assim como gênero, mulher também é um conceito complexo, marcado por conflitos e ambiguidade nos seus significados. De um lado, o termo se refere a uma construção – a mulher como representação – enquanto, de outro, se refere a pessoas ‘reais’ e a uma categoria social – a de mulheres como seres históricos, sujeitos de relações sociais. Contudo, existe uma grande lacuna entre uma e a outra construção, resvalando-se de uma para outra, e não apenas nos usos do conceito, mas também em nosso cotidiano enquanto mulheres de carne e osso (Sardemberg, 2014).
Nesse sentido, o conceito de gênero veio responder a vários desses impasses e permitir analisar tanto as relações de gênero quanto a construção da identidade de gênero em cada pessoa. O conceito de gênero foi trabalhado inicialmente pela antropologia e pela psicanálise, situando a construção das relações de gênero na definição das identidades feminina e masculina, como base para a existência de papéis sociais distintos e hierárquicos (desiguais).
Esse conceito coloca nitidamente o ser mulher e ser homem como uma construção social, a partir do que é estabelecido como feminino e masculino e dos papéis sociais destinados a cada um. Por isto, gênero, um termo cedido da gramática, foi o vocábulo escolhido para distinguir a construção social do masculino e feminino do sexo biológico.
Para a promotora de justiça Valeria Scarance.
(…) nenhum homem agride ou humilha a mulher no primeiro encontro. A dominação do homem se estabelece aos poucos. Inicialmente há a conquista e sedução. Depois, sob o manto do cuidado, tem início o controle, o isolamento da mulher dos amigos e familiares. Seguem-se ofensas, rebaixamento moral e agressão física. Estabelecem-se regras: chegar cedo, não fazer barulho, não usar roupas provocantes, não falar com outros homens, cozinhar e cuidar dos filhos, todas “para o bem da mulher e família”. O descumprimento dessas regras naturalizadas na relação justifica para o homem o ato violento e faz com que a vítima seja culpada pela [simple_tooltip content=’FERNANDES, Valéria Diez Scarance. Lei Maria da Penha e Gênero: quem é responsável pela violência contra as mulheres? Disponível em: <http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/lei-maria-da-penha-e-genero-quem-e-responsavel-pela-violencia-contra-as-mulheres/13635>. Acesso em 14 jun. 2015’]violência[/simple_tooltip].