Nos últimos cinco anos, atores diversos das sociedades mundo a fora têm se dedicado a encontrar o desenho ideal para garantir equilíbrio ao ambiente competitivo das plataformas digitais. O desafio principal é regular essa atividade de forma que não limite a inovação de um setor altamente tecnológico, mas, ao mesmo tempo, assegure salvaguardas para evitar abusos econômicos por parte das empresas dominantes desse mercado.
Neste ano, com o protagonismo adquirido por negócios mediadores de entregas em decorrência da pandemia da Covid-19, as maiores dores desse setor da economia foram evidenciados. A expectativa, por parte de quem acompanha o desenvolvimento regulatório das plataformas digitais, é que 2021 seja o divisor de águas para endereçar ao poder público essas questões.
Esse debate foi tema de um webinar realizado nesta quinta-feira (17/12) pelo JOTA, em parceria com a Associação Brasileira Online to Offline (ABO2O) e com o apoio do Innovation Xperience. Na conversa foram abordadas questões como práticas abusivas que preocupam, o papel dos estabelecimentos que realizam entregas durante os períodos de isolamento social, e as discussões que têm sido feitas por órgãos públicos.
Participaram do webinar Vitor Magnani, presidente da ABO2O, Fernando Blower, diretor executivo da Associação Nacional de Restaurantes (ANR), Gesner Oliveira, sócio da GO Associados e professor da FGV, e Célio Salles, representante da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel).
Foi unânime entre os convidados do debate que a projeção adquirida pelo delivery durante a pandemia nunca mais voltará aos patamares de antigamente. Justamente por isso, alguns desequilíbrios do setor começaram a ficar mais evidentes.
“Vivemos hoje uma crise econômica muito grave, porém, ela foi atenuada e um dos fatores para o tombo não ter sido maior foi justamente a economia digital. A possibilidade de conciliar as entregas de delivery, com o isolamento social”, disse Gesner Oliveira, professor da FGV. “Porém, há um risco nesse processo: a evolução dos mercados digitais acabar levando a uma possibilidade de concentração de práticas que acabam aniquilando aquilo que é o dinamismo da economia digital, que é a inovação”, acrescentou.
Neste contexto, há algumas práticas que foram destacadas pelos participantes como preocupantes. Entre elas está a possibilidade de os estabelecimentos comerciais fecharem contratos de exclusividade com determinada plataforma. Esse ponto, inclusive, já vem sendo discutido pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).
“O ambiente de restaurantes é de altíssima competitividade e facilmente induzido à prática de preços, que nem sempre são sustentáveis. Ao passo que, hoje, com os aplicativos mais famosos de abrangência nacional existe pouca oferta ou práticas que estão inibindo a competição. Esse desequilíbrio precisa ser tratado”, afirmou Célio Salles, da Abrasel.
“Por parte da ANR, a preocupação principal é em relação aos contratos de exclusividade. Hoje, o delivery não é mais atividade lateral, ele passou a ser estratégico e fundamental para subsistência desse negócio. O problema é quando, artificialmente, esses contratos de exclusividade não geram benefício para quem assinou, geram uma amarra. A empresa está presa na plataforma sem a possibilidade de migrar para um concorrente”, disse Fernando Blower.
Outras disfunções percebidas envolvem preocupações em relação às taxas cobradas, uma vez que os pequeno estabelecimentos, para conseguir ampliar sua venda, migraram um modelo de negócios até então desconhecido. “O delivery é uma outra atividade que, por acaso, vende comida, mas aquele estabelecimento que só tinha experiência do salão não conseguia fazer essa conta direito. Quando ele encontra taxas de 25% no full service, modelo que a plataforma faz toda a operação, ele acaba comendo toda a sua margem e no final do mês não sabe bem porquê”, avaliou Blower.
Além disso, apontou o diretor da ANR, há duas situações mais pontuais que precisam ser resolvidas. Uma delas envolve a segurança alimentar. “Nem todas as plataformas exigem dos novos entrantes licenciamento sanitário e alvará de funcionamento. Isso preocupa porque as que não correspondem às normas sanitárias geram perigo para a população e uma concorrência desleal interna, porque restaurante legalizado tem uma série de custos e encargos, que o informal não vai ter”.
A segunda, disse Blower, é em relação ao controle de plágio. “Essas marcas informais começam a se apropriar de pratos, imagens, e até da marca. Tem que ter um canal interno de solução de conflitos, uma auto regulação”.
Na avaliação de Vitor Magnani, da ABO2O, como o setor é extremamente novo e cresceu consideravelmente durante a pandemia, é indispensável debater questões regulatórias e de competitividade para a economia digital. “Sabemos que a pandemia impôs essa agenda de digitalização e é cada vez mais importante falar da ampliação da competitividade dentro desse segmento. A pandemia, além de afetar a maioria das startups, pode, de fato, colocar apenas alguns poucos atores ofertando essa tecnologia para encontrar esses clientes”, afirmou.
Nessa questão, Magnani pontuou que a aquisição e o engajamento de usuários, sejam eles clientes, entregadores ou restaurantes, são as principais causas da morte de startups dentro desse segmento no Brasil. “As plataformas maiores investem muito em marketing para trazer usuários. Isso que é importante. Essas plataformas digitais, para muitos lugares do país, foram essenciais uma vez que pequenos restaurantes não conseguiriam investir em propaganda e aquisição de novos consumidores se não fosse por meio dos aplicativos”, defendeu.
Esse desafiador contexto ainda com poucas respostas, na visão de Gesner Oliveira, evidencia a urgência de que toda a sociedade civil, entidades e poder público ajam com agilidade e celeridade para endereçar essas questões.
“Temos no Brasil uma autoridade antitruste competente, transparente e reconhecida internacionalmente que pode coibir rapidamente abusos do mercado. Acho que as autoridades estão de fato aprendendo as peculiaridades dos mercados digitais. Não acredito que seja necessário ter um órgão específico para tratar desse tema. O Cade tem se dedicado a ele, mas é preciso de agilidade”, defendeu.
“Estamos em meio a uma crise gravíssima, mas ao mesmo tempo há muitas oportunidades e elas passam pela economia digital certamente. Ao mesmo tempo, não podemos deixar que abusos de poder de mercado acabem anulando aquilo que na origem era a inovação que propiciava desenvolvimento. É essa delicada arte de conseguir equilíbrio: ter liberdade de inovação mas ter salvaguardas para rapidamente evitar abusos econômicos”, concluiu.