Nas próximas semanas, o Projeto de Lei 1998/2020, que regulamenta a telemedicina no Brasil, deve finalmente entrar na pauta da Câmara dos Deputados. Apresentado em abril de 2020 pela deputada federal Adriana Ventura (NOVO-SP), o texto, que autoriza e define a prática da telemedicina, ficou na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF), por um ano e sete meses. Divergências entre parlamentares e entidades do setor travaram a votação da proposta. Em dezembro do ano passado, porém, foi aprovada a urgência do projeto. A expectativa, agora, é que ele seja pautado na primeira semana de abril, conforme apuração da repórter Karla Gamba, que antecipou o fato aos assinantes do JOTA PRO Saúde, na newsletter Bastidores da Saúde da última sexta-feira (25/3).
Já não era sem tempo. Em abril de 2020, quando o novo coronavírus começou a se alastrar entre os brasileiros, a Lei 13.989/2020 liberou a prática da telemedicina em caráter emergencial, durante a crise sanitária. “Em breve, a gente vai sair da pandemia e a legislação temporária que permitiu a telessaúde não vai mais valer”, diz Antonio Britto, diretor executivo da Associação Nacional de Hospitais Particulares (Anahp). “Portanto, é indispensável que se chegue a um acordo rapidamente”,
O temor é o de que, sem regulamentação, decretado o controle da Covid-19, o exercício da telemedicina caia em um vácuo legal. “E, pior do que isso, fique sujeito a ser capturado pelas corporações. Por isso, estamos correndo para que o tema avance”, diz a deputada Adriana Ventura. “Vai ser uma vergonha para nosso país se isso não acontecer. Mais uma.”
Apesar da evolução acelerada das tecnologias médicas, até a pandemia da Covid-19 o exercício da telemedicina no Brasil estava estagnado no início do século 21, pautado por uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), de 2002. Uma época em que apenas e tão somente 7,68 milhões de brasileiros tinham acesso à internet – hoje, eles somam 152 milhões. “Vamos esperar o que mais para termos uma legislação adequada, em sintonia com os avanços da tecnologia?”, provoca o médico Antonio Carlos Endrigo, presidente da Comissão Digital, da Associação Médica Brasileira (AMB), e diretor de Tecnologia da Informação, da Associação Paulista de Medicina (APM). “Se isso não é urgente, não sei mais o que significa urgência.”
Nos últimos dois anos, foram realizadas 6 milhões de teleconsultas no Brasil, com uma taxa de resolução da ordem de 90%, indica pesquisa da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge). Ou seja, apenas um de cada dez pacientes atendidos virtualmente teve de ser encaminhado para a assistência presencial. As vantagens da telemedicina para médicos, pacientes e o sistema de saúde como um todo são incontestáveis. A principal delas, a ampliação do acesso da população à saúde. Importantíssimo em um país tão desigual, como o Brasil. Mas além da expansão dos cuidados, a telemedicina agiliza processos, melhora a qualidade da assistência, facilita o diagnóstico precoce e favorece a troca de informações entre profissionais. Os benefícios são tantos que, lembra a deputada Adriana Ventura, no Reino Unido, o National Health Service (NHS), modelo no qual foi inspirado o SUS, preconiza: a primeira consulta deve ser sempre virtual. É a melhor forma de garantir o paciente certo, no lugar certo – sem perda de tempo ou deslocamentos desnecessários.
O JOTA ouviu algumas das vozes mais ativas do setor para analisar os principais pontos de atrito do projeto de lei.
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O poder do Conselho Federal de Medicina (CFM)
No artigo sétimo do projeto de Adriana Ventura, lê-se: “O Conselho Federal de Medicina poderá regulamentar os procedimentos mínimos”. Enquanto o texto esteve na CSSF, o deputado Hiran Gonçalves (PP-RR), atual relator, já sinalizara sua intenção de alterar esse ponto da proposta. Para ele e seus aliados, o CFM deve ser o único órgão responsável pela regulamentação da prática da telemedicina.
Diversas entidades, como a AMB, APM e o Instituto Brasileiro das Organizações Sociais de Saúde (Ibross), defendem a tese da autora do texto. “O CFM não pode ter um papel autoritário e exclusivo, mas deve estipular os limites éticos sobre a prática da telemedicina”, diz Renilson Rehem, secretário-geral do Ibross. “O Código de Ética Médica, por exemplo, está baseado na relação presencial entre médicos e pacientes e precisa ser adequado à nova realidade.”
A primeira consulta no PL da Telemedicina
Pela proposta original, médicos e pacientes têm liberdade para definir o modelo do primeiro atendimento. Para alguns parlamentares, entretanto, essa consulta deve ser obrigatoriamente presencial. “Trata-se de uma discussão completamente non sense”, critica Antonio Carlos Endrigo. “É impedir o uso da telemedicina em sua plenitude, é colocar o Brasil no século passado.”
Além disso, muitos dos 5.570 municípios brasileiros não têm médico, lembra o diretor-executivo da Anahp. “Determinar que a primeira consulta seja presencial é determinar que não haverá telessaúde onde ela é mais necessária”, defende Antonio Britto. O neurologista José Luciano Monteiro Cunha, coordenador do Comitê de Telessaúde, da Abramge, concorda. Para ele, essa restrição tolhe a possibilidade de expansão do acesso à saúde.
Os médicos são unânimes em reforçar a importância do contato presencial entre os profissionais de saúde e seus pacientes. Mas há situações, argumentam, em que o encontro não é possível. Renilson Rehem propõe um exercício de imaginação. Suponha que uma grávida de uma comunidade ribeirinha, no Amazonas, passe mal e precise de assistência. Ela levará alguns dias até chegar a um hospital. Essa mulher deveria ser impedida de passar pelo atendimento virtual por meio da telemedicina? “Não podemos privar o possível em benefício do ideal”, defende o executivo do Ibross.
O registro médico para atuação na telemedicina
Como o médico só pode atuar no estado onde ele tem registro, para a prática da telemedicina, prevê-se a criação de um cadastro nacional. Esse debate, segundo representantes de diversas entidades médicas, não tem o menor sentido.
Em uma consulta virtual, o paciente pode estar em Rio Branco, Nova Iorque ou Tóquio, mas o médico continua em sua localização. E, como já acontece atualmente, ele vai responder ao Conselho Regional de Medicina (CRM) onde está habilitado. “Existe um arcabouço jurídico muito bem estruturado. Não há o que temer. Funciona muito bem do que jeito que está”, avalia Antonio Carlos Endrigo.
O valor das consultas na telemedicina
A proposta da deputada Adriana Ventura não faz nenhuma menção a valores das consultas virtuais, mas alguns parlamentares já manifestaram receio de que o pagamento do atendimento à distância acabe sendo inferior ao do presencial. Isso porque, a telemedicina, a princípio, prescindiria de alguns gastos, como o da manutenção do consultório.
Mas, o que entra na conta de um atendimento médico? Os custos com o espaço físico, o cafezinho oferecido na sala de espera e o salário das secretárias certamente aparecem nessa equação. O maior e mais importante investimento de um médico, no entanto, está na própria educação. O bom profissional da saúde está em constante formação. E esse é seu bem mais valioso – não a decoração de seu consultório. “Na telemedicina, exige-se muito mais conhecimento e experiência do médico. Portanto, não tem por que exigir um valor menor para o atendimento à distância. Se fosse para ser diferente, teria de ser maior”, defende Antonio Carlos Endrigo.
As operadoras dos planos de saúde defendem a livre negociação, diz o neurologista José Luciano Monteiro Cunha, da Abramge. “Assim, as empresas e os profissionais podem chegar a valores adequados para ambas as partes”, completa o coordenador do Comitê de Telessaúde, da Abramge. “Os ganhos trazidos pela telemedicina vão muito além do valor da consulta. Essa é uma visão muito curta sobre o assunto.”
Sobre a formação dos profissionais
O artigo oitavo do texto proposto pela deputada Adriana Ventura sugere como “boa prática a capacitação em telemedicina”. Todos estão de acordo. Há um problema, porém. Cerca de 1% apenas das 353 faculdades de medicina brasileiras oferecem a matéria. “As escolas têm o grande desafio de correr ao lado da tecnologia, para não ficar para trás”, diz Antonio Britto. “Precisamos que a formação médica no Brasil se preocupe com a qualidade e a qualidade passa também por reconhecer que existe um mundo novo a partir da revolução tecnológica.” Importante lembrar que há 400 mil médicos já em exercício no Brasil e cursos de extensão ou atualização em telessaúde, oferecidos por algumas entidades, como a APM.
Faz-se imprescindível também deixar claro que telemedicina, como argumenta Antonio Carlos Endrigo, não é uma ligação telefônica ou um contato por WhatsApp. “Consulta, como ensinando nas faculdades, é um processo com começo, meio e fim; que tem continuidade depois daquele fim”, explica o médico. “Além disso, no atendimento à distância, é fundamental que o médico saiba interagir com uma câmera e desenvolva percepções com as quais ele não está acostumado no presencial, por exemplo.”