Ainda sem muitos detalhes, o ministro Paulo Guedes iniciou a semana falando da possibilidade de governo e Congresso avançarem em uma versão mais enxuta da reforma do Imposto de Renda. Nos bastidores, as informações são de que as mudanças iriam se concentrar em uma redução de 34% para 30% na alíquota nominal do IRPJ/CSLL e na taxação de dividendos em 10%, medidas que estariam acopladas a um novo Refis para empresas médias e grandes.
Apesar de o enunciado parecer simples, o caminho é bem mais complicado do que parece. Envolve discussões tanto sobre efetivos ganhos de competitividade como de justiça fiscal no lamentavelmente bagunçado sistema tributário brasileiro.
É verdade que a falta de tributação dos dividendos, mesmo considerando-se que teoricamente ela existe embutida na alíquota do IRPJ/CSLL, é um ponto que fala contra o país em termos tributários. Isso fica ainda mais difícil de se defender quando se lembra que em qualquer ranking o Brasil aparece mal posicionado em termos de igualdade social.
Mas é preciso garantir que eventuais mudanças realmente coloquem o país na direção almejada. Sabe-se que um dos objetivos da reforma, mesmo nessa versão mais suave, é dar maior competitividade internacional às empresas que operam no Brasil. O outro é alinhar o país às práticas da OCDE, o clube de países ricos do qual esse governo quer que o país faça parte. Além disso, busca-se tributar mais um segmento de alta renda que hoje se livra facilmente das mordidas do Imposto de Renda.
Nesse sentido, especialistas levantaram à coluna alguns riscos. Ex-secretário da Receita e consultor na área tributária, Jorge Rachid avalia que há um risco de a reforma provocar mais complexidade tributária e aumentar os litígios dos contribuintes com o Fisco. Ele explica que taxar dividendos é legítimo, mas aponta que esse modelo, ainda que largamente utilizado no mundo, estimula práticas como distribuição disfarçada de lucros. Isso, por sua vez, exigiria maior esforço de fiscalização por parte de uma Receita que cada vez tem menos condições de cumprir suas funções. Além disso, as autuações certamente teriam disputa judicial.
Rachid defende o modelo atual, que concentra a tributação de lucros na empresa, mas reconhece que há um desafio importante em se avançar na justiça tributária. Ele aponta que há caminhos que podem ser mais eficazes. Por exemplo, cita a possibilidade de se melhorar a cobrança do Imposto de Renda nas empresas do lucro presumido. Esse sistema, explica, é bom porque simplifica a vida das companhias para o recolhimento de IRPJ. Mas acaba em muitos casos tributando menos o lucro do que deveria. Para ele, que chegou a propor mudanças quando esteve no cargo, é preciso buscar cobrar a parcela do lucro que não foi alcançada no recolhimento quando do recolhimento pelo sistema presumido.
Rachid alerta ainda para outras questões, como impactos na arrecadação e o fato de se estar em ano eleitoral, complicando qualquer decisão.
Para Daniel Loria, professor do Insper e sócio do Stocche Forbes Advogados, essa versão sem detalhes de uma reforma mais enxuta não parece caminhar nem na direção de maior equidade social e nem na de maior competitividade internacional. Ele destaca que mesmo ao reduzir a alíquota nominal para 30%, ainda que a efetiva seja mais baixa, o país se manteria distante da média da OCDE, em torno de 23%. “É um ajuste tímido”, disse.
Na questão dos dividendos, uma alíquota de 10% cobrada de maneira uniforme não teria efeitos no tema da justiça tributária. “Seria importante ter algum nível de progressividade, alguma faixa de isenção e diferenciação por capacidade contributiva”, comentou, também alertando para riscos de problemas como distribuição disfarçada de lucros. “Essa parece uma proposta de transição. Se for um formato final, não gosto desse desenho que está sendo falado. Acredito que a gente possa ter tributação de dividendos, desde que seja de forma bem estruturada”, apontou Loria, que também é coordenador da reforma do IR na Associação Brasileira das Companhias Abertas (Abrasca).
Em um capítulo no badalado livro “A Reconstrução do Brasil”, os economistas Rodrigo Orair, Theo Palomo e Laura Carvalho tratam do tema da progressividade no sistema tributário. Eles destacam que, “diante da preocupação com o acirramento das desigualdades sociais na era pós-pandemia, o renovado foco sobre estas dimensões de equidade tributária e sobre o papel do sistema tributário de regular as relações de renda e riqueza adquiriram ainda mais vigor”.
Nas estimativas deles, uma agenda de resgate da progressividade tributária combinada à tributação das emissões de carbono têm potencial de levantar receitas de até 2,2% do Produto Interno Bruto (PIB).
Defensores da tributação de dividendos, eles ponderam que apenas o retorno dessa taxação não resolveria os problemas tributários brasileiros, “já que manteria o desalinhamento de alíquotas, o desincentivo ao investimento em ativos produtivos e as brechas para elisão fiscal”.
Eles reforçam no livro o diagnóstico de que as experiências internacionais sugerem que o Brasil tributa muito no nível da empresa, quando comparado, por exemplo, com estas médias dos países da OCDE, onde prevalece uma tributação mais equilibrada entre os níveis da empresa e pessoal.
“Uma possível configuração para um modelo dual passa por estabelecer uma alíquota única de, digamos, 20% sobre uma base ampla de rendimentos do capital no nível pessoal (dividendos, aplicações financeiras e ganhos de capital) e sobre o lucro no nível da empresa”, apontam.
Mas a mensagem mais relevante dos especialistas é que, independentemente do formato, o mais importante é que se busque um modelo que confira tratamento mais consistente às diversas fontes de renda e, assim, elimine brechas para fenômenos de “transfiguração de renda”. “Caso contrário, há grande risco de que o resgate da progressividade não se concretize e que distorções atuais sejam até mesmo amplificadas, como pode ser o caso de inúmeras propostas simplistas de reforma do tipo ‘lista de mercado’ não atentas a tais riscos”, afirmam.
É difícil acreditar que mesmo uma reforma que só depende de projeto de lei avance com tamanha proximidade das eleições. É fato que o desafio da progressividade do sistema tributário é urgente de ser enfrentado e é preciso louvar o fato de que o Ministério da Economia esteja insistindo em pelo menos pautar a discussão dos dividendos. Que a discussão prossiga e amadureça. Que o exemplo da Previdência, cuja discussão amadureceu no governo Temer, mas foi concluída no atual, sirva de referência para o atual debate tributário.