Tatiane Moreira de Souza
Mestranda em direito tributário pela FGV Direito SP, com MBA em gestão tributária pela Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras (Fipecafi). Advogada em São Paulo
Não é possível falar em direitos e garantias individuais e coletivos, não é possível falarmos sobre o princípio da igualdade previsto no caput do artigo 5º, não é possível falarmos em desigualdade social e concentração de riqueza nas mãos de pequena parcela da população, sem antes debatermos o racismo estrutural que permeia todos os campos da nossa sociedade, que transcende o âmbito da ação individual ou de um grupo.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 56% da população brasileira é composta por pessoas negras, mas apesar disso continuam sendo 80% das pessoas em situação de pobreza no país; pretos e pardos que compõem a população negra do país é maioria entre trabalhadores desocupados (64,2%) ou subutilizados (66,1%), de acordo com Informativo Desigualdade Sociais por Cor ou Raça no Brasil, divulgado em 2020 pelo IBGE.
No que diz respeito à ocupação de cargos gerenciais, os negros são a minoria (29,9%). Pela divisão de trabalhadores por níveis de rendimento, apenas 11,9% dos maiores salários gerenciais são pagos a trabalhadores pretos e pardos, enquanto essa população ocupa 45,3% dos postos com menor remuneração [1]; estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) mostra que a cada 1 ponto percentual a mais na taxa de desemprego, as mulheres negras sofrem, em média, aumento de 1,5 ponto percentual [2].
Não há, nessas estatísticas, qualquer novidade, mas apesar disso continuamos a naturalizar o racismo, a negar a necessidade das políticas de ações afirmativas como a de cotas raciais.
É diante desse cenário que afirmamos que não é possível admitir a possibilidade de um projeto nacional de desenvolvimento, de superação das desigualdades, de efetivação dos objetivos e fundamentos da República Federativa do Brasil, estampados nos artigos 1º e 3º da Constituição Federal de 1988, que não enfrente o racismo em todos os campos, que não enfrente a desigualdade racial profundamente entranhada na alma da nossa sociedade.
Dentro dessa realidade incontestável, parafraseando Silvio Almeida[3], indagamos: o que nos leva a naturalizar o racismo? A naturalizar a ausência de pessoas negras em grandes bancas de advocacia? Em cargos de alta chefia e direção, nos tribunais, nas Supremas Cortes, nos altos estratos sociais? Por que achamos estranho quando avistamos um morador de rua branco, loiro e de olhos azuis, crianças loiras para adoção? Ou por que achamos estranho quando vemos médicos, CEOs e presidentes de multinacionais negros? Por que negamos as políticas de ações afirmativas?
Questões como essas apenas podem ser respondidas se compreendermos que o racismo, enquanto processo político e histórico, é também um processo de constituição de subjetividades, de indivíduos cuja consciência e afetos estão de algum modo conectados com as práticas sociais [4].
No Estado brasileiro, essa cultura negacionista do racismo, esse mito da democracia racial, sustenta-se pelo discurso da meritocracia, na medida em que para aqueles que defendem essa ideia não há racismo, visto que a culpa pela própria condição é das pessoas negras que, eventualmente, não fizeram tudo que estava a seu alcance; e também pelo discurso de que não há racismo, já que no Brasil são oferecidas oportunidades iguais para todos e todas.
Em um país desigual como o Brasil, a meritocracia confirma a desigualdade, a miséria e a violência, pois dificulta a tomada de posições políticas efetivas contra a discriminação racial, especialmente por parte do poder estatal. A meritocracia em si é altamente racista. Inclusive, neste contexto, trazemos a lume a citação de Eduardo Marinho, escritor brasileiro, segundo o qual “não há competição onde há desigualdade de condições, há covardia". E, por outro lado, o mito da democracia racial apenas fecha os olhos para a realidade incontestável do nosso país.
É dentro dessa conjectura que consideramos prudente o debate sobre a Lei de Cotas Raciais, que completa dez anos em 2022, especialmente considerando que a própria norma prevê sua revisão neste exercício, o que reacendeu a discussão sobre a questão e tem mobilizado o Legislativo.
A Lei de Cotas é motivada por um dever de reparação histórica decorrente da escravidão e de um racismo estrutural arraigado na sociedade brasileira, seja de maneira direta ou indireta, decorrendo também da falta de igualdade racial e representatividade das minorias nos cursos superiores e nos concursos públicos.
Temos, atualmente, duas leis específicas sobre cotas que incluem a temática racial: a Lei 12.711, de 29 de agosto de 2012, e a Lei 12.990, de 9 de junho de 2014. A primeira refere-se ao acesso às universidades públicas federais, enquanto a segunda disciplina os concursos públicos no âmbito federal.
A Lei 12.711/2012 prevê que 50% das vagas em universidades e institutos federais sejam direcionadas para pessoas que estudaram em escolas públicas. Desse total, metade é destinada à população com renda familiar de até 1,5 salário mínimo per capita.
A política de cotas têm permitido que mais pessoas da população negra e indígena tenham acesso ao ensino superior e este precisa ser um caminho sem volta, com fundamento, inclusive, na decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) ao julgar a Ação Direta de Constitucionalidade 41 Distrito Federal proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB).
Nesse julgamento, o Supremo fixou a seguinte tese: “É constitucional a reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública direta e indireta. É legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação, desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa”.
Um dos fundamentos utilizados pelo ministro relator, Luís Roberto Barroso, centra-se justamente “na necessidade de superar o racismo estrutural e institucional ainda existente na sociedade brasileira, e garantir a igualdade material entre os cidadãos, por meio da distribuição mais equitativa de bens sociais e da promoção do reconhecimento da população afrodescendente”.
Ocorre que, em direção oposta ao posicionamento do STF e também ao objetivo central dessas ações de políticas afirmativas, existem projetos de lei em andamento que propõem o fim das cotas raciais, como, por exemplo, o PL 71/2021, de autoria do vereador Fernando Holiday (Novo) em São Paulo. O projeto, que foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara Municipal de São Paulo, pretende alterar a Lei 13.791/2004 e propõe a criação das cotas sociais para concursos públicos na cidade de São Paulo, pugnando pela extinção das cotas raciais na cidade. A justificativa do vereador para apresentação da proposta consiste no argumento de que “as verdadeiras causas da reprodução da desigualdade estão diretamente ligadas à condição econômica das pessoas”.
Em razão do exposto, entendemos pela importância de debatermos a política de cotas raciais em universidades públicas brasileiras, especialmente considerando que tal política tem previsão de vencimento neste ano. À época em que foi instituída acreditava-se que o sistema de cotas seria um mecanismo temporário, que fosse adotado enquanto permanecessem as sérias disparidades raciais que permeiam a sociedade brasileira.
Atualmente está sendo debatida no Congresso Nacional a prorrogação da política afirmativa em questão, existindo, inclusive, vários projetos em trâmite visando a preencher esse vácuo da legislação. De um lado, projetos propondo a ampliação do prazo para a revisão nacional ou transformação da Lei de Cotas em política permanente no país; de outro, propostas que defendem a exclusão do critério étnico-racial para o acesso ao ensino.
Para aprovação de projetos como os mencionados, algumas reflexões são necessárias. Chegou ao fim à desigualdade racial? Não existe racismo estrutural? As condições econômicas das pessoas – em grande parte – não estão relacionadas à questão racial na sociedade brasileira? O Brasil oferece oportunidade igual para todos e todas? Ao exterminarmos as políticas de cotas estamos colaborando com a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação?
[1] https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2019-11/negros-sao-maioria-entre-desocupados-e-trabalhadores-informais-no-pais
[2] https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=34371
[3] https://blogs.uninassau.edu.br/sites/blogs.uninassau.edu.br/files/anexo/racismo_estrutural_feminismos_-_silvio_luiz_de_almeida.pdf
[4] https://blogs.uninassau.edu.br/sites/blogs.uninassau.edu.br/files/anexo/racismo_estrutural_feminismos_-_silvio_luiz_de_almeida.pdf