Embora tratado frequentemente sob o prisma do direito penal, o fenômeno social – e autofágico – da violência doméstica e familiar contra a mulher ostenta caráter multifacetário, espraiando efeitos para os mais variados ramos do direito (v.g.: direito civil, direito administrativo etc.).
Nesta perspectiva, o direito das famílias é – na opinião deste autor – um dos ramos mais afetados. Diversas são as consequências jurídicas deduzidas direta ou indiretamente de um ambiente familiar permeado por atos de violência doméstica. Não é incomum, por exemplo, que, após uma situação de violência doméstica, a mulher decida se divorciar, requerendo em juízo a guarda de seus filhos, a fixação de pensão alimentícia e ainda a regulamentação (ou a proibição) do direito de visitas.
Suponhamos, ainda, que neste processo de divórcio litigioso contra o seu ex-companheiro, este continua a praticar atos caracterizadores de violência patrimonial e/ou psicológica. A partir desse caso, indaga-se: como mensurar o impacto da violência doméstica na análise de pedidos tipicamente oriundos do direito de família? Qual a natureza da intervenção do Ministério Público em processos de família envolvendo mulheres em situação de violência doméstica? Pode o magistrado da Vara de Família deferir medidas protetivas de urgência (MPUs)?
A edição da coluna Direito dos Grupos Vulneráveis dessa semana abordará um tema corriqueiro no dia a dia forense, porém pouco explorado pela literatura jurídica: o combate à violência doméstica contra a mulher em processos de família.
A vara de família como locus de proteção às mulheres vítimas de violência doméstica
Ao ser promulgado em 2015, o atual Código de Processo Civil brasileiro trouxe em seus doze primeiros artigos, as chamadas “normas fundamentais”, dentre elas, o princípio da cooperação, positivado em seu art. 6º (“Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”). Ao redigir a norma, o legislador teve o cuidado de utilizar a expressão “todos os sujeitos processuais”, atribuindo o dever de cooperar não apenas às partes, mas também ao magistrado e ao membro do Ministério Público.
Deste modo, eventuais atos de violência doméstica e familiar praticados no bojo de um processo de família caracterizam – além de outras transgressões – violação ao princípio da cooperação, devendo o magistrado coibir todo e qualquer ato da referida natureza, sobretudo para resguardar a dignidade da mulher vítima de violência (art. 7º do CPC) e a própria paridade de armas entre as partes (art. 8º do CPC).
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça promoveu significativo avanço em matéria de combate à violência doméstica em processos de família. No dia 08 de agosto de 2023, ao analisar um típico caso de direito das famílias; ação de divórcio cumulado com pedido de guarda e alimentos, o Tribunal da Cidadania reconheceu a possibilidade de concessão de medidas protetivas de urgência (MPUs) por magistrados e magistradas que exercem a judicatura em varas de família, desde que ainda não tenha sido instalado o Juizado Especial de Violência Doméstica na respectiva comarca e não seja o caso de demandar junto ao Juízo Criminal (v.g.: atos praticados no bojo de um processo de família).[1] Acertou o STJ. Defendemos há muito tempo, aqui nesta coluna, a necessidade de se olhar para além dos efeitos criminais espraiados pelo fenômeno da violência doméstica.[2]
O avanço promovido pelo Superior Tribunal de Justiça vai ao encontro das recentes alterações promovidas pela Lei 14.550/2023 na Lei Maria da Penha, que colocaram – de uma vez por todas – um ponto final na discussão acerca da necessidade ou não do requerimento de medidas protetivas de urgência estar umbilicalmente ligado a existência de um fato penal. Após a introdução do art. 19, §5º no corpo legal da Lei 11.340/2006 (“As medidas protetivas de urgência serão concedidas independentemente da tipificação penal da violência, do ajuizamento de ação penal ou cível, da existência de inquérito policial ou do registro de boletim de ocorrência”), mulher e meninas em situação de violência doméstica podem solicitar MPUs sem a necessidade de narrar um fato penal, ou ainda, confeccionar um boletim de ocorrência.
Em relação a atuação do Ministério Público, o legislador brasileiro também demonstrou perspicácia. A despeito do evidente movimento de racionalização da intervenção cível do Ministério Público, promovida pelo Código de Processo Civil de 2015[3] e pela Recomendação 34/2016 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), o parlamento brasileiro optou – de forma acertada na opinião deste autor – por tratar o tema da atuação do parquet como custos iuris em tais casos de forma específica, introduzindo, no ano de 2019, o art. 698, parágrafo único, no texto do CPC: “O Ministério Público intervirá, quando não for parte, nas ações de família em que figure como parte vítima de violência doméstica e familiar, nos termos da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha)”.
Ao redigir a referida norma, o Congresso Nacional presumiu a vulnerabilidade e a hipossuficiência das mulheres vítimas de violência doméstica, entendimento que também encontra eco no Superior Tribunal de Justiça.[4] Logo, o art. 698, parágrafo único, do CPC, materializa uma hipótese de intervenção obrigatória do Ministério Público, independentemente da contemporaneidade dos atos de violência doméstica, de prova cabal acerca de sua existência e pouco importando a existência de ação penal em face do suposto agressor[5].
Descabe ao Promotor de Justiça, portanto, analisar eventuais peculiaridades do caso concreto para decidir se deve ou não intervir no feito. A independência funcional dos membros do parquet encontra espaço para espraiar efeitos em relação ao mérito da manifestação exarada na qualidade de órgão interveniente, nunca, porém, como argumento apto a afastar a intervenção do Ministério Público.
Ao introduzir o art. 698, parágrafo único, no CPC, o legislador brasileiro confiou ao Ministério Público a proteção de mulheres e meninas brasileiras também nos processos de família[6].
Obrigação alimentar às mulheres vítimas de violência doméstica
Objetivando romper eventual dependência financeira existente entre a vítima e agressor, situação que, muitas vezes, resulta no aprisionamento da mulher no ciclo de violência, o legislador brasileiro elencou dentre o rol de medidas protetivas de urgência (MPUs) que “obrigam o agressor”, o dever de prestar alimentos provisórios ou provisionais à mulher vítima de violência doméstica (art. 22, inciso V, da Lei Maria da Penha).
Ao analisar especificamente esta modalidade de MPU, o STJ foi instado a se manifestar sobre possibilidade ou não da decretação da prisão civil do agressor de violência doméstica devedor de alimentos. Isso, porque a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça restringe a possibilidade da execução de alimentos sob o rito da prisão civil apenas aos alimentos legais, não admitindo a decretação da prisão civil do devedor de alimentos indenizatórios.[7]
De forma acertada – na opinião deste autor –, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu que a decisão que fixa alimentos em razão da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher pode ser executada sob o rito da prisão civil alimentos.[8] Se nos demais casos envolvendo alimentos legais é possível a decretação da prisão civil do devedor de alimentos, parece-nos que, a fortiori, a situação também deve ser autorizada nos casos de alimentos fixados em sede de medida protetiva de urgência, sob pena de descaracterizar os próprios fins colimados pela espécie de MPU em comento.
Destituição do poder familiar e violência doméstica
O procedimento de destituição do poder familiar encontra-se previsto no art. 1.638 e seguintes do Código Civil, em conjunto com os dispositivos referentes ao direito à convivência familiar e comunitária previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 19 e seguintes).
Dentre as diversas causas previstas no art. 1.638, como aptas a ensejar a perda do poder familiar, o legislador introduziu, no ano de 2018, hipóteses tipicamente protetivas às mulheres e meninas em situação de violência doméstica e familiar, como por exemplo, a prática pelo genitor contra a genitora, de “homicídio, feminicídio ou lesão corporal de natureza grave ou seguida de morte, quando se tratar de crime doloso envolvendo violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher” (art. 1.638, parágrafo único, inciso I, alínea ‘a’) ou de “estupro ou outro crime contra a dignidade sexual sujeito à pena de reclusão” (art. 1.638, parágrafo único, inciso I, alínea ‘b’). O mesmo ocorre quando o agressor incide em tais condutas criminosas contra sua filha (art. 1.638, parágrafo único, inciso II, alíneas ‘a’ e ‘b’, respectivamente).
A adaptabilidade da legislação civil ao tema de violência doméstica e familiar contra a mulher é digna de elogios. No entanto, um outro ponto envolvendo o assunto, tão importante – e preocupante – quanto, não pode, na opinião deste autor, ser deixado de lado. Trata-se do fato de o Código Civil e o Estatuto da Criança e do Adolescente não elencarem, dentre as possibilidades de perda e/ou suspensão do poder familiar, a condição de vulnerabilidade per si dos genitores. Não por acaso, o artigo 23 do ECA prevê categoricamente: “falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do poder familiar”. Pois bem.
Chegou ao Superior Tribunal de Justiça um caso envolvendo uma mulher que, após ter sido vítima de violência doméstica e familiar, procurou o serviço social local para entregar própria filha para adoção, e que, posteriormente haveria esboçado arrependimento no ato.[9] O Tribunal da Cidadania não chegou a analisar o mérito do habeas corpus impetrado em favor da genitora, diante da inadequação da via eleita. Todavia, um entendimento muito importante foi fixado pelo STJ.
Ao analisar em tese o tema da destituição do poder familiar à luz do fenômeno da violência doméstica e familiar contra a mulher, o Superior Tribunal de Justiça assentou, de forma expressa na ementa do acórdão, que eventual violência doméstica acometida contra determinada genitora “não pode servir de fundamento para a destituição de seu poder familiar, sob pena de se institucionalizar uma segunda violência de gênero “.[10]
Parece-nos uma obviedade o fato de que uma mulher ou menina ser (ou ter sido) vítima de violência doméstica não pode – sob hipótese alguma – ser considerado como fator negativo no exercício do poder familiar, e muito menos para caracterizar a inaptidão e a consequente destituição do referido múnus público. Pelo contrário, conforme muito bem pontuado pelo Tribunal da Cidadania, mensurar a condição de vulnerabilidade da genitora em seu desfavor, resultaria, ao fim e ao cabo, em uma segunda e institucional espécie de violência de gênero.[11]
Disputa pela guarda de filhos em casos de violência doméstica
A disputa pela guarda de filhos menores de dezoito anos costuma ser um dos pontos de maior falta de consenso entre os casais que litigam em ação de divórcio ou de dissolução de união estável. Em relacionamentos amorosos pautados por episódios de violência doméstica e familiar contra a mulher, crianças e adolescentes figuram como vítimas indiretas, uma vez que presenciam as agressões perpetradas pelo genitor contra sua própria mãe.
Em que pese a previsão, no art. 1.584, § 2º, do Código Civil brasileiro, da modalidade de guarda compartilhada como regra, os casos envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher precisam ser interpretados com cautela. Isso, porque o próprio dispositivo supramencionado elenca como um dos requisitos para a aplicação da guarda compartilhada “a aptidão para o exercício do poder familiar por ambos os genitores”.
Conforme exposto em tópico anterior, a prática de violência doméstica e familiar – comprovada e com trânsito em julgado, é verdade – consiste em hipótese de perda do poder familiar. No entanto, ainda que por determinadas circunstâncias, sejam elas processuais, sejam elas fáticas, não exista condenação criminal com trânsito em julgado em desfavor do agressor, a existência de atos de violência doméstica praticados pelo genitor e comprovados no bojo de um processo de família deve ser um dos fatores a serem levados em consideração pelo Ministério Público e pelo magistrado na concessão da guarda de crianças e adolescentes.
A questão deve ser analisada à luz de uma interpretação conjunta entre o direito à convivência familiar e comunitária da criança e/ou do adolescente (art. 19, caput, do ECA) e o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, este último, norma central apta a possibilitar – segundo o Superior Tribunal de Justiça – o afastamento da guarda compartilhada.[12]
O tema chegou uma única vez ao Tribunal da Cidadania. Na oportunidade, o Superior Tribunal de Justiça foi categórico ao afirmar que: “Eventual exposição da criança à situação de violência doméstica perpetrada pelo pai contra a mãe é circunstância de suma importância que deve, necessariamente, ser levada em consideração para nortear as decisões que digam respeito aos interesses desse infante[13]“. Decidiu – mais uma vez – com acerto o STJ. A prática de atos de violência contra a mulher consubstancia grave violação de direitos humanos, e a sua constatação – e consequente comprovação – não pode, sob nenhuma hipótese, ser deixada de lado pelo sistema de justiça na análise da decisão que melhor atendes os interesses de determinada criança ou do adolescente.
Espero que tenham gostado.
Até a próxima!
[1] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 2.042.286/BA. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 08/08/2023.
[2]HEEMANN, Thimotie Aragon. Impactos da violência doméstica contra a mulher no Direito Civil. JOTA, 25 jul. 2022. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direito-dos-grupos-vulneraveis/impactos-da-violencia-domestica-contra-a-mulher-no-direito-civil-25072022;
[3] Para um aprofundamento a respeito do tema, ver: ZANETI JR, Hermes. O Ministério Público e o novo processo civil contemporâneo. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2021. p. 168.
[4] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg na MPUMP n. 6/DF. Rel. Min. Nancy Andrighi, Corte Especial, julgado em 18/05/2022
[5] Este parece ser o entendimento de MARQUES JÚNIOR, Mário Moraes. O Ministério Público nas Ações de Família: intervenção na tutela dos interesses da vítima de violência doméstica. Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro, n. 74, p. 145-155, out./dez., 2019.
[6] Indo ao encontro deste raciocínio, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu, em setembro de 2023, a legitimidade do Ministério Público para tutelar direitos individuais indisponíveis de mulher em situação de violência doméstica pela via da ação civil pública: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AREsp 1.828.546. Rel. Min. Jesuino Rissato (Desembargador convocado do TJDFT), 6ª Turma, julgado em 12/09/2023.
[7] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC n. 708.634/RS. Rel. Min.Paulo de Tarso Sanseverino, 3ª Turma, julgado em 3/05/2022.
[8] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RHC n. 100.446/MG. Rel. Min.Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, julgado em 27/11/2018.
[9] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC n. 776.660/SC. Rel. Min. Humberto Martins, 3ª Turma, julgado em 15/08/2023.
[10] Idem.
[11] Idem.
[12] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 1.773.290/MT. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, julgado em 21/05/2019.
[13] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 1.550.166/DF. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 21/11/2017.