Roberta Simões Nascimento
Professora adjunta na Universidade de Brasília (UnB). Advogada do Senado Federal desde 2009. Doutora em Direito pela Universidade de Alicante, Espanha. Doutora e mestre em Direito pela UnB.
Logo que saiu a primeira decisão liminar suspendendo a Lei 14.434/2022 (comentada aqui), já era possível antever que o piso da enfermagem renderia uma importante discussão constitucional.
Em um primeiro momento, nem mesmo a aprovação da EC 127/2022 foi o suficiente para promover um “acordo” sobre a questão. De fato, a previsão de que a União prestaria assistência financeira complementar aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios e às entidades filantrópicas que atendam, no mínimo, 60% de seus pacientes pelo SUS – além de transitória, como também explicado em coluna passada – não resolvia “completamente” a problemática do custeio quanto às instituições privadas.
Somente no último dia 15 de maio, a liminar que suspendia o piso foi parcialmente revogada (a decisão pode ser lida aqui). Permaneceu suspensa a expressão “acordos, contratos e convenções coletivas” prevista no artigo 2º, §2º, da Lei 14.434/2022 (determinando que tais instrumentos deveriam respeitar o piso, considerada ilegal e ilícita a sua desconsideração ou supressão).
A nova liminar foi submetida a referendo no plenário virtual, cujo julgamento foi encerrado no último dia 30 de junho. A ata da decisão já foi publicada e os votos dos ministros podem ser conferidos diretamente na página do STF (ainda não saiu publicado o acórdão).
Desse material, chama a atenção que o relator da ADI 7.222, o ministro Roberto Barroso, e o ministro Gilmar Mendes apresentaram pela primeira vez um “voto complementar conjunto”, uma inovação no sistema de julgamento colegiado que merece um breve comentário na coluna de hoje.
A respeito da medida, Mário Augusto Guerreiro e Dorotheo Barbosa Neto se adiantaram em afirmar que há amparo no ordenamento jurídico e que se trata de “ato de cooperação judiciária para a maior eficiência da Justiça”. Até pode ser, mas convém não descuidar das possíveis perdas para o julgamento e para o fato de que não resolve de verdade problema da colegialidade.
No Brasil, quanto à forma de deliberação nos tribunais, adotou-se chamado modelo seriatim (em série), em que o acórdão é composto pela somatória dos votos individuais de cada um dos ministros e suas demais manifestações deliberativas (proferidas durante os debates orais no julgamento). O artigo 941 do CPC é citado como fundamento do modelo.
Mas convém alertar que o cerne desse dispositivo legal só estabelece que “proferidos os votos, o presidente anunciará o resultado do julgamento, designando para redigir o acórdão o relator ou, se vencido este, o autor do primeiro voto vencedor”. Como se vê, aí não está dito de que maneira o acórdão deve ser composto. Do ponto de vista legal, nada impediria que fosse redigido em texto único, acrescido das eventuais manifestações dissidentes.
Mesmo seu §3º – que determina a inclusão do voto vencido como parte integrante do acórdão – não deveria ser indicado como justificativa legal para a prática de simplesmente “amontoar” razões múltiplas e contraditórias. Assim, a manutenção do modelo seriatim parece ser mais um problema de cultura jurídica mesmo.
Tal modelo costuma ser criticado porque traz dificuldades para a construção de uma fundamentação unitária. Dá azo ao que se vem chamando “dispersão de votos” ou “falta de convergência”: nenhuma das razões apresentadas é acolhida por, pelo menos, a maioria dos julgadores. Com isso, colhidos os votos, não é possível determinar o entendimento majoritário do colegiado. Tem-se um “precedente” sem ratio decidendi.
Nesse contexto, será que a solução para esse problema do modelo seriatim é a adoção de “elementos” do modelo per curiam? Seria o tal “voto conjunto” surgido na ADI 7.222 uma medida nesse sentido? Se é assim, por que não adotar logo o sistema per curiam? Dessa forma, haveria apenas um único pronunciamento representando a posição institucional da corte.
No modelo de decisão per curiam, a redação coletiva do texto consolidando o entendimento do tribunal se dá sem prejuízo das opiniões dissidentes, que podem ser registradas a partir da divergência (fundamentação em sentido contrário) ou da concorrência (fundamentação diferente, mas convergente com o sentido da decisão).
Embora o modelo per curiam também receba críticas, sobretudo pela opacidade (pois a deliberação costuma ser secreta), recebe elogios por incentivar a cooperação entre os julgadores para que alcancem uma justificação unitária, o que permite a extração da ratio decidendi. De fato, assim fica mais fácil entender o que foi decidido.
Do ponto de vista da fundamentação das decisões, no entanto, como o “voto conjunto” ainda não equivale à adoção do modelo per curiam completo, não resolve a questão dos votos divergentes, como ocorreu no julgamento da ADI 7.222. Esse problema precisa de outro tipo de solução.
Nesse sentido, tramita no Senado o PL 4311/2021, de autoria do senador Rodrigo Cunha (Podemos-AL), que propõe acrescentar dois parágrafos ao artigo 941 do CPC. Para eliminar as divergências qualitativas, que interessa aqui, a solução consiste em submeter a uma nova votação todas soluções apresentadas, duas de cada vez, em tantas rodadas quantas forem as necessárias até que todas sejam votadas, sendo considerada vencedora a solução que obtiver a preferência na última votação.
Eis a redação da proposta em comento para o §5º a ser inserido no artigo 941 do CPC:
“Impossibilitada a apuração da maioria por divergência qualitativa, o presidente porá em votação, primeiramente, duas quaisquer dentre as soluções sufragadas, sobre as quais terão de se manifestar obrigatoriamente todos os votantes, eliminando-se a que obtiver menor número de votos; em seguida, serão submetidas a nova votação a solução remanescente e outra das primitivamente sufragadas, procedendo-se de igual modo; e assim sucessivamente, até que todas tenham sido votadas, considerando-se vencedora a solução que obtiver a preferência na última votação”.
Esse sistema se chama votação por exclusão e é o mais frequentemente usado pelos regimentos internos dos tribunais de justiça do país, conforme a pesquisa empírica realizada por Marcelo Mazzola e Luís Manoel Borges do Vale e publicada no artigo Contagem de votos: divergências quantitativa/qualitativa e a esquizofrenia no âmbito dos tribunais (Revista de Processo, v. 317, a. 46, p. 199-221, 2021).
Ocorre que, só com a leitura da proposta, já se percebe que, dependendo da ordem de apresentação das opções de votação, as decisões podem ser diferentes. A votação por exclusão proposta no PL 4311/2021 implica o famoso paradoxo de Condorcet. A melhor explicação prática é o que ocorre no jogo “pedra, papel e tesoura”: o papel ganha da pedra, a tesoura ganha do papel, mas a pedra derrota a tesoura, e o vencedor depende só da ordem das alternativas. Assim, parece ser necessário cogitar outras opções que solucionem esse impasse.
Voltando ao “voto conjunto” na ADI 7.222, se esse mecanismo não resolve o problema que se acaba de explicar, por que terá sido adotado?
Não é novidade que, na prática, o STF decide a partir da formação de blocos e redes de votação. Inclusive, há pesquisas empíricas correlacionando as composições da corte e as decisões não unânimes. Essa daqui, por exemplo, mostra que os ministros nomeados por um mesmo presidente tendem a formar um grupo coeso.
Dessa forma, não seria possível atribuir ao “voto conjunto” a responsabilidade pela formação de “panelinhas” na corte. Essas sempre vão existir, independentemente do “voto conjunto” ou de o modelo ser seriatim ou per curiam, por mais que a constatação e o mapeamento fiquem para pesquisas acadêmicas após os julgamentos.
Ocorre que, sem dúvidas, a nova ferramenta do “voto conjunto” parece prestar um serviço à formação de blocos ex ante, podendo fazer maioria antes mesmo de o julgamento começar. Isso aconteceria se seis ou mais ministros no plenário, ou três ou mais nas turmas, resolvessem adotar tal “voto conjunto”.
No caso da ADI 7.222, primeiro “voto conjunto” partiu dos ministros Barroso e Gilmar, mas durante o julgamento o ministro Dias Toffoli também apresentou um “voto conjunto” complementar acolhendo os acréscimos do ministro Luiz Fux. Será que essa moda vai pegar?
De acordo com o Regimento Interno do STF (RISF), artigo 135, concluído o debate oral, o presidente tomará os votos do relator, do revisor, se houver, e dos outros ministros, na ordem inversa de antiguidade. Ou seja, o voto é individual e votam primeiro os ministros há menos tempo na corte. No §1º do mesmo artigo, existe a previsão de que, se o presidente autorizar, os ministros poderão antecipar o voto. Mais uma vez, mesmo a antecipação de voto (que é excepcional) dá-se individualmente.
Como se vê, a divulgação antecipada de um posicionamento em caráter coletivo (o “voto conjunto”) não se confunde com a antecipação de voto e tem muito mais força do que essa autorização regimental: tende a acarretar vieses como o de ancoragem e o da primazia, que podem deturpar a formação da vontade do tribunal. Por mais que os ministros possam modificar seus votos até a proclamação do resultado, persiste um claro constrangimento, sobretudo em cima dos ministros que estão há menos tempo na corte.
Mas não só isso. Um “voto conjunto” apresentado como divergência geraria dúvidas na indicação do ministro encarregado da redação do acórdão. Qual dos seus subscritores seria o redator? Todos? No caso da ADI 7.222, isso não chegou a ocorrer, pois a adequação foi pequena e encampada pelo próprio relator, mas não se sabe como essa novidade voltará a ser adotada no futuro. Por isso, antevê-se que esse pode ser um dos seus efeitos.
Para finalizar a coluna, em resumo a tudo, o comentário é o seguinte: diante de casos complexos como o piso da enfermagem, o mero “voto conjunto” não é suficiente para garantir a coesão da corte e transmitir o entendimento (ratio decidendi) que vai nortear os julgamentos futuros. Existem pelo menos 156 projetos em tramitação no Congresso Nacional que pretendem criar pisos salariais e, se aprovados, devem ser judicializados. Então, não seria melhor adotar logo o modelo per curiam?