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IRPJ/ CSLL

Tributação de despesas no âmbito do IRPJ: uma (in)coerência normativa?

Inovação portuguesa das tributações autônomas poderá ser uma opção para a legislação fiscal brasileira

Tributação
Crédito: Divulgação

No Brasil está em curso a reforma do Imposto de Renda proposta no PL 2337/2021 – pendente de análise no Senado Federal. Para além de outras novidades, o projeto pretende reintroduzir a tributação de dividendos no país, com a aplicação de uma alíquota de retenção na fonte de 15%. Assim, em caso de aprovação, os tributos sobre o rendimento passarão a ser cobrados em dois níveis, a exemplo do que acontece em Portugal e noutros países da União Europeia.

Um sistema fiscal estruturado na tributação dos rendimentos empresariais em dois níveis desencadeia uma dinâmica diferente da que conhecemos hoje e o legislador deverá estar atento a esta eventual nova realidade para fazer os ajustes que se mostrem necessários. Neste contexto, conhecer, analisar e discutir institutos e práticas adotadas noutras jurisdições é relevante e enriquecedor para o processo de modernização da legislação fiscal brasileira. Por isso, abordaremos as linhas essenciais da inovação portuguesa denominada “tributações autônomas”, que pode ser definida como a tributação de despesas. 

Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) em Portugal

O IRC tributa o lucro empresarial e incide sobre a totalidade dos rendimentos auferidos pelas pessoas jurídicas, incluindo aqueles obtidos fora do território português. A base de cálculo do imposto é, regra geral, o lucro tributável, definido pela soma algébrica do resultado contábil (lucro/prejuízo) do período de apuração e dos ajustes fiscais previstos na lei. Autoriza-se a dedução fiscal de gastos e perdas incorridos para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC (i.e., “Business Purpose Test”).

O sistema fiscal português tributa o rendimento em dois níveis: no primeiro nível, o lucro empresarial está sujeito ao IRC; e a distribuição de lucros e reservas aos sócios, no segundo nível, está sujeita ao IRC ou ao Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS). Sem prejuízo das isenções e reduções previstas na lei, sobre os lucros e reservas distribuídos aos sócios incidirá uma retenção na fonte à alíquota de 25% e 28%, para pessoas jurídicas e pessoas físicas, respectivamente.

As tributações autônomas em IRC [1]

O legislador português introduziu, no Código do IRC, uma lista de tributações autônomas relativas a gastos incorridos pelos contribuintes que não estão diretamente conexos com a tributação do rendimento sujeito àquele imposto. Efetivamente, pretendeu tributar alguns gastos incorridos pelas empresas que se encontrem numa zona duvidosa de confluência entre a esfera empresarial e privada, ou tenham uma natureza remuneratória.

As tributações autônomas não tributam o lucro empresarial, mas determinados gastos que constituem um fato tributário distinto, conexo com a concreta despesa e não com a obtenção de rendimento – que pode nem existir. As tributações autônomas têm, assim, o objetivo de desincentivar o comportamento que afeta a justa distribuição da riqueza e dos rendimentos, nos termos previstos pela Constituição da República Portuguesa (CRP) [2], e que poderá ter subjacente hipóteses de menor transparência fiscal e promover a redução – pelas empresas – da realização de despesas com tal configuração.

Na tabela abaixo indicamos alguns exemplos de despesas que, uma vez incorridas pelos contribuintes portugueses, serão tributadas autonomamente, mediante a aplicação de uma alíquota fixa que poderá variar entre 5% a 70%, a depender das circunstâncias e da natureza da respectiva despesa. A despesa incorrida é o fato gerador e a base de cálculo para a aplicação da alíquota e subsequente recolhimento do imposto:

Despesas a serem tributadas Alíquotas [3]
Despesas não documentadas 50 % / 70%
Indenizações, pagamento de bônus ou quaisquer remunerações variáveis para administradores 35%
Pagamentos a entidades residentes em regime fiscal claramente mais favorável ou contas abertas em instituições financeiras aí residentes ou domiciliadas 35%
Despesas e quaisquer encargos com automóveis, motos ou motociclos[4] 10 %/ 27,5% / 35%[5]
Lucros distribuídos a sujeitos passivos que se beneficiam de isenção total ou parcial de IRC 23%
Despesas de representação[6] 10%
Ajudas de custo e reembolsos por deslocamentos dos funcionários em automóvel próprio não faturadas a clientes 5%

Ainda que inseridas no Código do IRC, as tributações autônomas assumem uma natureza de imposto indireto, materializando-se de forma independente ou autônoma do IRC, por conseguinte, estará o contribuinte sujeito a tributação autônoma sobre as despesas elegíveis, quer tenha ou não lucro tributável no fim do exercício. A tributação autônoma é paga e entregue pelo contribuinte, juntamente com o IRC apurado no período, com impacto direto na majoração da taxa efetiva deste imposto, conforme demonstrado na tabela abaixo:

Descrição Valor
Resultado Líquido antes do IRC € 1.000.000
Lucro Tributável € 1.000.000
Alíquota do IRC 21%
IRC devido (Coleta) (1) € 210.000
Tributação Autônoma (2) € 30.000
Total IRC a pagar (1) + (2) € 240.000
Taxa Efetiva 24%

Fonte: Elaboração própria

Em resumo, cada tributação autônoma visa, regra geral, a desincentivar a realização de comportamentos que possam reduzir a transparência fiscal, bem como a base de cálculo do IRC. Constituem, em segundo lugar, um imposto de obrigação única e com uma finalidade extrafiscal – combate à evasão fiscal.

As tributações autônomas em números 

As tributações autônomas têm assegurado ao Estado português um acréscimo de receita fiscal na ordem de € 500 a 560 milhões anuais, representando em torno de 10% do total de Imposto de Renda arrecadado em cada período, conforme demonstrado na tabela abaixo:

Em € milhões

Descrição 2014 2015 2016 2017 2018 2019
IRC Liquidado 3.559 3.631 4.333 4.493 4.991 4.981
Tributação autônoma 551 507 492 510 541 568
Total 4.110 4.139 4.826 5.002 5.532 5.549
Impacto da tributação autônoma (%) 13,41% 12,26% 10,21% 10,19% 9,77% 10,24%

Fonte: Elaboração própria; dados disponibilizados pela Autoridade Tributária, não disponível para 2020-21.

Tributações autônomas: (im)possibilidade de aplicação no Brasil?

No Brasil, a base de cálculo do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) é o lucro real, presumido ou arbitrado. O lucro real corresponde ao lucro líquido, do período de apuração, ajustado pelas adições, exclusões ou compensações prescritas ou autorizadas pela legislação fiscal. Portanto, no regime do lucro real é de suma importância a análise da dedutibilidade das despesas registradas na escrituração contábil para a determinação das bases de cálculo do IRPJ e da CSLL.

Desde 1995 o legislador brasileiro fez a opção pela desconsideração da tributação em dois níveis dos tributos sobre o rendimento, isto é, centralizando as cobranças tributárias sobre o lucro empresarial — pessoas jurídicas — e isentando a distribuição de lucros e dividendos aos sócios. Neste contexto, a relação sociedade e sócio deixou de ser uma preocupação central do legislador depois de 1995. Contudo, na linha da solução portuguesa, no ordenamento fiscal brasileiro não faltam exemplos que demonstram a preocupação do legislador nacional em garantir a tributação quando determinadas despesas incorridas se encontrem numa zona duvidosa de confluência entre a esfera empresarial e a privada ou tenham uma natureza remuneratória, entre eles:

  • a) presume-se que há Distribuição Disfarçada de Lucros (DDL), e os respectivos montantes envolvidos não serão dedutíveis, quando o contribuinte: I — aliena, por valor notoriamente inferior ao de mercado, bem do seu ativo a pessoa ligada; (…) V — paga a pessoa ligada aluguéis, royalties ou assistência técnica em montante que excede notoriamente o valor de mercado; (Decreto-Lei n.º 1.598/77, artigo 60.º);
  • b) não são dedutíveis, como custos ou despesas operacionais, as gratificações ou as participações no resultado, atribuídas aos dirigentes ou aos administradores da pessoa jurídica (Lei 4.506/64, artigo 45.º);
  • c) não são dedutíveis os aluguéis pagos a sócios ou dirigentes de empresas, e a seus parentes ou dependentes, em relação à parcela que exceder o preço ou o valor de mercado (Lei 4.506/64, artigo 71.º);
  • d) são vedadas as deduções das despesas com alimentação de sócios, acionistas e administradores (Lei 9.249/95, artigo 13.º);
  • e) ou ainda a avaliação subjetiva a partir do confronto casuístico com o conceito geral de despesas dedutíveis, isto é, aquelas que são necessárias, usuais e comprovadas (Lei 4.506/64, artigo 47.º).

Note-se que as regras presentes na legislação brasileira — para o mecanismo de caracterização das despesas indedutíveis — são majoritariamente anteriores a 1995 e contribuem para evitar determinados comportamentos de menor transparência fiscal, a distribuição camuflada de lucros: a evasão fiscal.

Não obstante, a reforma fiscal em curso no Brasil poderá trazer de volta a tributação de dividendos no país e, consequentemente, os tributos sobre o rendimento passarão a ser cobrados em dois níveis. Assim, as motivações do legislador português para a criação das tributações autónomas poderão ser replicáveis no cenário brasileiro.

O legislador brasileiro deverá estar atento à modernização do sistema fiscal a partir da adoção de boas práticas utilizadas noutras jurisdições, especialmente em caso de aprovação da reforma do Imposto de Renda (PL 2337/2021) e subsequente reintrodução da tributação do rendimento em dois níveis – empresas e nos sócios quando da distribuição de dividendos.

Comparando-se o mecanismo das tributações autônomas com o mecanismo de despesas indedutíveis, o primeiro assegura um impacto positivo na arrecadação em todas as hipóteses (constituem um fato tributário autônomo), enquanto o segundo poderá gerar a diminuição do prejuízo fiscal apurado no período (embora com impacto indireto na arrecadação).

A inovação portuguesa das tributações autônomas poderá ser uma opção para a legislação fiscal brasileira, desde que precedida de uma análise detalhada dos impactos, tanto ao nível da arrecadação de receita, quanto no âmbito da sua função de extrafiscalidade.


[1] V. sobre a natureza do instituto: Francisco Nicolau Domingos. A tributação autónoma prevista no artigo 88º, n.º 13, alínea a) do CIRC: reflexão analítica. In: Estudos em Homenagem ao Professor Manuel Pita. Lisboa: Almedina, 2022. 732 p.

[2] Artigo 103.º - Sistema fiscal: “1. O sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza”.

[3] As alíquotas de cada tributação autônoma serão elevadas em 10 pontos percentuais quanto aos sujeitos passivos apresentem prejuízo fiscal no período.

[4] Incluindo depreciações, aluguéis, seguros, manutenção e conservação, combustíveis e impostos incidentes sobre a sua posse ou utilização. Assegurado a isenção para veículos movidos exclusivamente a energia elétrica.

[5] As alíquotas aplicáveis variam de acordo com o custo de aquisição dos veículos e o tipo de combustível utilizado. A alíquota mais alta de 35%, por exemplo, é reservada para aqueles veículos com custo de aquisição superior a € 35 mil e que façam uso exclusivo de combustível diferente de GNV e energia elétrica.

[6] Incluindo gastos com recepções, refeições, viagens, passeios e espetáculos oferecidos a clientes ou fornecedores.logo-jota