Diego Trindade Silva
Consultor Fiscal na PwC. Mestrando em Direito das Empresas e do Trabalho no ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa. Advogado, Contabilista e Especialista em Direito Tributário no Brasil e em Portugal.
No Brasil está em curso a reforma do Imposto de Renda proposta no PL 2337/2021 – pendente de análise no Senado Federal. Para além de outras novidades, o projeto pretende reintroduzir a tributação de dividendos no país, com a aplicação de uma alíquota de retenção na fonte de 15%. Assim, em caso de aprovação, os tributos sobre o rendimento passarão a ser cobrados em dois níveis, a exemplo do que acontece em Portugal e noutros países da União Europeia.
Um sistema fiscal estruturado na tributação dos rendimentos empresariais em dois níveis desencadeia uma dinâmica diferente da que conhecemos hoje e o legislador deverá estar atento a esta eventual nova realidade para fazer os ajustes que se mostrem necessários. Neste contexto, conhecer, analisar e discutir institutos e práticas adotadas noutras jurisdições é relevante e enriquecedor para o processo de modernização da legislação fiscal brasileira. Por isso, abordaremos as linhas essenciais da inovação portuguesa denominada “tributações autônomas”, que pode ser definida como a tributação de despesas.
O IRC tributa o lucro empresarial e incide sobre a totalidade dos rendimentos auferidos pelas pessoas jurídicas, incluindo aqueles obtidos fora do território português. A base de cálculo do imposto é, regra geral, o lucro tributável, definido pela soma algébrica do resultado contábil (lucro/prejuízo) do período de apuração e dos ajustes fiscais previstos na lei. Autoriza-se a dedução fiscal de gastos e perdas incorridos para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC (i.e., “Business Purpose Test”).
O sistema fiscal português tributa o rendimento em dois níveis: no primeiro nível, o lucro empresarial está sujeito ao IRC; e a distribuição de lucros e reservas aos sócios, no segundo nível, está sujeita ao IRC ou ao Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS). Sem prejuízo das isenções e reduções previstas na lei, sobre os lucros e reservas distribuídos aos sócios incidirá uma retenção na fonte à alíquota de 25% e 28%, para pessoas jurídicas e pessoas físicas, respectivamente.
O legislador português introduziu, no Código do IRC, uma lista de tributações autônomas relativas a gastos incorridos pelos contribuintes que não estão diretamente conexos com a tributação do rendimento sujeito àquele imposto. Efetivamente, pretendeu tributar alguns gastos incorridos pelas empresas que se encontrem numa zona duvidosa de confluência entre a esfera empresarial e privada, ou tenham uma natureza remuneratória.
As tributações autônomas não tributam o lucro empresarial, mas determinados gastos que constituem um fato tributário distinto, conexo com a concreta despesa e não com a obtenção de rendimento – que pode nem existir. As tributações autônomas têm, assim, o objetivo de desincentivar o comportamento que afeta a justa distribuição da riqueza e dos rendimentos, nos termos previstos pela Constituição da República Portuguesa (CRP) [2], e que poderá ter subjacente hipóteses de menor transparência fiscal e promover a redução – pelas empresas – da realização de despesas com tal configuração.
Na tabela abaixo indicamos alguns exemplos de despesas que, uma vez incorridas pelos contribuintes portugueses, serão tributadas autonomamente, mediante a aplicação de uma alíquota fixa que poderá variar entre 5% a 70%, a depender das circunstâncias e da natureza da respectiva despesa. A despesa incorrida é o fato gerador e a base de cálculo para a aplicação da alíquota e subsequente recolhimento do imposto:
Despesas a serem tributadas | Alíquotas [3] |
Despesas não documentadas | 50 % / 70% |
Indenizações, pagamento de bônus ou quaisquer remunerações variáveis para administradores | 35% |
Pagamentos a entidades residentes em regime fiscal claramente mais favorável ou contas abertas em instituições financeiras aí residentes ou domiciliadas | 35% |
Despesas e quaisquer encargos com automóveis, motos ou motociclos[4] | 10 %/ 27,5% / 35%[5] |
Lucros distribuídos a sujeitos passivos que se beneficiam de isenção total ou parcial de IRC | 23% |
Despesas de representação[6] | 10% |
Ajudas de custo e reembolsos por deslocamentos dos funcionários em automóvel próprio não faturadas a clientes | 5% |
Ainda que inseridas no Código do IRC, as tributações autônomas assumem uma natureza de imposto indireto, materializando-se de forma independente ou autônoma do IRC, por conseguinte, estará o contribuinte sujeito a tributação autônoma sobre as despesas elegíveis, quer tenha ou não lucro tributável no fim do exercício. A tributação autônoma é paga e entregue pelo contribuinte, juntamente com o IRC apurado no período, com impacto direto na majoração da taxa efetiva deste imposto, conforme demonstrado na tabela abaixo:
Descrição | Valor |
Resultado Líquido antes do IRC | € 1.000.000 |
Lucro Tributável | € 1.000.000 |
Alíquota do IRC | 21% |
IRC devido (Coleta) (1) | € 210.000 |
Tributação Autônoma (2) | € 30.000 |
Total IRC a pagar (1) + (2) | € 240.000 |
Taxa Efetiva | 24% |
Fonte: Elaboração própria
Em resumo, cada tributação autônoma visa, regra geral, a desincentivar a realização de comportamentos que possam reduzir a transparência fiscal, bem como a base de cálculo do IRC. Constituem, em segundo lugar, um imposto de obrigação única e com uma finalidade extrafiscal – combate à evasão fiscal.
As tributações autônomas têm assegurado ao Estado português um acréscimo de receita fiscal na ordem de € 500 a 560 milhões anuais, representando em torno de 10% do total de Imposto de Renda arrecadado em cada período, conforme demonstrado na tabela abaixo:
Em € milhões
Descrição | 2014 | 2015 | 2016 | 2017 | 2018 | 2019 |
IRC Liquidado | 3.559 | 3.631 | 4.333 | 4.493 | 4.991 | 4.981 |
Tributação autônoma | 551 | 507 | 492 | 510 | 541 | 568 |
Total | 4.110 | 4.139 | 4.826 | 5.002 | 5.532 | 5.549 |
Impacto da tributação autônoma (%) | 13,41% | 12,26% | 10,21% | 10,19% | 9,77% | 10,24% |
Fonte: Elaboração própria; dados disponibilizados pela Autoridade Tributária, não disponível para 2020-21.
No Brasil, a base de cálculo do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) é o lucro real, presumido ou arbitrado. O lucro real corresponde ao lucro líquido, do período de apuração, ajustado pelas adições, exclusões ou compensações prescritas ou autorizadas pela legislação fiscal. Portanto, no regime do lucro real é de suma importância a análise da dedutibilidade das despesas registradas na escrituração contábil para a determinação das bases de cálculo do IRPJ e da CSLL.
Desde 1995 o legislador brasileiro fez a opção pela desconsideração da tributação em dois níveis dos tributos sobre o rendimento, isto é, centralizando as cobranças tributárias sobre o lucro empresarial — pessoas jurídicas — e isentando a distribuição de lucros e dividendos aos sócios. Neste contexto, a relação sociedade e sócio deixou de ser uma preocupação central do legislador depois de 1995. Contudo, na linha da solução portuguesa, no ordenamento fiscal brasileiro não faltam exemplos que demonstram a preocupação do legislador nacional em garantir a tributação quando determinadas despesas incorridas se encontrem numa zona duvidosa de confluência entre a esfera empresarial e a privada ou tenham uma natureza remuneratória, entre eles:
Note-se que as regras presentes na legislação brasileira — para o mecanismo de caracterização das despesas indedutíveis — são majoritariamente anteriores a 1995 e contribuem para evitar determinados comportamentos de menor transparência fiscal, a distribuição camuflada de lucros: a evasão fiscal.
Não obstante, a reforma fiscal em curso no Brasil poderá trazer de volta a tributação de dividendos no país e, consequentemente, os tributos sobre o rendimento passarão a ser cobrados em dois níveis. Assim, as motivações do legislador português para a criação das tributações autónomas poderão ser replicáveis no cenário brasileiro.
O legislador brasileiro deverá estar atento à modernização do sistema fiscal a partir da adoção de boas práticas utilizadas noutras jurisdições, especialmente em caso de aprovação da reforma do Imposto de Renda (PL 2337/2021) e subsequente reintrodução da tributação do rendimento em dois níveis – empresas e nos sócios quando da distribuição de dividendos.
Comparando-se o mecanismo das tributações autônomas com o mecanismo de despesas indedutíveis, o primeiro assegura um impacto positivo na arrecadação em todas as hipóteses (constituem um fato tributário autônomo), enquanto o segundo poderá gerar a diminuição do prejuízo fiscal apurado no período (embora com impacto indireto na arrecadação).
A inovação portuguesa das tributações autônomas poderá ser uma opção para a legislação fiscal brasileira, desde que precedida de uma análise detalhada dos impactos, tanto ao nível da arrecadação de receita, quanto no âmbito da sua função de extrafiscalidade.
[1] V. sobre a natureza do instituto: Francisco Nicolau Domingos. A tributação autónoma prevista no artigo 88º, n.º 13, alínea a) do CIRC: reflexão analítica. In: Estudos em Homenagem ao Professor Manuel Pita. Lisboa: Almedina, 2022. 732 p.
[2] Artigo 103.º - Sistema fiscal: “1. O sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza”.
[3] As alíquotas de cada tributação autônoma serão elevadas em 10 pontos percentuais quanto aos sujeitos passivos apresentem prejuízo fiscal no período.
[4] Incluindo depreciações, aluguéis, seguros, manutenção e conservação, combustíveis e impostos incidentes sobre a sua posse ou utilização. Assegurado a isenção para veículos movidos exclusivamente a energia elétrica.
[5] As alíquotas aplicáveis variam de acordo com o custo de aquisição dos veículos e o tipo de combustível utilizado. A alíquota mais alta de 35%, por exemplo, é reservada para aqueles veículos com custo de aquisição superior a € 35 mil e que façam uso exclusivo de combustível diferente de GNV e energia elétrica.
[6] Incluindo gastos com recepções, refeições, viagens, passeios e espetáculos oferecidos a clientes ou fornecedores.