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tributos indiretos

Mais um efeito colateral da tese do século

Um novo e indesejado desdobramento do manicômio jurídico tributário instaurado há muito no Brasil

Fernando Rezende
18/10/2022|05:10
Atualizado em 27/02/2025 às 16:11
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Crédito: Unsplash

No mais recente dos inúmeros capítulos da chamada tese do século, pela qual o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) não compõe a base de cálculo do Programa de Integração Social (PIS) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) (Tema 69 de Repercussão Geral), testemunhamos mais uma tentativa da União de “virar o jogo” e mitigar as perdas sofridas com o deslinde da tese de forma favorável aos contribuintes.  

Mas, para que se entenda este novo – e indesejado – dissabor que ameaça a paz dos contribuintes, em ambiente processual que leva ao arrepio a tão almejada “segurança jurídica”, faz-se necessário traçar um breve retrospecto da já conhecida tese do século, que tramita no STF desde 2007.  

Conforme amplamente noticiado desde maio de 2021, o Supremo Tribunal Federal, em decisão notadamente consequencialista, acolheu os Embargos de Declaração opostos pela União, especialmente para requerer a modulação dos efeitos do acórdão em que restou definido que o ICMS não compõe a base de cálculo do PIS e da Cofins.  

Em tal oportunidade, lamentavelmente convencidos por argumentos de ordem exclusivamente econômica – que sequer foram documentalmente comprovados nos autos —, os ministros do Pretório Excelso decidiram por modular os efeitos do julgado, para que estes só se verificassem a partir de 15/03/2017, ressalvadas, contudo, as ações judiciais ajuizadas até a data da sessão em que foi analisado o mérito o mérito da lide – em 15/03/2017.  

Em termos práticos: aqueles contribuintes que ajuizaram sua ação judicial até 15/03/2017 estariam resguardados pelo marco temporal definido pelo Pretório Excelso e, consequentemente, poderiam contabilizar e utilizar os créditos de PIS/Cofins decorrentes da exclusão do ICMS de sua base de cálculo relativos ao período iniciado 5 anos antes do ajuizamento da medida judicial.  

Mas, com a modulação de efeitos do julgado no presente caso, tomada com fundamento no artigo 27 da Lei 9.869/99, buscou o STF preservar a segurança jurídica e os mais elevados interesses da sociedade? Quer-nos parecer que não. 

Isso porque, com o acolhimento do pedido de modulação de efeitos, o STF extrapolou o exercício de subsunção do fato à norma tida como inconstitucional, passando a exercer função político-orçamentária, que não lhe é dada.  

Mas como ficam aqueles contribuintes que ajuizaram ações judiciais após a data de corte definida pelo STF (15/03/2017), e tiveram decisões favoráveis (que reconheceram, inclusive, o direito à repetição do indébito tributário via compensação) transitadas em julgado neste ínterim?  

Tais contribuintes, que estão há anos se valendo de decisões transitadas em julgado em seus respectivos processos, inclusive para compensar débitos administrados pela Receita Federal com o vasto direito creditório reconhecido, estão sendo surpreendidos com o ajuizamento de ações rescisórias pela União, que, em mais uma medida de retaliação ao direito conquistado a duras penas pelos contribuintes, objetiva cancelar créditos de PIS e da Cofins obtidos com o aresto. 

Tais ações rescisórias têm como único objetivo impedir o direito do contribuinte à recuperação – seja pela via da repetição, seja pela via da compensação – do indébito tributário reconhecido em ação judicial ajuizada após 15/03/2017 e que transitou em julgado antes do julgamento dos Aclaratórios opostos pela União no leading case, não requerendo a União a modificação do quantum decisum nos respectivos processos. 

É exatamente o caso da Ação Rescisória nº 5011449-73.2022.4.03.0000, pela qual a União pleiteou e, espantosamente, obteve a tutela provisória deferida para “suspender parcialmente a compensação administrativa levada a efeito com base no julgado rescindendo quanto à restituição e/ou compensação de valores recolhidos a título de PIS e Cofins decorrentes da inclusão do ICMS nas suas bases de cálculo relativos a período anterior a 15/03/2017”. 

Trata-se, a nosso ver, de mais um indesejado desdobramento do manicômio jurídico tributário instaurado há muito no Brasil, que amesquinha a segurança jurídica e da proteção à coisa julgada material em detrimento da irrefreável sanha arrecadatória do Estado-Leviatã.  

Não se olvide que a jurisprudência consolidada pela Pretório Excelso em sede, inclusive, de Repercussão Geral (veja-se o tema 136/STF) é pelo descabimento de ação rescisória nos casos em que o julgado “estiver em harmonia com o entendimento firmado pelo Plenário do Supremo à época da formalização do acórdão rescindendo, ainda que ocorra posterior superação do precedente”.  

Ademais, a modulação de efeitos da decisão, empregada exatamente para resguardar a segurança jurídica, em nada abala o imutável e indiscutível comando jurisdicional que reconheceu a inconstitucionalidade da norma tributária e, consequentemente, legitimou o direito creditório do contribuinte, não havendo que se falar, portanto, em cabimento de ação rescisória. 

A defesa intransigente da coisa julgada material, garantia insculpida no artigo 5º, XXXVI da Carta Maior, é medida inafastável de salvaguarda à segurança jurídica e de proteção à ordem jurídica nacional em um Estado que se pretenda democrático de Direito, sendo de rigor que o Poder Judiciário refreie de forma vigorosa esse novo ardil fazendário.  logo-jota