Carlos Alberto Vilhena
Procurador Federal dos Direitos do Cidadão
Quase ninguém há de discutir que os dois maiores bens de uma pessoa são sua vida (de modo amplo, abarcando saúde e integridade física) e sua liberdade. Tais faculdades são essenciais a uma existência minimamente digna, a ponto de estarem inscritas, junto com a segurança pessoal, no art. 3º da Declaração Universal dos Direitos Humanos[i].
Em qualquer sistema judicial minimamente decente, punir alguém com o cerceamento de sua liberdade deveria ser exceção reservada a crimes extremamente danosos, como homicídio. Remover uma pessoa do convívio social é medida grave, superada somente pela perda da vida. Esta última, por sinal, é pena inexistente no nosso sistema jurídico.
Não obstante serem castigos excepcionais na letra da lei, o encarceramento e a morte são muito comuns em nossa realidade.
Pelo menos desde 2016, o Brasil ocupa o 3º lugar no ranking das maiores populações carcerárias do mundo[ii]. As mais de 830 mil pessoas[iii] em instituições prisionais e prisão domiciliar são equivalentes à população de João Pessoa, capital da Paraíba[iv]. Com tanta gente, os termos prisão e superlotação estão quase sempre juntos em qualquer texto sobre nosso sistema carcerário. A maioria dos prisioneiros (68%) é negra[v].
Ao mesmo tempo, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) indicou, em seu relatório de 2023, que nossas polícias foram responsáveis por mais de 6.400 mortes – 83% delas de pessoas negras[vi] – no ano passado[vii]. Isso é mais de cinco vezes os óbitos causados pelas polícias dos Estados Unidos[viii], país cuja população é 64% maior do que a brasileira[ix].
A nossa Constituição da República (CR), em seu art. 129, atribuiu ao Ministério Público (MP), entre outras responsabilidades, a exclusividade na promoção da ação penal pública; o zelo pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos aos direitos assegurados no texto constitucional; e o exercício do controle externo da atividade policial[x].
Assim, o MP tem por dever assegurar o cumprimento da lei básica da nação, buscando consolidar na vida real os direitos previstos na CR, em especial aqueles ligados à dignidade humana.
Portanto, prisões superlotadas e mortes causadas pela polícia entram no raio de ação do parquet. Cabe a ele – assim como ao Poder Judiciário, que julga e atribui as penas – colaborar na solução dessas situações.
Existem diversas vias para a consecução desse propósito. Uma delas vincula-se precisamente à persecução penal. A escolha de quais casos devem ou não ser considerados relevantes para abertura de ações, bem como quais as penas demandadas pelo MP nesses casos.
Conforme dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), 27% da população prisional brasileira foi condenada por delitos relacionados a tráfico de drogas, enquanto outros 9% estão presos por furto[xi]. Ou seja, esses crimes respondem por mais de 35% do(a)s apenado(a)s, num sistema que tinha um déficit de 236 mil vagas em 2022, segundo o FBSP[xii].
Essa superlotação se deve, em parte, a decisões processuais e judiciais que parecem descoladas da realidade de nosso país, uma nação com 33 milhões de famintos e enfrentando sérios problemas sociais, inclusive o uso de drogas.
A título de exemplo, no ano passado, a ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), reverteu a prisão de um homem que fora condenado a um ano e dois meses de reclusão, em regime semiaberto, além de multa, pelo furto de chocolates no valor de 35 reais num supermercado de uma grande rede em São Paulo[xiii]. A magistrada aplicou ao caso o princípio da insignificância ou bagatela – mesmo o réu sendo reincidente – e substituiu a pena de prisão pela de prestação de serviços comunitários[xiv].
A lesão causada pelo réu à vítima do crime foi irrisória ou até inexistente, visto que os produtos foram devolvidos ao supermercado. Ainda assim, o MP optou por prosseguir na ação penal, pedindo a condenação do acusado à prisão em regime semiaberto.
O réu poderia ter sido punido, desde o primeiro momento, com uma pena alternativa, como definiu a ministra do STF, mas a solução encontrada foi a prisão, apenamento claramente desproporcional à ofensa. O direito à liberdade do indivíduo foi cerceado desnecessariamente, sem levar em conta o contexto de ocorrência do delito.
Fatos como esse são noticiados com frequência na mídia nacional, com pessoas sendo condenadas por roubo de lixo, comida estragada ou outros itens de valor irrisório. Em geral, as pessoas condenadas são negras e pobres.
O MP certamente tem grande margem de manobra para que situações como essa não aconteçam. Ele pode pedir o arquivamento do inquérito policial, propor acordo de não persecução penal ou, se já houver ação penal em curso, pedir a absolvição do réu nas alegações finais.
O próprio STF já indicou que a reincidência no crime, usada como forma de excluir a hipótese de insignificância, não é suficiente para afastar o princípio da bagatela, devendo haver análise mais profunda das condições em que o crime ocorreu.
Esse caso, e outros similares, afeta os direitos humanos em várias dimensões: viola a liberdade do indivíduo injustamente, ocupa o sistema judicial, prejudicando a apreciação de casos mais relevantes, e amplia o problema da superlotação dos presídios.
Em que pese o papel do magistrado em condenar de modo desproporcional, o MP poderia buscar percorrer caminhos alternativos na propositura de soluções para a ação penal. Ao pedir a condenação à prisão pura e simples, sem uma avaliação mais aprofundada, o MP age mais para prejudicar os direitos humanos do que para protegê-los.
Situação similar ocorre nos casos de crimes relacionados a tráfico de drogas. Embora a legislação sobre o tema faça distinções entre posse de entorpecentes para uso (o que não enseja prisão) e para tráfico (o que conduz ao encarceramento), não há parâmetros bem definidos para identificar essas duas categorias, levando a casos em que as pessoas são condenadas como traficantes por portarem quantidades ínfimas de droga.
No momento da elaboração deste texto, o STF aprecia a possibilidade de descriminalização da maconha para uso pessoal, buscando, entre outras coisas, determinar um quantitativo que caracterize um portador daquela erva como usuário[xv].
Se a Suprema Corte definir uma quantidade de cannabis como um dos critérios para identificação de uma pessoa como usuária, isso representará avanço na proteção dos direitos dos dependentes químicos, evitando encarceramentos incabíveis.
Levantamento feito pela Agência Pública na justiça estadual paulista mostrou que, em 2017, as condenações por tráfico de drogas apresentavam características preocupantes: negros eram condenados com mais frequências do que brancos, mesmo portando quantidades menores de droga. Além disso, muitas condenações se baseavam na quantidade de droga apreendida, nos antecedentes dos réus e no relato de testemunhas.
Ainda segundo a Agência Pública, em quase 84% dos casos envolvendo apreensão de até 10 gramas de cocaína, crack ou maconha, as únicas testemunhas ouvidas foram os policiais que efetuaram a prisão. Nessa situação, houve 59% de condenações, o que contrasta com os 44% de condenações em que testemunhas civis se pronunciaram[xvi].
Isso nos leva a cenários como o de um réu condenado a seis anos e nove meses de prisão pelo porte de 0,2 grama de crack, exclusivamente a partir do relato de guardas municipais[xvii].
Apesar da fé pública dos agentes, não parece razoável aceitar que uma pessoa seja encarcerada como traficante, portando quantidades mínimas de entorpecentes. Um conjunto probatório mais robusto deveria prevalecer para ser aceito tanto pelo MP quanto pelo PJ. A condenação com escassez de evidências tem colaborado fortemente para produzir a presente crise carcerária.
O fato é que, ao aceitar provas pouco rigorosas, o MP, bem como Juízos e Tribunais, prejudica o processo legal e encarcera desnecessariamente usuários de drogas, pessoas necessitadas de tratamento, e não do cárcere. Esse empenho excessivo em prender, portanto, solapa os direitos humanos.
Por outro lado, a apatia em processar causa o mesmo efeito, quando o crime é homicídio e os suspeitos são agentes da segurança pública.
Um estudo do FBSP e da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) mostrou que, em 2016, os Ministérios Públicos do Rio de Janeiro e de São Paulo arquivaram 90% dos casos de mortes causadas por policiais. De 316 registros do tipo – ocorridos ao longo das décadas anteriores – apenas 10 foram denunciados à justiça em SP e 20 no RJ[xviii]. Boa parte dos arquivamentos se deu sob a égide de “estrito cumprimento do dever legal” ou “legítima defesa”, ambas categorias de excludente de ilicitude.
Chama a atenção o fato de um promotor de justiça do Rio de Janeiro ter sido responsável por 11 das 20 denúncias feitas naquele estado[xix]. Quando se vê um ponto tão fora da curva, num cenário gritante de morticínio em função de ações policiais, é necessário cogitar se não é a curva que deveria acompanhar o ponto.
Vale notar os prazos dilatados até o arquivamento ou denúncia desses casos: no RJ, em 2016, a denúncia levava seis anos e o arquivamento, nove; em SP o arquivamento levava cerca de dois anos e a denúncia, um.
Naquele mesmo ano, houve registro de 856 mortes por intervenção policial em SP e de 925 no RJ, coincidentemente os estados campeões nacionais nesse quesito[xx].
O arquivamento massivo de casos envolvendo a morte de pessoas por policiais, sem a devida apreciação judicial, não parece favorecer a preservação da vida humana. Em 2016, houve mais de 4.200 mortes decorrentes de ações policiais; em 2022, esse número ultrapassou 6.400 vítimas, um aumento de 52% em seis anos.
Ante essa escalada de mortes por policiais, talvez seja hora de o MP repensar sua função de órgão de controle externo às polícias. Se os órgãos de segurança seguem empilhando corpos na mesma proporção em que o MP arquiva esses casos, certamente o parquet está falhando em sua missão constitucional.
O fato é que, com frequência preocupante, o MP grita contra os ladrões de galinha e os dependentes químicos, mas sussurra contra os homicidas de uniforme. Tanto os gritos como os sussurros têm sido sancionados em muitas de nossas cortes, e isso corrói os direitos humanos no Brasil.
Refletir sobre essa situação é fundamental à consolidação de nosso país como uma verdadeira democracia. O órgão incumbido da defesa de nossa Constituição tem o dever de corrigir essas distorções, por meio de ações legais condizentes com os delitos cometidos. Ele não precisa bradar ou murmurar, mas ter uma voz coerente, constante e audível em defesa dos direitos humanos de todas as pessoas, independentemente de sua origem, ofício ou condição social.
É evitando a dureza extrema com os fracos e a suavidade acentuada com os fortes que se constrói uma nação efetivamente justa e respeitadora dos direitos humanos.
[i]https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em 14/08/2023.
[ii]https://www.conjur.com.br/2017-dez-08/brasil-maior-populacao-carceraria-mundo-726-mil-presos. Acesso em 14/08/2023.
[iii]Dados do Sisdepen relativos a 2022. Disponível em https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiMTQ2ZDc4NDAtODE5OS00ODZmLThlYTEtYzI4YTk0MTc2MzJkIiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9&pageName=ReportSection045531d3591996c70bde. Acesso em 17/08/2023.
[iv]Conforme dados do IBGE. Disponível em https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pb/joao-pessoa/panorama. Acesso em 17/08/2023.
[v]https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf, pág 284. Acesso em 15/08/2023.
[vi]https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf, pág 31. Acesso em 15/08/2023.
[vii]https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf, pág 59. Acesso em 14/08/2023.
[viii]https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2023/08/14/letalidade-policial-pm-bahia-policias-eua.htm. Acesso em 14/08/2023.
[ix]Os EUA tinham 333 milhões de habitantes em dezembro de 2022 conforme a seguinte matéria: https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2022-12/crescimento-populacional-dos-eua-avanca-impulsionado-pela-imigracao. O Censo brasileiro de 2022 indicou que nossa população está na casa de 203 milhões de pessoas, conforme a seguinte matéria: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/37237-de-2010-a-2022-populacao-brasileira-cresce-6-5-e-chega-a-203-1-milhoes. Acesso em 14/08/2023.
[x]Constituição, art. 129, incisos I, II e VII. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 14/08/2023.
[xi]Conforme consulta às estatísticas do SISDEPEN. Disponível em https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiYjBhODYxYjAtOWJmNC00Mzg1LWI5ZWEtNzA4NTk1NGNhZWEyIiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9&pageName=ReportSectiond75a46556ebea50b9b57. Acesso em 15/08/2023.
[xii]https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em 15/08/2023.
[xiii]https://www.migalhas.com.br/quentes/358152/crime-de-bagatela-carmen-concede-hc-a-preso-por-furto-de-chocolate. Acesso em 15/08/2023.
[xiv]https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15349318395&ext=.pdf. Acesso em 15/08/2023.
[xv]https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/08/17/stf-marca-para-23-de-agosto-julgamento-sobre-porte-de-drogas-para-consumo-proprio.ghtml. Acesso em 21/08/2023.
[xvi]https://apublica.org/2019/05/negros-sao-mais-condenados-por-trafico-e-com-menos-drogas-em-sao-paulo/. Acesso em 15/08/2023.
[xvii]https://apublica.org/2019/05/negros-sao-mais-condenados-por-trafico-e-com-menos-drogas-em-sao-paulo/. Acesso em 15/08/2023.
[xviii]https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/11/12/denuncias-e-arquivamentos-mortes-policiais-rj-sp.htm. Acesso em 15/08/2023.
[xix]https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/11/12/denuncias-e-arquivamentos-mortes-policiais-rj-sp.htm. Acesso em 15/08/2023.
[xx]https://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2017/12/ANUARIO_11_2017.pdf, pág 13. Acesso em 15/08/2023.