Arthur Cristóvão Prado
Advogado da União. Mestre e doutor em Direito pela USP. Em seu doutorado, pesquisou advocacia pública e rule of law
O tributo brasileiro sobre heranças e doações, chamado “imposto sobre transmissões causa mortis e doações” (ITCMD), tem espaço para reforma. São diversos os seus problemas: sua alíquota, limitada a 8% pela Resolução nº 9/1992 do Senado Federal e frequentemente instituída pelos estados em patamares inferiores a esse limite, é baixa para padrões internacionais; em muitos estados, o imposto não é progressivo e apresenta isenções baixas, onerando pesadamente sujeitos passivos de menor capacidade contributiva; sua administração passa por problemas de quantificação do patrimônio transmitido e liquidez.
Encabeçando a lista de fragilidades, em especial quando se trata da tributação de grandes patrimônios, está um problema propriamente jurídico, que agora ganha um novo capítulo a partir da decisão do STF no RE nº 851.108, em 2021: é razoavelmente fácil para grandes contribuintes evadir-se licitamente do imposto por meio da desnacionalização de seu patrimônio. O que isso implica para a política tributária do Estado brasileiro, e como suas advocacias públicas podem participar desse debate?
Este artigo pretende explorar essa questão a partir do julgamento do referido RE nº 851108 (tema nº 825) pelo STF, sob a sistemática da repercussão geral, apresentando-o como um desafio dos órgãos de advocacia pública envolvidos, e relacioná-lo criticamente com a política de tributação sobre herança em geral.
Primeiro, descreverei sucintamente o caso e a decisão de mérito, destacando a atuação da PGE-SP. Em segundo lugar, argumentarei que, embora a tese firmada pelo Plenário na ocasião abra espaço para elisão fiscal, o Estado brasileiro tem à sua disposição remédios já acessíveis para coibi-la, e que os órgãos de advocacia pública podem vir a desempenhar um papel proativo em sua implementação.
Principio pela decisão do STF. O título escolhido para o tema de repercussão geral foi “possibilidade de os Estados-membros fazerem uso de sua competência legislativa plena, com fulcro no art. 24, § 3º, da Constituição e no art. 34, § 3º, do ADCT, ante a omissão do legislador nacional em estabelecer as normas gerais pertinentes à competência para instituir o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis ou Doação de quaisquer Bens ou Direitos – ITCMD, nas hipóteses previstas no art. 155, § 1º, III, a e b, da Lei Maior.”. O texto constitucional mencionado é o seguinte:
Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993)
I - transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993)
§ 1º O imposto previsto no inciso I:
(...)
III - terá competência para sua instituição regulada por lei complementar:
a) se o doador tiver domicilio ou residência no exterior;
b) se o de cujus possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve o seu inventário processado no exterior;
No caso selecionado como representativo da controvérsia, tratava-se de sucessão testamentária, em que o de cujus, residente na Itália, havia indicado brasileira residente no Brasil como sucessora de imóvel e saldo monetário (em euros) situados na Itália.
Entendendo caracterizado o fato gerador, e respaldada em lei estadual[1], a Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo procedeu ao lançamento do ITCMD incidente sobre a transmissão de ambos os bens. A sucessora impetrou mandado de segurança contra esse ato, alegando, essencialmente, que, não tendo sido editada a lei complementar a que alude o art. 155, § 1º, III da CF, seria inconstitucional lei estadual instituidora do imposto. A ordem foi concedida e o apelo da PGE-SP foi desprovido. Contra o acórdão, foi interposto o RE em questão.
Ao longo do processo, a PGE-SP sustentou o argumento de que a ausência de edição da lei complementar aludida pela norma constitucional não constitui fator obstativo ao exercício da competência tributária pelos estados e pelo Distrito Federal. Na verdade, a norma do art. 34, §§ 3º e 4º do ADCT[2] sugeriria que, na ausência de lei complementar, os estados e o Distrito Federal disporiam de competência legislativa plena para instituir o tributo.
No acórdão, prevaleceu, no mérito, o entendimento do ministro relator Dias Toffoli, que acolheu a tese da contribuinte. O ministro destacou, também, preocupações com bitributação que poderia advir caso o Estado italiano também fizesse incidir imposto sobre a transferência. A tese fixada foi a seguinte: “é vedado aos estados e ao Distrito Federal instituir o ITCMD nas hipóteses referidas no art. 155, § 1º, III, da Constituição Federal sem a intervenção da lei complementar exigida pelo referido dispositivo constitucional”.
A minoria dissidente, porém, foi expressiva, tendo contado com os votos dos ministros Alexandre de Moraes, que abriu a divergência, Cármen Lúcia, Luiz Fux e Gilmar Mendes. Além de acolher a tese da competência plena, o ministro Alexandre de Moraes entendeu não haver possibilidade de conflito de competências, “haja vista que aos Estados compete apenas instituir o tributo nas hipóteses em que houver alguma conduta dentro de seu território”.
Um primeiro aspecto do acórdão a ser destacado é o fato de que, ao votar pela modulação parcial dos efeitos, o ministro relator citou expressamente a estimativa de perda fiscal elaborada pelo Estado de São Paulo. O Estado projeta que a decisão, caso não modulada, implicaria impacto de R$ 5.418.145.428,86, abrangendo perdas em crédito tributário e em lançamentos nos 5 anos futuros.
A decisão do STF parece correta, na medida em que não se podia falar, antes do julgamento do RE, em jurisprudência predominante sobre o tema no STF, o que atrai a incidência do art. 927, § 3º do CPC[3].
O fornecimento de elementos fáticos que indiquem consequências graves de decisões não moduladas, porém, parece ser um fator decisivo de convencimento da Corte, em especial em casos envolvendo fazendas públicas. É salutar, portanto, que esse tipo de expediente seja adotado em geral pela administração pública em juízo perante o tribunal.
Um segundo ponto relevante é que não houve pedidos de ingresso de nenhum ente na condição de amicus curiae, o que é incomum no caso de grandes processos decididos em sede de repercussão geral.
Se, por um lado, uma das explicações possíveis para isso é o fato de que a perda de arrecadação para estados individuais não chega a ser astronômica – embora, como mostrou a PGE-SP, possa, sim, alcançar cifras bilionárias –, é preciso atentar para o fato de que a atuação de terceiros na repercussão geral depende da observação ativa do tribunal pelos corpos de advocacia (privada e pública) interessados.
Como Marinoni e Fortes já defenderam neste JOTA, a repercussão geral no STF apresenta algumas deficiências em termos de porosidade e mobilização democrática, o que demanda, em especial da AGU e das PGEs, uma postura de acompanhamento enérgico da pauta do STF.
Na AGU, há, inclusive, uma divisão dedicada inteiramente à repercussão geral, que conta, inclusive, com a atividade de acompanhamento diário dos temas de repercussão geral julgados pelo Plenário Virtual, inclusive com análise individualizada acerca da conveniência de intervenção da União como amicus curiae. Esse tipo de sistema é salutar e deveria ser adotado também pelas PGEs (e possivelmente algumas PGMs) que contem com estrutura administrativa capaz de sustentá-lo.
Ainda sobre o acórdão, é relevante mencionar que pendem de julgamento embargos de declaração opostos tanto pelo Estado de São Paulo quanto pela contribuinte impetrante. Os recursos tratam, porém, exclusivamente da modulação dos efeitos, de modo que precluiu o direito de impugnar a decisão de mérito. Os embargos foram incluídos em julgamento virtual, que foi no entanto suspenso por pedido de vista do ministro Roberto Barroso.
À luz da tese fixada, como fica, afinal, a tributação de heranças e doações de brasileiros no exterior? E por que isso é um problema relevante para advogados públicos?
É inegável que a decisão do STF abre margem para um mecanismo bastante simples e razoavelmente acessível de elisão fiscal. Qualquer contribuinte que deseje deixar de pagar o ITCMD sobre ativos móveis pode primeiro expatriá-los, depois transmiti-los, inclusive a donatário, legatário ou herdeiro domiciliado no Brasil, sem que incida sobre a operação qualquer tributo no Brasil.
É verdade que muitos bens não podem ser simplesmente deslocados para fora do país, como muitos títulos mobiliários e imóveis, mas, nesses casos, é em tese possível a liquidação do bem e a subsequente expatriação do numerário resultante. Note-se que essa operação, além de completamente lícita, prescinde de mecanismos mais sofisticados de elisão, que poderiam demandar serviços caros de planejamento sucessório. Os custos envolvidos são apenas aqueles decorrentes da expatriação do patrimônio.
A existência desse mecanismo é problemática ainda que não seja a única à disposição de grandes contribuintes, exatamente porque sua relativa facilidade tende a induzir um número maior de patrimônios a escapar do imposto. Mas essa e outras formas de elisão e elusão têm solução.
Ao contrário do que se pode imaginar, muitas formas de elisão e elusão fiscal que envolvem operações internacionais podem ser combatidas por meio de instrumentos jurídicos já à disposição dos Estados-nacionais. Um recente relatório da OCDE, que exorta seus membros a levar mais a sério a tributação sobre heranças, apresenta alguns desses instrumentos, como mecanismos bilaterais de compartilhamento de dados fiscais, que tornam acessíveis às receitas federais nacionais informações sobre patrimônio de contribuintes no exterior.
Nos termos do relatório, “o progresso recente feito em transparência fiscal internacional aumentou expressivamente a capacidade dos países de tributar capital de maneira eficaz. Acordos de troca de informação, assim como outras formas de cooperação sobre a troca de informação a pedido (EOIR, em inglês) e automaticamente (AEOI, em inglês), reduzem oportunidades de evasão fiscal. Esses padrões significam que informação sobre ativos financeiros estrangeiros agora é compartilhada por autoridades fiscais globalmente, tornando mais difícil para os contribuintes escapar de tributação ocultando seus ativos no exterior”[4].
Soluções envolvendo cooperação internacional, no entanto, nem chegam a ser necessárias no caso em análise: esgotada a via judicial, basta ao Brasil a edição de Lei Complementar a que alude o art. 155, III da Constituição para que os estados possam voltar a tributar heranças e doações no exterior.
Embora não seja exatamente fácil sob a perspectiva política, essa medida é de uma simplicidade jurídica ímpar. Já há, inclusive, projeto de lei complementar em tramitação com essa finalidade: PLC nº 363/2013, de autoria da deputada Erika Kokay, que, entre outras disposições, autoriza os estados e o Distrito Federal à instituição do ITCMD “nos casos em que houver conexão relevante com o exterior”.
Embora a arena mais importante para esse debate seja a do Legislativo, é inegável que advogados públicos têm um papel a desempenhar. Adotando a perspectiva de que a advocacia pública pode ocupar um espaço de protagonismo institucional no Estado brasileiro, é possível e salutar que PGEs, ao tomar ciência formal da decisão do STF no Tema nº 825, encaminhem expedientes no âmbito dos respectivos entes para sugerir o empenho dos chefes do Executivo em encaminhar proposições legislativas no Congresso Nacional como o PLC nº 363/2013.
Procuradorias têm atributos, aliás, que permitem sua transformação em uma boa sede para operar essa interlocução entre Judiciário (como responsável pela decisão em questão), Executivo (como motor da mudança institucional à luz da decisão judicial, nesse caso) e Legislativo (como poder responsável por operar a mudança).
A interlocução entre Judiciário e Executivo já está, hoje, no cotidiano das procuradorias brasileiras, em toda a sua atividade contenciosa e boa parte da consultiva. O passo a ser dado para aumentar a porosidade em relação ao Legislativo depende do estabelecimento de vínculos institucionais mais ativos em relação às câmaras de vereadores, assembleias legislativas e Congresso Nacional, que encurtem o percurso político entre as demandas da administração e o Parlamento.
Em conclusão, como defendi em outros espaços, tributar heranças deveria ser uma prioridade nacional, já que em tese atende às demandas de um amplo segmento do espectro ideológico.
Para além de medidas que envolvem o redesenho do imposto, modificando alíquotas e isenções, o fechamento de “buracos” (loopholes) é de especial urgência. Compete, então, ao Congresso Nacional dar atenção ao tema, e aos estados e ao Distrito Federal, principais interessados, acionar seus representantes no Parlamento para que se voltem a ele.
Conselho Editorial:
Clarice Calixto – Doutora em Direito pela FD/UnB
Douglas Zaidan – Doutor em Direito pela FD/UnB
Gilda Diniz – Doutoranda em Direito pela FD/UFG
Renata D´Ávila – Mestra em Direito pelo CEAM/UnB
Victor Cravo – Doutor em Direito pela FD/UnB
Os artigos publicados pelo Observatório da Advocacia Pública representam a opinião pessoal dos(as) respectivos(as) autores(as).
[1] O art. 4º, II, b da Lei Estadual nº 10.705/00 institui o ITCMD sobre transferências ocorridas “quando o ato (...) ocorrer no exterior e o herdeiro, legatário ou donatário tiver domicílio neste Estado”.
[2] Art. 34. O sistema tributário nacional entrará em vigor a partir do primeiro dia do quinto mês seguinte ao da promulgação da Constituição, mantido, até então, o da Constituição de 1967, com a redação dada pela Emenda nº 1, de 1969, e pelas posteriores.
(...)
§ 3º Promulgada a Constituição, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão editar as leis necessárias à aplicação do sistema tributário nacional nela previsto.
§ 4º As leis editadas nos termos do parágrafo anterior produzirão efeitos a partir da entrada em vigor do sistema tributário nacional previsto na Constituição.
[3] § 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.
[4] OECD (2021). Inheritance Taxation in OECD Countries. Paris: OECD Publishing, 2021, p. 61: <https://doi.org/10.1787/e2879a7d-en:. Tradução livre.