Michel Kurdoglian Lutaif
Mestre em Direito do Estado pela USP e professor da Universidade Cruzeiro do Sul.
Nos últimos meses, acertadas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) nos julgamentos das medidas cautelares nas ADI 6.341, ACO 3.451 e ADPF 770 reafirmaram o caráter cooperativo do federalismo brasileiro, asseverando que todos os entes federativos – União, Distrito Federal, estados e municípios – são competentes em matéria de direito à saúde.
Não demorou para que tais decisões fossem utilizadas por parte da ala governista para justificar sua inação no âmbito do combate à pandemia de Covid-19 e na aquisição de imunizantes – dizendo-se "impedida" de atuar –, bem como para criticar os Poderes Legislativo e Judiciário em sua atuação institucional.
Sobrevêm, então, relevante questão: como devem agir os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário dos entes federados quando se deparam com questões envolvendo conflitos federativos, especialmente envolvendo políticas públicas de saúde?
O modelo brasileiro de federalismo mescla competências privativas de cada ente federativo com competências comuns e concorrentes. Ao contrário do modelo estadunidense, a União ainda possui grande concentração de atribuições. Há, assim, nítido caráter cooperativo que, porém, não pode representar um “cheque em branco” para os gestores públicos aturem sem parâmetros, tampouco a subordinação dos entes subnacionais à União.
Em uma análise superficial do artigo 24, inciso XII, da Constituição Federal, fica claro que a ação dos entes federativos deve ser coordenada, o que é corroborado pela redação dada ao §1º do mesmo dispositivo, no sentido de que a União terá competência restrita à edição de normas gerais, enquanto os Estados podem atuar conforme suas peculiaridades.
Recorrente questionamento sobre a atuação coordenada se dá por conta do §4º do mesmo art. 24, que fixa que a superveniência de norma geral editada pela União suspende a eficácia da legislação estadual, no que for contrária: ter-se-ia a impressão de que o constituinte optou por priorizar as normas da União em detrimento das normas dos Estados.
Isso, porém, não é verdadeiro: a competência da União para legislar sobre normas gerais decorre da necessidade de se criar um parâmetro nacional mínimo de cooperação e de harmonização da legislação em matérias sensíveis, minimizando a disparidade normativa.
Ademais, o Supremo Tribunal Federal – destacando-se os recentes julgamentos das ADIs 3874 e 5996 –, tem asseverado que os estados podem adotar legislação mais restritiva do que a União quando necessária para a ampliação do escopo protetivo de direitos fundamentais.
O entendimento da Corte relatado no início do texto ressaltou, então, a exigência de uma atuação coerente e consciente por parte da União. Afinal, foi dada maior autonomia aos gestores para que pudessem desenvolver suas próprias políticas públicas de enfrentamento à pandemia, desde que fossem mais ou igualmente protetivas às diretrizes da União.
A Corte, portanto, não afastou a atuação da União das ações de combate à pandemia, como por muito tempo falsamente se propagou e se tem marcado na impressão de parte da opinião pública.
Tal falácia rendeu atrasos nas medidas sanitárias necessárias, em especial acerca da vacinação – a exemplo da demora na definição do Plano Nacional de Imunização. Foi necessário que o próprio STF, na ADPF 754, desse ultimatos ao Governo Federal para que apresentasse detalhes e critérios sobre a vacinação, de forma a fixar diretrizes mínimas gerais para que Estados e Municípios pudessem definir também suas ações.
E qual é então a importância do reconhecimento de que se trata de competência concorrente? Em primeiro lugar, permite-se uma maior aproximação entre o gestor público e os problemas enfrentados: quem está na ponta, diretamente atrelado com as dificuldades e peculiaridades da realidade local, passa a ter papel fundamental no desenvolvimento e aplicação das políticas públicas.
E, em segundo lugar, pela via reflexa, se reconhece que não há uma política pública única e centralizada que seja completamente eficaz para solucionar todos os problemas decorrentes da pandemia de Covid-19, justamente por não se tratar de fenômeno nacionalmente uniforme.
A definição de critérios específicos de vacinação por estados e municípios, contudo, também elevou a exigência de maior atuação do Poder Judiciário. Diversas entidades de classe e sindicatos questionaram os critérios adotados pelos órgãos técnicos de saúde locais para serem incluídos nos grupos prioritários, bem como para importar vacinas em desconformidade com tais diretivas.
Cite-se como exemplo o pedido formulado pelo Sindicato dos Motoristas Autônomos de Transporte Privado Individual por Aplicativos no DF (Sindmaap). Apesar da autorização obtida em primeira instância, a decisão foi rapidamente revertida pelo TRF da 1ª Região[1].
Outro exemplo pode ser verificado no Tribunal de Justiça de São Paulo. Em ação que buscava a concessão de vacina a pessoa não incluída nos grupos prioritários de vacinação, a liminar foi negada em primeira instância e, em sede recursal, mantida por decisão da Desembargadora Vera Angrisani, da 2ª Câmara de Direito Público[2].
Ambas as decisões – do TRF-1 e do TJSP –, bem como àquelas já proferidas pelo STF no delineamento das ações de combate à pandemia, demonstram que o Poder Judiciário tem se mostrado, em última instância, como balizador dos conflitos federativos, reafirmando a importância da coordenação da União das ações integradas por meio de regras gerais, do papel de estados e municípios na definição de critérios específicos conforme sua necessidade e da prevalência destes em detrimento a interesses privados ou de determinados grupos.
Pela via legislativa, grupos sociais também buscaram a revisão de critérios adotados pelas autoridades sanitárias. O Projeto de Lei nº 948/21 da Câmara dos Deputados, por exemplo, foi apresentado com o propósito de alterar o regramento criado para aquisição de vacinas por entes privados.
O intuito da proposta é flexibilizar a doação de doses ao SUS e relativizar a priorização a grupos vulneráveis e a gratuidade na sua distribuição, condições inicialmente adotadas pelo PNI para permitir a aquisição privada de imunizantes.
A justificativa do projeto, por sua vez, é igualmente desprovida de razoabilidade e de fundamentação, citando o fato de que entidades sindicais obtiveram “exemplar decisão judicial proferida pela Justiça Federal” – ignorando o fato de que, dias depois, antes mesmo da apresentação do projeto, já havia sido cassada pelo TRF1 no caso relatado.
Tal cenário apenas reforça as exigências de cooperação e coerência que se impõem ao Estado Federal brasileiro, em especial por parte do Governo Federal, a quem constitucionalmente cabe, por intermédio do Ministério da Saúde, assegurar a implementação eficaz da política pública.
Negações ou omissões por parte do órgão central de coordenação nacional de saúde, além de nada auxiliar no combate à pandemia, deixam o Poder Legislativo à deriva de interesses setoriais e sobrecarregam o Poder Judiciário com demandas cuja resposta é óbvia.
[1] Suspensão de Segurança Cível nº 1008586-09.2021.4.01.0000.
[2] Agravo de Instrumento nº 2054803-64.2021.8.26.0000.