Beatriz Kira
Professora de Direito na Universidade de Sussex. Doutora em Direito Econômico pela USP e mestra em Ciências Sociais da Internet pela Universidade de Oxford
Na primeira parte deste artigo, apresentamos os recentes avanços da nova onda de regulação digital no âmbito da Europa, resumindo as principais provisões do Digital Services Act (DSA) e do Digital Markets Act (DMA), aprovados em primeira votação pelo Parlamento Europeu neste mês de julho.
A seguir, tratamos sinteticamente das iniciativas em andamento no Reino Unido e nos EUA, fechando com breves perspectivas sobre as três jurisdições.
Assim como na União Europeia, no Reino Unido avançam propostas para criação de regras assimétricas para plataformas digitais. Em 2021, foi criada a Digital Market Unit (DMU), unidade de mercados digitais, como parte da estrutura da autoridade de defesa da concorrência britânica (CMA, sigla em inglês para Competition and Markets Authority). À DMU, foi dada a responsabilidade para realização de trabalhos preparatórios para a implementação de novas regras para mercados digitais, com o subsequente anúncio pelo governo da intenção de introduzir um novo regime regulatório pró-competição voltado às “empresas digitais mais poderosas” com o objetivo de promover maior concorrência e inovação em mercados digitais, e para proteger consumidores e empresas de práticas desleais.
Em maio de 2022, após um período de consulta pública, o governo anunciou como parte de sua agenda legislativa (no chamado Queen’s Speech) a intenção de fortalecer a DMU para atribuir a este órgão competência regulatória.
Um dos principais pontos do plano é a competência da DMU para designar um pequeno número de empresas de tecnologia consideradas muito poderosas em atividades digitais específicas, tais como mídia social e pesquisa online, com Status de Mercado Estratégico (SMS, na sigla em inglês para strategic market status). Tal designação dependerá de análise para determinar se a empresa detém poder de mercado substancial e consolidado em uma atividade digital e posição estratégica nesse mercado. Tais empresas ficariam, então, sujeitas a regras e obrigações para garantir que não possam abusar de suas posições dominantes às custas de consumidores e outras empresas.
Enquanto as obrigações específicas ainda serão elencadas no projeto a ser apresentado, três princípios basilares foram apresentados para empresas com SMS: i) proibição da adoção de termos, condições ou políticas discriminatórias em detrimento de determinados grupos de usuários; ii) proibição de “venda casada”, condicionando o acesso a um serviço ou produto à compra ou ao uso de produtos ou plataformas; e iii) fornecimento de informações claras, relevantes, precisas e acessíveis aos usuários.
O rol de atividades digitais que serão consideradas no escopo da lei ainda está em discussão. Além disso, critérios quantitativos, baseados em um limite mínimo de receita, ainda serão determinados para mensurar o poder de mercado das plataformas SMS e para deixar claro que empresas menores não estarão no escopo da proposta.
O governo planeja, também, atribuir à DMU poderes para realizar intervenções pro-competitivas (PCI, pro-competitive interventions) para atuar na raiz da concentração do poder mercado, incluindo as obrigações de reportar fusões por parte das empresas de tecnologia, de dar aos consumidores mais opções e controle sobre seus dados e de oferecer padrões interoperáveis em seus produtos e serviços.
Para garantir a observância das obrigações, a DMU poderá impor multas de até 10% do faturamento global de uma empresa para as infrações mais graves, com multas diárias adicionais de até 5% do faturamento mundial diário para violações contínuas. Ademais, indivíduos em posição de liderança nas empresas infratoras com SMS estarão sujeitos a penalidades civis e poderão ser impedidos de exercer cargos de direção em empresas britânicas caso não ofereçam informações solicitadas pelo novo regulador.
Seguindo a pioneira iniciativa europeia, do outro lado do Atlântico, autoridades e legisladores norte-americanos têm acaloradamente discutido diversas iniciativas regulatórias para as plataformas digitais — tanto no âmbito federal, quanto em alguns estados. Até o momento, nenhuma delas ainda se converteu em lei e, em meio a embates, audiências e intensas e dispendiosas ações de lobby, muitas discussões têm ocorrido. A seguir, um breve resumo de duas dessas propostas[1].
O American Innovation and Choice Online Act (AICO), que tramita como proposta legislativa bipartidária desde 2021, avançou no Senado norte-americano no início deste ano e tem sido considerado um dos esforços mais contundentes para reformar a regulação que disciplina a indústria da internet. Encabeçado no Senado pela democrata Amy Klobuchar, o projeto tem potencial de produzir implicações significativas para Amazon, Apple e Google em particular, embora alcance outras plataformas grandes como o Facebook e o TikTok.
O projeto proíbe plataformas dominantes — definidas pelo número de usuários — de discriminar outras empresas que dependem de seus serviços ou infraestrutura, o que pode, entre outras coisas, ocasionar a prática de self-preferencing. O AICO será aplicável a plataformas digitais que tiverem ao menos 50 milhões de usuários mensais ativos (ou 100 mil usuários corporativos), que tenham capitalização de mercado ou vendas nos EUA superiores a US$ 550 milhões e que, além disso, sejam consideradas parceiras comerciais relevantes (no inglês, critical trading partners) para usuários corporativos.
O projeto de lei busca impedir que plataformas criem desvantagens para empresas que delas dependam para comercialização ou viabilização de seus produtos ou serviços, bem como que interfiram nas decisões sobre preços tomadas por usuários comerciais que delas se valham ou necessitem. A legislação proposta adota a premissa de que uma empresa dominante que controla um ecossistema digital não pode criar regras especiais para si mesma porque seus competidores não têm uma alternativa realista, isto é, são dependentes de uma ou mais empresas big techs.
Se a proposta avançar, também será vedado o uso de dados não públicos coletados pelas plataformas enquadradas na norma, quando tal coleta implicar de forma desarrazoada vantagens competitivas aos seus próprios produtos. As penalidades podem chegar a 15% do faturamento da empresa nos EUA no ano anterior ou a 30% do faturamento da linha de negócio envolvida na prática considerada ilegal.
As big techs vem se manifestando no sentido de que a regulação pode ser contraproducente e geradora de mais problemas e disfuncionalidades, já que poderia, por exemplo, prejudicar os resultados de busca do Google, impedir que a Apple ofereça produtos ou serviços úteis a quem tem iPhones, forçar o Facebook a cessar a moderação de conteúdo ou tornar, no limite, ilegal o serviço Amazon Prime. A proposta é polêmica também entre acadêmicos e levou um grupo de juristas a publicar uma carta aberta pontuando preocupações de que o AICO, se aprovado, poderia ter impacto sobre a circulação de desinformação, discurso de ódio e assédio na internet.[2]
Já o Competition and Transparency in Digital Advertising Act, proposto em maio de 2022 e defendido por senadores democratas e republicanos, almeja regular a propaganda no ambiente digital, em especial quando se trata de big techs. Segundo seus proponentes, a nova lei teria como função eliminar e prevenir conflitos de interesse resultantes do fato de que empresas ocupam múltiplas posições nos ecossistemas digitais em que atuam, o que cria incentivos para que elas façam e promovam negócios no âmbito do mesmo grupo econômico (self-dealing)[3].
A legislação, se aprovada, imporá restrições severas a empresas com faturamento anual superior a US$ 20 bilhões em publicidade e propaganda digitais. Caso tenha esse faturamento, uma empresa passará a ser impedida de deter, simultaneamente, uma plataforma do lado da demanda (Demand Side Platform - DSP) e uma plataforma do lado da oferta (Supply Side Platform - SSP). A ideia é que empresas do mesmo grupo econômico não atuem, ainda que por meio de entidades ou pessoas jurídicas distintas, em transações e leilões de propaganda e, ao mesmo tempo, na oferta de serviços de softwares que auxiliem anunciantes e editores (advertisers e publishers, respectivamente). Na prática, isso poderá levar plataformas como o Google a ter de escolher entre promover leilões ou, de outro lado, ofertar ferramentas (softwares, por exemplo) que auxiliam empresas a comprar e vender anúncios.
Uma segunda restrição alcança empresas com faturamento anual de US$ 5 bilhões em publicidade digital: entre outras obrigações também envolvendo conflitos de interesse resultantes do controle de distintas empresas envolvidas em publicidade, para essas serão impostas regras de transparência e obrigações de “agir no melhor interesse” de seus clientes, bem como de se submeter a um teste de compliance anual. O projeto requer, adicionalmente, que as empresas por ele reguladas anonimizem informações de seus consumidores, criando, assim, restrições no que diz respeito à utilização de dados pessoais, bem como as obriga a informar os consumidores a respeito “das fontes e da natureza das compensações pagas ou recebidas em suas transações”.
Como ilustrado acima, são evidentes os esforços dos governos nos dois lados do Atlântico para regular as empresas que atuam nos mercados digitais, especialmente aquelas de maior porte, capacidade financeira e alcance em termos de usuários. Trata-se de uma nova onda de regulação digital. Por trás das inúmeras siglas criadas por cada legislação ou projeto de lei no âmbito da União Europeia, Reino Unido e EUA reside a mesma preocupação: atuar preventivamente de forma a impedir o exercício do poder econômico em detrimento de usuários finais e concorrentes, em alguns casos até do próprio processo democrático.
Somente o decurso do tempo, com a entrada em vigor desses marcos legais e a efetiva aplicação nos casos concretos pelas autoridades responsáveis, poderá informar se as intenções pretendidas serão alcançadas. Por ora, os debates certamente seguirão acirrados entre os “descrentes”, de um lado, que consideram as medidas excessivamente restritivas, em prejuízo de investimentos e inovação e, de outro lado, aqueles que confiam em sua adequação e eficácia, sem ignorar, ainda, um terceiro grupo que as reputa como insuficientes para as finalidades almejadas.
A jurisdição europeia é a que se encontra mais adiantada em relação ao tema, e será uma importante referência sobre a matéria para as demais economias liberais, a exemplo do que ocorreu com a implementação do General Data Protection Regulation (GDPR). Com a aprovação dos textos do DSA e do DMA, a atenção se volta agora à aplicação da lei e ao processo de fiscalização e monitoramento das plataformas (a regulação na prática, sempre desafiadora em termos de efetividade), uma vez que esses serão os primeiros regulamentos que a Comissão Europeia implementará diretamente — dando ao órgão amplos poderes para conduzir investigações, impor sanções e desenhar remédios sem que seja necessário o encaminhamento por países membros. Em uma postagem realizada no dia da aprovação das propostas pelo Parlamento Europeu, o comissário para o mercado interno europeu, Thierry Breton, indicou que “a introdução de novas obrigações para plataformas e de direitos para os usuários seria inútil se elas não fossem devidamente aplicadas”. Uma preocupação central é garantir que a Comissão Europeia terá a capacidade adequada para aplicar as novas regras, tanto em termos de recursos financeiros como em relação à disponibilidade de profissionais capacitados para lidarem com os complexos temas regulados pelos dois diplomas.
No Reino Unido, com a renúncia recente do primeiro-ministro Boris Johnson e a necessidade de formação de um novo gabinete, o futuro das propostas apresentadas em maio de 2022 é, agora, incerto. No entanto, a CMA tem um histórico de atuação robusto quando se trata de mercados digitais e vem se apresentando como forte defensora da adoção do novo regime regulatório. É provável, portanto, que o novo governo britânico enfrente pressões para continuar avançando a agenda de regulação digital que tem sido desenvolvida e amadurecida nos últimos anos.
Finalmente, entre os sistemas jurídicos analisados neste artigo, os Estados Unidos parecem ser a jurisdição onde o assunto se encontra mais incipiente do ponto de vista regulatório. A introdução dos projetos de lei envolvendo a regulação de plataformas digitais e a publicidade online entre 2021 e 2022 representa um inegável avanço, mas os projetos têm adiante de si longos trâmites legislativos, em um país que se mantém profundamente dividido em termos políticos e ideológicos.
[1] Outras propostas legislativas da nova onda regulatória de big techs no nos EUA não incluídas na presente análise são o Competition and Antitrust Law Enforcement Reform Act of 2021(CALERA), o United States Innovation and Competition Act (USICA), o ACCESS Act (Augmenting Compatibility and Competition by Enabling Service Switching, o Platform Competition and Opportunity Act e o Ending Platform Monopolies Act.
[2] Tais acadêmicos se preocupam com o fato de que a lei poderia ser interpretada e aplicada de forma a restringir a habilidade das plataformas de moderar conteúdo, prejudicando a qualidade do discurso online. Ver “An Open Letter from Internet Law Scholars to the United States Congress”, disponível em https://docs.google.com/document/d/1aeRihd69Bo-b0zauhWe5nRxgdj-jIksxW-KcV-WHCWY/edit
[3] Especificamente, a legislação proposta tem sido identificada como uma resposta ao Google, o maior agente econômico na propaganda online. "Quando se tem o Google simultaneamente servindo como vendedor e comprador e, ao mesmo tempo, intermediando uma transação, isso lhe dá uma vantagem injusta e indevida no mercado", afirmou o senador Mike Lee.