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improbidade

Nova Lei de Improbidade Administrativa: retrocessos e (ir)retroatividade

Mesmo que o STF decida pela retroatividade, não será o caso de todas as disposições favoráveis retroagirem

Marcelo Malheiros Cerqueira
02/08/2022|05:10
revisão da vida toda
Crédito: Rosinei Coutinho/SCO/STF

Até o advento da Constituição de 1988, as modalidades de responsabilização por atos contrários à probidade na administração cingiam-se à esfera penal, cível-ressarcitória e política. Além de contemplar essas possibilidades[1], a Constituição de 1988 inaugurou esfera própria de sancionamento (art. 37, § 4º). Sua regulamentação foi feita pela Lei 8.429/92, a Lei de Improbidade Administrativa.

Com o passar dos anos, a LIA tornou-se importante instrumento de combate à corrupção. Porém, antes de completadas três décadas de sua vigência, adaptações normativas de cunho material e processual mostravam-se necessárias.

Uma das principais reivindicações consistia em conferir maior previsibilidade ao conceito de improbidade; de outro lado, era imprescindível solucionar problemas que prejudicavam a efetividade do sistema sancionatório e da tutela ressarcitória do erário, como a morosidade processual[2].

Em 2018, foi apresentado o PL 10.887/2018, elaborado pela comissão de juristas para a reforma da Lei de Improbidade Administrativa[3]. Apesar dos seus méritos em dialogar com as perspectivas garantistas e persecutórias, o projeto da comissão foi profundamente alterado durante sua tramitação no Congresso, resultando na Lei 14.230/2021.

A Lei 14.230/2021 inseriu tantas modificações na LIA que logo assumiu a designação de “nova Lei de Improbidade Administrativa”. O seu texto abandonou o equilíbrio do projeto original; focou quase inteiramente a ideia de que a modernização da tutela da probidade dependeria da rejeição de “um certo sentido inquisitorial”, a fim de criar “um ambiente dotado de previsibilidade e segurança jurídica”[4]. Assim, ao lado de diversos requisitos subjetivos e objetivos à configuração dos atos ímprobos, importaram-se garantias penais e processuais penais, pela porta dos fundos do Direito Administrativo Sancionador. Foi ignorada a jurisprudência do STJ e do STF que, depois de quase duas décadas de discussões, consolidou a natureza cível do sistema sancionatório da LIA[5].

Problematicamente, foram colocados obstáculos desproporcionais à propositura, ao prosseguimento e à procedência das demandas judiciais por ato de improbidade. São exemplos: a zona cinzenta de imunidade criada pelo art. 1º, § 8º; a injustificável proteção a sócios e diretores de pessoas jurídicas, prevista nos arts. 3º, § 1º, e 16, § 7º; a redução substancial das condutas tipificadas no art. 11; o ônus de indicação precisa do tipo de improbidade na inicial, sem possibilidade de modificação pelo juízo, conforme art. 17, §§ 6º, II, 10-C, 10-D e 10-F; a blindagem de partidos políticos, nos termos do art. 23-C.

Diante de notório desequilíbrio, o sistema da LIA tornou-se disfuncional e ineficiente. O resultado prático, em prejuízo da tutela da probidade, foi imediato. Conforme noticiado pela 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, o número de ações propostas pelo Ministério Público Federal foi reduzido em mais da metade logo após o advento da nova lei[6].

Os retrocessos na tutela da probidade administrativa desafiam controle de constitucionalidade e de convencionalidade da Lei 14.230/2021[7]. A matéria já foi levantada nas ADIs nºs 7.042 e 7.156 – esta última, de objeto mais amplo, questiona a constitucionalidade de uma série de dispositivos que foram inseridos ou alterados na LIA: art. 1º, § 8º; art. 3º, § 1º; art. 8º; art. 11, caput, e sua combinação com os §§ 3º e 4º; art. 12, inc. III, e seus §§ 1º, 4º, 9º e 10; art. 16, §§ 3, 4º e 10; art. 17, § 10-F, inc. I; art. 17, § 19, inc. II; art. 17-B, § 3º; art. 17-C, § 2º; art. 17-D; art. 21, §§ 4º e 5º; art. 23, caput e §§ 4º e 5º; art. 23-C.

Sem prejuízo disso, está pautado para o início deste mês o julgamento, pelo STF, da repercussão geral sobre a retroatividade ou não das normas benéficas da Lei 14.230/2021. O Tema 1.199 está assim redigido: “Definição de eventual ir(retroatividade) das disposições da Lei 14.230/2021, em especial, em relação: (I) A necessidade da presença do elemento subjetivo — dolo — para a configuração do ato de improbidade administrativa, inclusive no artigo 10 da LIA; e (II) A aplicação dos novos prazos de prescrição geral e intercorrente”.

O uso da expressão “em especial” deixa em aberto a possibilidade de o STF avançar sobre parte das questões que já foram veiculadas nas ações diretas de inconstitucionalidade. Caso não o faça, a definição sobre a aplicação retroativa ou não dos novos prazos de prescrição geral e intercorrente é certamente o ponto mais sensível do debate. Explica-se.

No caso das novas normas de prescrição, o argumento defensivo de igualdade que subsidia a tese da retroatividade benéfica é inválido; os prazos, caso retroajam em favor de réus e investigados, favorecerão mesmo aqueles que praticaram condutas que permaneceram típicas na nova lei. De outro lado, a segurança jurídica que impele a irretroatividade da lei é reforçada. No regime anterior, os órgãos públicos (MP, Judiciário e outros) movimentaram a máquina pública com observância aos prazos então vigentes, visando à promoção da probidade na administração. Há que se proteger a confiança social depositada na tutela do bem jurídico pelo agir estatal efetuado sem atalhos arbitrários, em atenção ao princípio do devido processo legal (art. 5º, LIV, da CR/88).

Há outras nuances a serem consideradas, especialmente quanto ao prazo de quatro anos para prescrição intercorrente. Sua previsão é desproporcional ao prazo de prescrição geral e, diferentemente do que ocorre no âmbito criminal, não há qualquer gradação em comparação com as sanções aplicadas a cada tipo de conduta proibida. Trata-se, ademais, de prazo de natureza processual, cuja contagem deve observar o princípio do tempus regit actum (art. 14 do CPC)[8] e desconsiderar a demora que seja imputável exclusivamente ao serviço judiciário (art. 240, § 3º, do CPC).

Em conclusão, a reivindicação em favor da retroatividade das normas mais benéficas da nova Lei de Improbidade Administrativa merece ser cuidadosamente examinada. Mesmo que se entenda pelo seu cabimento a partir de controverso salto interpretativo[9], não será o caso de todas as disposições favoráveis retroagirem, como se vê com o exemplo paradigmático das normas prescricionais. Ademais, não interessa à hermenêutica apagar as luzes para que certas normas retroajam e, apenas mais à frente, venham a ser reconhecidas como inconstitucionais ou inconvencionais.


[1] Entre outros dispositivos, são fundamentos à responsabilização: a) cível-ressarcitória, os arts. 5º, LXXIII, 37, § 6º, parte final, e 129, III); b) penal, os arts. 5º, XXXIV, XL e XLVI, e 129, I; c) administrativo-disciplinar, o art. 41, § 1º, II; d) política (impeachment), o art. 85.

[2] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Lei de Improbidade Administrativa: obstáculos à plena efetividade do combate aos atos de improbidade. Coordenação Luiz Manoel Gomes Júnior, equipe Gregório Assagra de Almeida et al. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2015.

[3] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2184458. Acesso em 08 jul. 2022.

[4] Trechos do parecer preliminar de plenário n. 2, apresentado pelo relator do PL nº 10.887/2018 na Câmara dos Deputados. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2184458. Acesso em 26 jul. 2022.

[5] Por todos, cf. STF, Pleno, Pet 3240 AgR, Rel. p/ Acórdão Min. Roberto Barroso, j. em 10/05/2018.

[6] https://oglobo.globo.com/politica/nova-lei-de-improbidade-administrativa-reduz-em-mais-da-metade-acoes-contra-agentes-publicos-25515154. Acesso em 01 ago. 2022.

[7] Dentre os tratados que servem de parâmetro ao controle de convencionalidade, cf. arts. 5º e 65, nº 2, da Convenção de Mérida (Decreto nº 5.687/2006), que impõem vedação ao retrocesso legislativo na temática do combate à corrupção.

[8] Até porque, na lei anterior, os processos estavam sujeitos a procedimento distinto, mais moroso, dada a previsão da fase de defesa preliminar da parte ré.

[9] Sobre o tema, de forma mais ampla: CERQUEIRA, Marcelo Malheiros. Considerações sobre o Tema 1.199: (ir)retroatividade das alterações da Lei nº 14.230/2021. Revista Consultor Jurídico, 29 jul. 2022.logo-jota