Julia Wand-Del-Rey Cani
Doutoranda em Direito do Estado pela USP
No último mês, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) julgou em conjunto três ações: Petição (PET) 4770, Reclamação (RCL) 33459 e Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4412. Em primeiro plano, discutiu-se a competência para processar e julgar ações contra a União em razão de atos e decisões do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Nesse âmbito, discutiu-se, também, a dificuldade desses conselhos, órgãos de controle do Judiciário e do Ministério Público, de exigir cumprimento imediato de decisões proferidas em razão de suas competências previstas constitucionalmente. Em segundo plano, um cenário mais complexo sobre processo decisório se revelou nesse julgamento.
De acordo com a jurisprudência vigente até esse julgamento, o STF era o órgão competente para julgar apenas ações constitucionais contra tais conselhos de controle, como o mandado de segurança, mandado de injunção, habeas corpus e habeas data. Caso as pessoas afetadas por decisões do CNJ ou CNMP optassem por ajuizar ações ordinárias, a competência seria da Justiça Federal. Isto é, a autoridade para determinar o cumprimento imediato das decisões do CNJ e do CNMP dependeria da espécie processual utilizada. Na prática, juízes viam-se como revisores de atos e decisões justamente dos órgãos incumbidos constitucionalmente de sua supervisão e fiscalização.
Essa forma de divisão de competência acarretava tanto um quadro de insegurança jurídica, pela possibilidade não cumprimento de decisões dos conselhos, quanto a frustração da competência do órgão de cúpula do Poder Judiciário. Afinal, a Constituição, ao prever, no art. 102, I, r, que compete ao STF processar e julgar, originariamente, as ações contra o CNJ e CNMP, não faz diferenciação de acordo com a via processual eleita pela parte.
Mudando sua jurisprudência nesse julgamento triplo, o Supremo definiu a seguinte tese jurídica: “Nos termos do artigo 102, inciso I, “r” da Constituição Federal, é competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal, processar e julgar, originalmente, todas as ações ajuizadas contra decisões do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público proferidas no exercício de suas competências constitucionais, respectivamente, previstas no artigos 103-B, § 4º, e 130-A, § 2º”.
O cenário mais complexo sobre processo decisório, que se revelou em segundo plano, envolveu a eficácia das decisões do STF.
Os ministros se reportaram à insegurança jurídica causada por decisões da Justiça Federal, que poderia divergir de decisões do STF ainda que julgasse ações com mesma situação fática. Por essa razão, em 2019, o relator da ADI, ministro Gilmar Mendes, deferiu liminar para suspender todas as ações ordinárias que questionavam atos praticados pelo CNJ em trâmite na Justiça Federal. Com o julgamento do mês passado, tais ações devem ser remetidas ao Supremo.
Essa divergência, entretanto, decorre do modelo decisório brasileiro. Ao exercer o controle de constitucionalidade concreto, juízes e tribunais de todo país podem declarar, incidentalmente, a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo. As decisões proferidas pelo STF, nesse contexto, exceto se consolidadas em uma súmula vinculante, como regra, restringem-se às partes. Ou seja, como a jurisprudência antiga do STF admitia tanto sua própria competência como a competência da Justiça Federal, a chance de haver divergência não era exatamente algo inesperado, porque a eficácia das decisões em controle concreto limitava-se às partes de cada ação.
Nesse sentido, a opção por pautar em conjunto ação de natureza concreta e ação de natureza abstrata de controle de constitucionalidade não parece ter sido aleatória. Trata-se de uma solução que pode modificar a eficácia que cada uma das três ações teria caso fosse julgada separadamente.
A pauta em conjunto permite que os ministros enfrentem, de uma única vez, ações com temas similares e que, de modo geral, teriam seus efeitos expandidos de maneira diversa pelos jurisdicionados.
Por exemplo, na RCL 33459, os ministros decidiram dar provimento ao agravo regimental para anular especificamente a decisão da Justiça Federal que havia cassado penalidade de censura imposta pelo CNMP a uma promotora de Justiça do Estado de Pernambuco. Da mesma forma, na PET 4770, decidiram que o Supremo seria o órgão competente para analisar a decisão do CNJ especificamente sobre uma serventia provida sem concurso público. Referem-se, ambos os casos concretos, a decisões com efeitos tradicionalmente limitados às partes envolvidas em cada ação. A ADI, de maneira diversa, possui efeitos vinculantes e contra todos, com relação à sua parte dispositiva, não aos fundamentos da decisão.
Mas julgar a ADI isoladamente não teria o mesmo efeito do julgamento em conjunto?
Não necessariamente. O art. 106 do RICNJ, questionado e declarado constitucional nessa ação abstrata, prevê que o CNJ determinará à autoridade recalcitrante o imediato cumprimento de decisão quando impugnada perante outro juízo que não o STF. Como se observa, esse dispositivo não diz que outros juízos são incompetentes. Quem definiu a incompetência de outros juízos para suspender ou anular decisões dos conselhos relacionadas a atribuições finalísticas, ou seja, aquelas definidas no texto constitucional, foi o Supremo. E, para tanto, o tribunal levou em consideração os fatos levados a juízo pelos dois casos concretos pautados juntos com a ADI.
Por um lado, o julgamento na ADI dependia da posição do Supremo para aquelas questões concretas, especialmente por se tratar de uma virada na jurisprudência. Por outro, os efeitos da decisão em controle abstrato confirmaria para todos o poder dos conselhos de exigirem o cumprimento de suas decisões. Contudo, a ampliação da eficácia das decisões na PET e na RCL não veio dos efeitos vinculantes e erga omnes da ação de controle abstrato. Veio da tese jurídica, porque o conteúdo da tese é mais abrangente que a decisão tomada na ADI.
A ADI se referiu à norma interna do CNJ, não do CNMP, e a decisão no caso concreto em que o CNMP aplicou a penalidade de censura valeria somente para aquela promotora. Uma súmula vinculante, caso aprovada nesse julgamento, seria o mecanismo decisório típico para tornar obrigatória a reprodução da conclusão do STF para o caso. Porém, tratando-se de uma mudança na jurisprudência, faltariam “reiteradas decisões sobre matéria constitucional”, requisito exigido na Constituição para aprovação das súmulas. A opção dos ministros foi a aprovação de uma tese jurídica para ser aplicada de forma uniforme às três ações, e é a partir dela que os efeitos da decisão do caso concreto da RCL 33459 poderão se expandir para casos semelhantes. Quem tem tese e pauta conjunta, assim, não precisa de súmula. Inclusive, a tese trouxe em sua redação os fundamentos que os ministros indicaram como determinantes para a decisão.
A escolha pelo julgamento em conjunto e aprovação de uma tese única a partir dele concederam maior força à decisão do STF. Temas complementares foram tratados de uma única vez e da forma mais ampla possível. E a ampliação não ocorreu só porque a eficácia da decisão, de certo modo, passa das partes para todos, mas também porque a situação fática foi encarada pela perspectiva mais extensa possível. Ou seja, esse caso mostra como o STF às vezes pode precisar usar o caso e a tese para ampliar o âmbito de uma decisão que resolve problema concreto não compreendido pelos limites de uma questão jurídica ou outra levada ao tribunal.
Embora possa ser precipitada, porque ainda não acompanhada de mudanças normativas, é significativa a fala do ministro Luís Roberto Barroso sobre a necessidade de uma “eficácia vinculante geral” das decisões do Supremo. Para o ministro, a tese jurídica seria o mecanismo decisório apto a viabilizar esse novo efeito decisório, que impactaria significativamente o controle de constitucionalidade adotado no Brasil.
O episódio 46 do podcast Sem Precedentes discute se o contrato de trabalho intermitente é ou não constitucional. Ouça: