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Direitos humanos

Clima e direitos humanos: as contribuições aportadas pela Corte IDH

Normativo da Corte IDH pode inspirar jurisprudência nacional no controle de convencionalidade em matéria climática e ambiental

Rodrigo Mudrovitsch
19/07/2025|05:00
Corte IDH
Audiência pública da Corte IDH em agosto de 2022, em Brasília / Crédito: Reprodução/Flickr/CorteIDH

No último dia 3 de julho, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) notificou e publicou a Opinião Consultiva OC-32/25, solicitada por Chile e Colômbia, a respeito das obrigações estatais frente à emergência climática no marco da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e de outros tratados do Sistema Interamericano. Trata-se do mais amplo pronunciamento já emitido por um tribunal de direitos humanos sobre os impactos das mudanças climáticas e as responsabilidades estatais correspondentes.

O documento, com mais de 200 páginas, responde a um conjunto de perguntas que dizem respeito à forma como os Estados devem respeitar, garantir e realizar, de modo progressivo e não discriminatório, diversos direitos ameaçados ou afetados pelos impactos do aquecimento global.

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Entre eles estão tanto direitos substantivos (como vida, integridade pessoal, saúde, alimentação, água, moradia, trabalho, previdência, educação, cultura e o próprio direito a um ambiente sadio) quanto direitos procedimentais (como acesso à informação, participação política e acesso à justiça). A consulta submetida à Corte IDH também demandou esclarecimentos sobre obrigações específicas voltadas a grupos em situação de vulnerabilidade, incluindo crianças, povos indígenas, comunidades tradicionais, mulheres, migrantes e defensores ambientais.

O parecer da Corte IDH está fundamentado em um amplo e articulado conjunto de fontes: a Convenção Americana, o Protocolo de San Salvador, a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem, normas de jus cogens e princípios gerais do Direito Internacional dos direitos humanos. A Corte IDH também emprega critérios hermenêuticos já consagrados, como a interpretação evolutiva, o princípio pro persona e a leitura sistêmica da Convenção.

A OC-32/25 consolida e amplia, de maneira significativa, os precedentes estabelecidos pela Corte IDH em sua Opinião Consultiva 23, de 2017, intitulada Meio Ambiente e Direitos Humanos, primeira ocasião em que o tribunal reconheceu expressamente o direito a um meio ambiente sadio no âmbito do Sistema Interamericano.

Na nova opinião, a Corte IDH vai além: reconhece o direito a um clima estável como um direito humano autônomo, derivado do artigo 26 da Convenção Americana. Ao reconhecer esse novo direito, o tribunal inaugura uma nova etapa no desenvolvimento do direito internacional dos direitos humanos. Trata-se de uma categoria jurídica emergente que, embora articulada ao direito ao meio ambiente sadio, possui escopo próprio e implica obrigações específicas de mitigação, adaptação e prevenção.

A Corte IDH afirma que a emergência climática compromete diretamente a efetividade da convenção, exigindo uma interpretação evolutiva e sistêmica de seus dispositivos. Suas conclusões podem ser relacionadas a ao menos cinco pilares argumentativos centrais.

O primeiro pilar diz respeito à gravidade da emergência climática. A OC-32/25 se apoia fortemente no conhecimento científico consolidado, sobretudo nos relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), para reconhecer que a emergência climática representa uma ameaça sistêmica à plena realização dos direitos humanos no presente e no futuro. A Corte IDH descreve com precisão as origens antropogênicas das mudanças climáticas, seus impactos desiguais e as consequências para ecossistemas e populações vulneráveis, tais como as da América Latina e do Caribe.

O segundo pilar está na construção jurídica de deveres estatais. A Corte IDH reforça que os Estados têm o dever de respeitar, proteger e garantir os direitos humanos diante da emergência climática. Isso inclui obrigações de prevenir danos irreversíveis ao ambiente e ao clima, com base em um padrão de diligência reforçada, compatível com o conhecimento científico disponível.

O conceito de “devida diligência reforçada” – introduzido, nesse ponto, como padrão jurídico qualificado – estabelece que os Estados devem agir com maior grau de precaução e antecipação, levando em conta os riscos identificáveis. Esse dever se aplica tanto a ações quanto a omissões, e pode gerar responsabilidade internacional mesmo diante de danos potenciais, ainda não consumados.

Quanto aos deveres estatais centrais, são destacadas também as obrigações de mitigar emissões, adaptar políticas públicas, integrar a questão climática ao planejamento estatal e adotar medidas legislativas e administrativas eficazes. Merece atenção a afirmação da Corte IDH de que a obrigação de não causar danos significativos e irreversíveis ao ambiente e ao sistema climático global tem natureza de jus cogens, ou seja, constitui norma imperativa do Direito Internacional, de caráter erga omnes e da qual os Estados não podem se afastar por acordo em contrário.

Essa, sem dúvida, constitui uma das principais contribuições do parecer da Corte IDH, alçando as obrigações internacionais dos Estados em matéria climática a um patamar hierárquico superior. Nas palavras do tribunal, tal enquadramento “contribui para dar efetividade às normas existentes de forma mais integral e alcançou nível de consolidação e reconhecimento universal que justifica sua classificação como norma de jus cogens, em virtude de sua conexão indispensável com a proteção da vida humana, da dignidade e da justiça intergeracional".

Ainda no âmbito dos deveres estatais, um ponto importante da OC 32/25 é o reconhecimento de que a resposta estatal à crise climática deve ser construída também em chave coletiva. A Corte IDH assevera que os Estados têm obrigações positivas de cooperação internacional, tanto em termos de financiamento climático quanto de intercâmbio técnico e científico.

Reitera que os compromissos dos Estados variam conforme sua contribuição histórica à crise climática, suas capacidades institucionais e seus contextos socioeconômicos, conforme o princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas. A cooperação técnica, a solidariedade regional e o intercâmbio científico são, nessa moldura, dimensões inescapáveis da boa-fé na implementação das obrigações convencionais.

Essas obrigações devem ser cumpridas de forma integrada às responsabilidades internas: um Estado que, por exemplo, se omite na formulação de planos nacionais de mitigação e adaptação compatíveis com suas capacidades e responsabilidades históricas pode ser considerado internacionalmente responsável por violação de direitos humanos.

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O terceiro pilar argumentativo refere-se à interseccionalidade e à proteção diferenciada. A OC-32/25 afirma que a emergência climática agrava desigualdades históricas e aprofunda vulnerabilidades já existentes. Respondendo às já mencionadas demandas da consulta, a Corte IDH dedica capítulos inteiros para examinar os impactos climáticos específicos sobre crianças e adolescentes, povos indígenas, comunidades afrodescendentes, mulheres e migrantes.

Em todos esses casos, se reconhece que o princípio da igualdade material impõe deveres estatais de resposta diferenciada, com políticas públicas focalizadas e com ampla participação das comunidades afetadas. Merece destaque o reconhecimento das contribuições dos saberes locais e tradicionais – sobretudo indígenas – na formulação de soluções climáticas sustentáveis.

No âmbito desse terceiro pilar, a opinião consultiva também reforça a proteção das pessoas defensoras do ambiente. Afirma que os Estados devem adotar medidas para garantir sua segurança física, sua liberdade de expressão e sua participação nos processos decisórios. Essa proteção abrange não apenas os defensores em sentido estrito, mas também comunidades e coletivos dedicados à preservação dos ecossistemas. A sentença enfatiza que ataques, criminalização ou omissão estatal diante de ameaças a essas pessoas configuram violações graves e autônomas dos direitos protegidos pela convenção.

O quarto pilar argumentativo da opinião consultiva refere-se aos chamados direitos procedimentais: acesso à informação, participação pública e acesso à justiça. A Corte IDH reafirma o dever estatal de produzir e divulgar informação climática confiável, combater a desinformação ambiental e garantir espaços democráticos de deliberação.

Além disso, destaca a importância do direito à ciência, compreendido como o direito de todos de se beneficiar do progresso científico – o que inclui a transparência na comunicação dos riscos climáticos e a consideração de evidências técnicas na formulação de políticas. A OC-32/25 também fortalece a noção de acesso à justiça climática, inclusive para ações coletivas por parte de comunidades afetadas e até mesmo de crianças.

Já o quinto pilar reforça o caráter intergeracional da proteção climática. Nesse sentido, a Corte IDH afirma que os Estados têm o dever de proteger os direitos das gerações futuras, devendo adotar medidas presentes com vistas à preservação do ambiente e do clima como condições estruturantes da dignidade humana no tempo.

Por fim, é importante notar que a Corte IDH dialoga com experiências internacionais relevantes. Refere-se a decisões da Corte Europeia de Direitos Humanos, da Corte Internacional de Justiça, do Tribunal Internacional do Direito do Mar e de tribunais constitucionais nacionais – inclusive o Supremo Tribunal Federal do Brasil – que vêm progressivamente reconhecendo a dimensão jurídico-climática dos direitos humanos.

Ao fazê-lo, a Corte IDH reforça o entendimento de que o Direito Internacional está em processo de adaptação a uma nova era: aquela em que a preservação das condições biofísicas da Terra passa a ser pressuposto inescapável para os sistemas jurídicos democráticos.

A Opinião Consultiva OC-32/25 representa, assim, um marco normativo e interpretativo fundamental para os países das Américas. Ao afirmar o vínculo indissociável entre clima e direitos humanos, a Corte IDH oferece um novo paradigma que poderá – e deverá – inspirar o Direito Constitucional, a jurisprudência nacional e o necessário exercício do controle de convencionalidade em matéria climática e ambiental.logo-jota