Entre os países de tradição Civil Law, o Brasil foi pioneiro na criação e implementação dos processos coletivos[1]. Desde a década de 1980, o ordenamento jurídico pátrio conta com um dos mais sofisticados sistemas de tutela dos direitos transindividuais, cuja arquitetura normativa exerceu influência decisiva sobre a conformação de modelos jurídicos em diversos países latino-americanos.
Historicamente, a ação popular constituiu o primeiro instrumento processual concebido para canalizar a tutela de direitos difusos no contexto nacional. Prevista originariamente na Constituição Federal de 1934 (art. 113, item 38), conferia legitimidade ao cidadão para pleitear a declaração de nulidade ou anulação dos atos lesivos ao patrimônio público.
Suprimida pelos ventos autoritários da Constituição de 1937, o instrumento ressurge com a Carta de 1946 (art. 141, § 38), vindo a receber disciplina normativa mais ampla com a edição da Lei 4.717 em 1965. Após a reforma instituída pela Lei 6.513 de 1977, seu objeto foi expandido para admitir a defesa de direitos difusos ligados ao patrimônio ambiental, notadamente “bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico”.
O grande marco legislativo, porém, do processo coletivo nacional adveio com a edição da Lei 7.347 em 24 de julho de 1985, que instituiu o principal instrumento de tutela de direitos coletivos no Brasil: a ação civil pública.
Antes da promulgação da Lei 7.347, a Lei 6.938/81 já havia atribuído legitimidade ao Ministério Público para propor ação de responsabilidade civil por danos causados ao meio ambiente (art. 14, § 1°). Contudo, a ausência de regulamentação procedimental do instituto, somada à limitação de seu objeto (reparação de danos ambientais), dificultava o uso desta ação para plena chancela dos direitos transindividuais[2].
A Lei 7.347 foi precedida por dois anteprojetos legislativos. O primeiro, elaborado por Comissão composta por Ada Pellegrini Grinover, Kazuo Watanabe, Cândido Rangel Dinamarco e Waldemar Mariz de Oliveira Jr., foi apresentado como tese científica no I Congresso Nacional de Direito Processual no Rio Grande do Sul em 1983, sob a relatoria de José Carlos Barbosa Moreira. Amadurecido em congressos nacionais e internacionais ulteriores, o anteprojeto foi conduzido à Câmara dos Deputados pelo então parlamentar paulista Flávio Bierrenbach, onde tramitou sob a forma do PL 3034/1984.
A partir do anteprojeto original, os então promotores de justiça Antônio Augusto Mello de Camargo Ferraz, Édis Milaré e Nelson Nery Jr. redigiram uma segunda proposta legislativa, ampliando significativamente o escopo do texto, em especial no que tange às prerrogativas institucionais do Ministério Público (ex: inquérito civil). Este novo anteprojeto foi apresentado pela Conamp ao governo federal, que o acolheu e submeteu ao Congresso Nacional em 1985, convertendo-o no PL 4984/1985.
Como Projeto do Executivo, submetido pelo próprio Presidente da República, o texto contou com tramitação célere no Congresso Nacional, culminando com sua sanção presidencial em 24 de julho de 1985. Nascia, assim, a Lei 7.347, doravante consagrada como Lei da Ação Civil Pública (LACP).
Curiosamente, como rememora Hugo Nigro Mazzilli, o projeto original não se valia da expressão “ação civil pública”, então associada a uma ação de titularidade exclusiva do Ministério Público. Optava, ao invés, pela denominação “ação coletiva”. O segundo anteprojeto, contudo, foi responsável pela terminologia, ampliando o espectro de legitimidade à propositura da demanda coletiva[3]. Hoje, o nomen iuris “ação civil pública” encontra-se consolidado e fundamenta ações coletivas manejadas por quaisquer dos colegitimados.
Com o advento da Lei 7.347, instituiu-se um procedimento especial voltado a fazer atuar a jurisdição coletiva em face dos direitos transindividuais, inaugurando-se não apenas um modelo diferenciado de tutela jurisdicional a bens jurídicos coletivos, mas um novo paradigma de processualidade, que rompia com a tradição liberal-individualista até então dominante no processo civil brasileiro.
Nas palavras do presidente José Sarney, responsável pela sanção da LACP em 1985: “não se limitavam mais, os procedimentos, às acanhadas ações de responsabilidade por danos depois de consumado o desastre. Ampliaram-se as regras de direito e as formas de pensar. A ação civil pública, em defesa de direitos difusos, mais do que os simples interesses, constitui-se no instrumento definitivo para a cautela preventiva e conservadora dos maiores bens da humanidade, consistentes na preservação da natureza e dos patrimônios históricos, culturais e artísticos do próprio homem”[4].
Temas sensíveis como legitimidade (art. 5º), competência (art. 2º), tutelas cautelares (art. 4º), coisa julgada (art. 16) e execução (art. 15) foram objeto de reinterpretação e disciplina específica pela Lei nº 7.347, o que passou a viabilizar uma tutela jurisdicional qualificada e estruturalmente diferenciada aos direitos transindividuais.
Cumpre destacar a inclusão do meio ambiente, do consumidor e do patrimônio público como bens jurídicos inicialmente tutelados pela Lei 7.347. Com o tempo, esse rol foi significativamente ampliado, passando a abarcar a proteção de bens e valores de natureza artística, estética, histórica, turística e paisagística, bem como a ordem econômica, a ordem urbanística, a honra e a dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos, além da defesa de quaisquer outros interesses difusos ou coletivos, nos termos do art. 1º.
A Lei 7.347 não apenas se antecipou à Constituição Federal de 1988, como exerceu influência decisiva sobre os trabalhos do Poder Constituinte Originário. Ao universalizar a tutela dos direitos transindividuais, a Carta Democrática incluiu expressamente a categoria dos “direitos coletivos” no Capítulo I do Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais). Instituiu, ademais, uma cláusula geral de inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, inciso XXXV), impondo ao Poder Judiciário o dever de apreciação de toda e qualquer lesão ou ameaça a direito, seja ele individual ou coletivo.
Adiante, demonstrando fina sintonia com a Lei 7.347, a Carta de 1988 atribuiu ao Ministério Público o dever de “promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos” (art. 129, inc. III), reafirmando o papel central deste instrumento processual na defesa dos direitos transindividuais.
Conferiu, ademais, o status de garantia fundamental à ação popular, incluindo-a no rol de remédios do artigo 5º. Seu escopo foi ampliado para abranger, além do patrimônio público, a moralidade administrativa, o meio ambiente e o patrimônio histórico e cultural. No mesmo sentido, favoreceu a tutela de direitos coletivos na seara trabalhista, ao reconhecer as “convenções e os acordos coletivos de trabalho” (art. 7°, inc. XXVI) e a “defesa dos direitos e interesses coletivos da categoria pelos sindicatos” (art. 8°, inc. III).
Outra importante inovação trazida pela Constituição Federal de 1988 foi a previsão inédita do mandado de segurança coletivo, conferindo-se legitimidade para sua impetração a “partido político com representação no Congresso Nacional, organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados” (art. 5°, inc. LXX).
Todo esse movimento de constitucionalização da tutela coletiva de direitos não apenas reforça, como também se inspira diretamente na trajetória institucional inaugurada pela Lei de Ação Civil Pública.
Com o advento da Lei 8.078 em 1990 (Código de Defesa do Consumidor), consolidou-se o chamado microssistema de processo coletivo brasileiro. Nas trilhas da descodificação, as Leis 7.347 e 8.078 passaram a ocupar posição central no eixo axiológico da tutela coletiva nacional, franqueando um diálogo normativo recíproco entre seus institutos processuais, conforme as regras de reenvio inseridas nos artigos 21 da LACP e 90 do CDC.
Positivou-se, ademais, a clássica tipologia trinária dos direitos transindividuais – difusos, coletivos strictu sensu e individuais homogêneos – consoante disposto no parágrafo único do artigo 81. Para além dessa classificação, o CDC aperfeiçoou substancialmente a regulação do processo coletivo nacional, ao introduzir uma série de regras específicas envolvendo a competência territorial (art. 93), a tutela específica de obrigações de fazer e não fazer (art. 84), a publicidade das ações coletivas (art. 94), a coisa julgada coletiva (art. 103), além da liquidação e execução da sentença coletiva (arts. 97 a 100).
Não obstante seus avanços, a trajetória da ação civil pública não esteve imune a retrocessos. Ao contrário, em diversas ocasiões, a Lei 7.347 viu-se refém do autoritarismo[5]. Cite-se, em especial, a limitação estampada no parágrafo único do art. 1º, inserido pela Lei 9.494/1997 – originária da MP 1.570/97 e sucessivamente reeditada pelas MPs 1.798-2/99, 2.102-26/00 e 2.180-35/01.
Tais normativas, flagrantemente inconstitucionais, vedaram a utilização da ação civil pública para a defesa de pretensões envolvendo tributos, contribuições previdenciárias, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e fundos de natureza semelhante.
Apesar das limitações impostas, a ação civil pública consolidou-se, ao longo dos anos, como o principal instrumento de tutela jurisdicional dos direitos transindividuais no ordenamento brasileiro. Por seu intermédio, assegurou-se proteção a uma ampla gama de direitos fundamentais, abrangendo os direitos sociais (saúde, educação, moradia, transporte e mobilidade urbana, alimentação, segurança pública etc.); direitos trabalhistas (especialmente em acordos ou convenções coletivas de trabalho); direitos de grupos vulneráveis (pessoas com deficiência, crianças e adolescentes, idosos, mulheres, negros e quilombolas consumidores, povos indígenas, pessoas em situação de rua etc.), além dos direitos difusos relacionados ao meio ambiente e à moralidade administrativa.
A legitimação do Ministério Público, de gênese legislativa, se confirmou ao longo das décadas, alicerçada na solidez de sua estrutura institucional e no protagonismo de seus membros na defesa dos interesses transindividuais. Essa “proeminência funcional”, entretanto, não se converteu em “preeminência jurídica”, na medida em que a Lei nº 7.347 manteve um modelo de legitimidade concorrente e disjuntiva para o exercício da ação civil pública, inclusive com a sua utilização cada vez mais alargada por associações privadas e partidos políticos.
O acesso coletivo à justiça foi ainda mais ampliado com a promulgação da Lei 11.448/2007, que incluiu expressamente a Defensoria Pública entre os legitimados para a propositura da ação civil pública, nos termos do inciso II do art. 5º da LACP. Essa legitimação foi posteriormente ampliada pela LC 132/2009 e, por fim, alçada ao patamar constitucional por meio da EC 80/2014, consolidando-se como expressão do compromisso estatal com a promoção dos direitos dos necessitados e a democratização da tutela coletiva.
A jurisprudência também desempenhou papel relevante na construção hermenêutica do regime jurídico da ação civil pública. Como exemplos emblemáticos desse processo, destaca-se o julgamento pelo STF do Tema 1.075, que reconheceu a inconstitucionalidade da limitação territorial imposta à coisa julgada coletiva; e o julgamento pelo STJ dos CC’s 144.922/MG (Mariana) e 164.362/MG (Brumadinho), que revisitaram as regras de conexão, litispendência e competência nas ações coletivas, estabelecendo diretrizes relevantes para a gestão jurisdicional dos megaconflitos ambientais.
A Lei de Ação Civil Pública também assistiu (e resistiu!) a inúmeras tentativas de reforma e codificação ao longo das últimas décadas. Entre os principais esforços doutrinário-legislativos, destacam-se o Anteprojeto de Código Brasileiro de Processo Coletivo elaborado pelo IBPD, o Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos formulado em parceria entre UERJ e UNESA, além do Projeto de Lei nº 5.139/2009, que visava reformar a Lei de Ação Civil Pública.
Em período mais recente, ao menos três proposições legislativas intentam reconstituir a Lei de Ação Civil Pública: o PL 4778/2020 (Projeto CNJ), o PL 4441/2020 (Projeto Paulo Teixeira) e o PL 1641/2021 (Projeto IBDP). Dentre eles, merece destaque o PL 1641/2021 elaborado por Comissão de Juristas coordenada pelo Prof. Kazuo Watanabe, que condensa os principais avanços doutrinários e jurisprudenciais relativos ao processo coletivo brasileiro. Não por acaso, o PL 1641 leva o nome “Projeto Ada Pellegrini Grinover”, em justa homenagem à lente das Arcadas que tanto contribuiu para o processo coletivo brasileiro.
Em tempos atuais, a ação civil pública continua a emprestar utilidade à tutela dos conflitos coletivos contemporâneos. Prova disso é sua aplicação aos denominados litígios estruturais. Se por um lado, as peculiaridades desses conflitos demandam adaptações procedimentais – e.g., fase de diagnóstico, ênfase no consenso, ampliação do contraditório, decisões prospectivas etc. –, por outro, evidenciam a atemporalidade e a versatilidade da ação civil pública, reafirmando sua aptidão para enfrentar os desafios complexos do processo coletivo hodierno.
A propósito, o art. 1º do PL 3/2025, atualmente em trâmite no Senado, explicita a centralidade da Lei 7.347 na disciplina dos processos estruturais, ao dispor que: “esta lei disciplina as ações civis públicas destinadas a lidar com problemas estruturais”; e no § 2º que: “o processo estrutural regula-se pelas disposições da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, e, supletiva e subsidiariamente, pela Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015”.
Quarenta anos após sua promulgação, a Lei da Ação Civil Pública ergue-se majestosa como um dos mais sólidos pilares da democracia substantiva brasileira. Sua trajetória revela não apenas resistência institucional, mas impressionante plasticidade normativa frente às ondas de refluxo democrático e aos novos desafios jurídicos a que coube enfrentar.
Não se sabe por quanto tempo ainda resistirá esse instrumento processual, tantas vezes refém das marés autoritárias e do desinteresse político. Mas é certo que, enquanto houver grupos vulnerabilizados, bens difusos ameaçados e direitos sociais negligenciados, a ação civil pública seguirá necessária, não como relíquia do passado, mas como vela estendida à frente da história democrática.
[1] GRINOVER, Ada Pellegrini. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor – comentado pelos autores do anteprojeto. 12ª e. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 838.
[2] Apesar das disposições à época da Lei Complementar nº 40/1981, que estendia a atuação do Ministério Público na intervenção de outros interesses indisponíveis nos termos da lei (art. 3º).
[3] MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 31ª e. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 138.
[4] SARNEY, José. Interesses difusos e direito coletivo. In: MILARÉ, Édis (coord.). Ação civil pública após 35 anos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020.
[5] GRINOVER, Ada Pellegrini. A Ação Civil Pública refém do autoritarismo. In: Revista Forense, v. 96, jan/mar., 2000, p. 3-10.