
Os artigos anteriores da presente série mostraram a necessidade de que o Direito Antitruste possa levar em consideração outros objetivos que não apenas a proteção do consumidor, ainda mais quando este propósito é compreendido pelo viés restritivo do consumer welfare standard, nos termos propostos pela Escola de Chicago.
Todavia, é importante ressaltar que a visão mais ampla do Direito Antitruste, tal como a ora proposta, não é incompatível com a proteção do consumidor. Pelo contrário, a proteção do consumidor continua a ser um importante objetivo do Direito Antitruste, ainda que seja vista no contexto de outras finalidades igualmente importantes, sendo que a maior parte delas é inclusive convergente com a tutela dos consumidores.
Mais do que isso, as novas abordagens, naquilo em que superam a visão single-pointed do Direito Antitruste, não apenas não desconhecem a necessidade de proteção do consumidor, como procuram fazê-lo de uma forma ainda mais ampla e efetiva, superando uma série de problemas do restritivo critério da maximização do bem-estar do consumidor.
Com efeito, como também já se viu anteriormente, o critério de proteção do consumidor proposto pela Escola de Chicago, especialmente na versão de Bork, é extremamente reducionista. De forma paradoxal, pode não levar a nenhum tipo de proteção do consumidor, ainda mais se a eficiência alocativa for vista a partir da maximização do bem-estar geral e agregado da sociedade.
Acresce que, como bem resume Sandeep Vaheesan, em seu provocativo artigo The Profound Nonsense of Consumer Welfare Antitrust[1], o standard é baseado em três grandes falsidades: (i) uma de origem, já que se trata de objetivo estranho aos propósitos e à redação do Sherman Act, (ii) uma de concepção do mercado, já que parte da equivocada premissa de que este é uma força da natureza, ignorando que ele é construído e estruturado pelo Estado por meio de regras legais e (iii) uma de teoria econômica, já que extensa pesquisa empírica tem mostrado que as concentrações não vem promovendo o bem-estar do consumidor e que as práticas predatórias são reais.
Além do crescente descolamento do critério do consumer welfare das evidências empíricas, não são poucos os autores que atualmente têm procurado ressaltar suas graves inconsistências teóricas e vários dos seus resultados inaceitáveis, concluindo pela falta de confiabilidade do critério para reger as análises antitruste[2].
Por essa razão, são pertinentes as críticas no sentido de que a proteção do consumidor deve (i) ser ampliada, buscando resgatar seus compromissos não apenas com preços baixos, mas também com qualidade, diversidade e inovação; e (ii) ser efetiva, deixando de se contentar com meras presunções e conjecturas, muitas das quais dependem de uma série de variáveis no longo prazo, e devendo se basear na avaliação real dos impactos das ações dos agentes titulares de poder econômico sobre os consumidores tanto no curto como no médio e no longo prazo.
Mais do que isso, há que se ressignificar a proteção do consumidor, inclusive para o fim de incluir a proteção de dimensões da personalidade que podem ser afetadas por meio do abuso de poder econômico. Por mais que muitas dessas preocupações possam e devam ser endereçadas também por outras áreas jurídicas – como o Direito do Consumidor e o Direito Civil –, é igualmente certo que não podem ser afastadas do foco de preocupações do Direito Antitruste sempre que estiverem relacionadas ao abuso de poder econômico.
Ganha relevo, sob esta ótica, a importantíssima questão da proteção de dados pessoais, diante de uma economia cada vez mais movida a dados. Logo, o efetivo controle do abuso do poder econômico não poderá se desincumbir da sua tarefa sem identificar em que medida a utilização de dados pessoais dos usuários, decorrente ou não de violações aos seus direitos de personalidade – já que pode haver casos em que a coleta de dados seja lícita – se converte em poder econômico e em que medida este pode ser exercido abusivamente[3].
Não se trata de ampliar, de forma indesejável, o objeto do Direito da Concorrência ou de flexibilizar excessivamente as suas finalidades, mas tão somente de se endereçar a circunstância de que o manejo dos dados é uma eficiente fonte de aquisição, consolidação e exercício do poder econômico, razão pela qual se justifica a aproximação e o diálogo com a Lei Geral de Proteção de Dados.
No que diz respeito aos dados, o Direito Antitruste tem importante papel de, por meio da contenção do abuso de poder econômico, proteger os cidadãos-consumidores na dimensão macro, enquanto as outras searas prosseguem com seus objetivos de tutelá-los na dimensão micro ou em outras situações nas quais as eventuais violações não decorram de abusos de posição dominante.
Diante da importância das discussões propostas, o seu impacto no âmbito acadêmico tem sido intenso, como se observa no crescimento da abordagem conhecida – pejorativa e indevidamente – como “Hipster antitrust” e que, apesar da heterogeneidade de posturas, reúne seguidores que têm em comum a proposta de se afastar do conceito clássico de “bem-estar do consumidor” baseado na eficiência propalado pela Escola de Chicago.
Por mais que parte dos estudiosos defendam que o conceito de bem estar do consumidor não deveria ser abandonado, reconhecem que deveria ser ampliado para abarcar outros aspectos que não apenas o bem-estar do consumidor visto sob a ótica do aumento de preços a curto prazo, dentre os quais se encontrariam a proteção da privacidade e dos dados pessoais[4]. Para outra parte dos estudiosos, entretanto, o momento requer uma superação do critério do bem-estar do consumidor, para a agregação de outros objetivos.
Tim Wu[5] sintetiza as divergências, explicando que, no primeiro grupo, encontram-se aqueles que acham que o problema foi o mau uso ou a excessiva simplificação da economia, dentre os quais se encontram Christopher Leslie, Jonathan Baker e Carl Shapiro. Já no segundo grupo – Escola progressiva ou Neo-Brandeisian – encontram-se aqueles que fazem uma crítica mais fundamental, no sentido de que o Antitruste perdeu a sua própria finalidade.
De toda sorte, o ponto comum a ambos os grupos é a necessidade de se romper com a visão restritiva do critério do bem-estar do consumidor.
Não é sem razão que o European Data Protection Supervisor, em manifestação de 2014, foi claro no sentido de que a análise concorrencial precisa incorporar violação de dados em suas concepções de dano ao consumidor[6].
Por motivos semelhantes, o Bundeskartellamt alemão abriu investigação contra o Facebook para saber se seus termos de uso não violam as leis de proteção de dados[7].
Os recentes relatórios sobre plataformas digitais do Stigler Center e do Subcomitê Antitruste vinculado ao governo norte-americano, amplamente abordados nos artigos anteriores da série, também apontam nesse sentido, mostrando a necessidade de proteção do consumidor sob uma perspectiva mais ampla, por meio do fortalecimento do Direito Antitruste e do reconhecimento de que tal resultado não será atingido por meio dos chamados livres mercados.
Outro ponto fundamental da nova visão de proteção do consumidor é resgatar o compromisso do Antitruste com a inovação, colocando em evidência a importância da chamada “eficiência dinâmica”, especialmente a longo prazo. Afinal, como também explica Tim Wu[8], por mais que a inovação sempre tenha sido apontada como um objetivo legítimo do Antitruste, a metodologia atual do bem estar do consumidor simplesmente não possibilita que tal ponto seja levado a sério nas análises.
Daí a importância de um olhar diferenciado para estratégias exclusionárias, que podem ser uma alternativa à inovação, especialmente quando partem de um monopolista. Segundo Tim Wu[9], pode haver inclusive um tradeoff entre investir em inovação e investir em exclusão, razão pela qual a política antitruste deveria aumentar os custos da exclusão pelas diversas formas.
Fica claro, assim, que a proteção do consumidor é objetivo que deve ser mantido e inclusive expandido, inclusive no que diz respeito à necessidade de contenção de vários dos efeitos nefastos do abuso de poder econômico sobre os cidadãos-consumidores, especialmente diante de restrições às liberdades econômicas destes ou de limitações ao processo competitivo que igualmente os prejudicam.
Desde que tais questões estejam vinculadas ao controle do poder econômico, podem e devem ser endereçadas pelo Direito Antitruste, por meio de premissas e metodologias adequadas, tal como se abordará no próximo e último artigo da presente série.
O episódio 43 do podcast Sem Precedentes analisa a nova rotina do STF, que hoje tem julgado apenas 1% dos processos de forma presencial. Ouça:
[1] The Antitrust Bulletin 1-16 ª The Author(s) 2019 Article reuse guidelines: sagepub.com/journals-permissions DOI: 10.1177/0003603X19875036 journals.sagepub.com/home/abx
[2] Ver, por todos, Mark Glick. The Unsound Theory Behind the Consumer (and Total) Welfare Goal in Antitrust. The Antitrust Bulletin 2018, Vol. 63(4) 455-493 a The Author(s) 2018 Article reuse guidelines: sagepub.com/journals-permissions DOI: 10.1177/0003603X18807802 journals.sagepub.com/home/abx
[3] Sobre o tema, ver Katharine Kemp. Concealed data practices and Competition Law: why privacy matters. http://www.law.unsw.edu.au/research/faculty-publications
[4] Ver, sobre o tema, HOVENKAMP, Herbert. Is antitrust’s consumer welfare principle imperiled? Disponível em: <https://scholarship.law.upenn.edu/faculty_scholarship/1985/>.
[5] WU, Tim. After consumer welfare, now what? The protection of competition standard in practice
[6] Disponível em: <https://edps.europa.eu/sites/edp/files/publication/14-03-26_competitition_law_big_data_en.pdf>.
[7] Disponível em: <https://www.reuters.com/article/us-facebook-germany-dataprotection/germany-takes-on-facebook-in-competition-probe-idUSKCN0W40Y7>.
[8] Tim Wu, Taking Innovation Seriously: Antitrust Enforcement If Innovation Mattered Most, ANTITRUST LAW JOURNAL, VOL. 78, P. 313, 2012 (2012).
[9] Tim Wu, Taking Innovation Seriously: Antitrust Enforcement If Innovation Mattered Most, ANTITRUST LAW JOURNAL, VOL. 78, P. 313, 2012 (2012).