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coluna do fernando aith

Direito das drogas e dos medicamentos

Regulação requer constante avaliação para acompanhar evolução de possíveis usos: nocivos, recreativos ou terapêuticos

Fernando Aith
28/04/2023|05:10
Cannabis
Crédito: Pixabay

O direito à saúde, reconhecido em diversos instrumentos internacionais e na Constituição Federal brasileira, depende do acesso a medicamentos e a terapias medicamentosas para sua plena efetivação. As drogas e medicamentos, embora representem parte importante do cuidado em saúde, ainda possuem uma regulação bastante porosa, campo de zonas cinzentas no que se refere às inter-relações entre os conceitos de drogas (lícitas e ilícitas) e medicamentos. 

Uma regulação eficiente de drogas e medicamentos deve focar dois grandes objetivos de interesse público: o controle de drogas e medicamentos que podem ser nocivos à saúde e; a garantia de acesso universal às drogas e medicamentos que possuem comprovados benefícios terapêuticos.  

A regulação de controle de drogas e medicamentos deve ser capaz de responder a questões essenciais, tais como: que drogas e medicamentos podem ser produzidos e comercializados? Como será organizada a política de controle de qualidade e de boas práticas de fabricação? Qual será a política de fomento e controle de produção? Quem pode produzir, distribuir, vender? Como e em que circunstâncias?  

De outro lado, uma boa regulação de drogas e medicamentos deve garantir o acesso universal a estes produtos sempre que necessários no processo terapêutico dos pacientes, por meio da organização da assistência farmacêutica pública e privada. A política regulatória da assistência farmacêutica deve ser capaz de produzir e organizar um arcabouço jurídico capaz de: fomentar o financiamento público e privado de medicamentos; desenvolver a capacidade industrial nacional para a produção de medicamentos essenciais ao Sistema Único de Saúde (SUS); definir políticas públicas de acesso universal a medicamentos essenciais; promover o uso racional de medicamentos e; estabelecer regras claras e democráticas para os diversos conflitos de interesses que surgem no processo de inovação, registro, produção, prescrição e comercialização de medicamentos. 

A intrincada relação entre drogas (lícitas e ilícitas) e medicamentos, aliada à pouca clareza conceitual que cerca estes termos no campo do direito positivo, têm gerado ao longo dos anos uma série de solavancos que retardam o desenvolvimento de uma boa política de regulação de drogas e medicamentos no Brasil, poluindo o debate público com posições que caminham no sentido oposto ao melhor interesse da sociedade e dos pacientes. Exemplos de solavancos que acabam prejudicando a regulação nacional sobre estes produtos não faltam: a dificuldade da sociedade brasileira e dos reguladores nacionais de aceitar uma legislação mais tolerante ao uso da cannabis para fins medicinais ou até recreativos; a resistência de muitos médicos de utilizar a morfina ou os analgésicos à base de opioides para conter a dor de seus pacientes; a epidemia de uso desviado de fentanil que assola o Canadá e os Estados Unidos e que está chegando ao Brasil; o fracasso retumbante da política de “guerra às drogas” e de criminalização adotada no Brasil, com reflexos catastróficos para a segurança pública; dentre outros. 

A diferença entre drogas (lícitas ou ilícitas) e medicamentos é tênue. São as definições gradativamente liberadas pelo direito internacional que permitem esclarecer o conceito jurídico de drogas. Desde 1950 a Organização Mundial da Saúde (OMS) vem estudando o conceito de drogas e sus relações com a saúde pública.

Em 1952, o Comitê de Especialistas em Drogas com Probabilidade de Induzir Dependência da OMS propôs uma definição de droga que contém os conceitos de hábito, por um lado, e toxicodependência, de outro. Em 1964, o 16º relatório da OMS sobre o assunto afirmava que o elemento comum aplicável ao abuso de drogas em geral é o estado de dependência psicológica ou física, também vinculado à ideia de tolerância (aumento de doses para obter o efeito desejado). 

A partir dos estudos da OMS, a noção legal de drogas foi ampliada e os contornos das classificações do direito internacional foram definidos com base em uma distinção fundamental entre duas categorias de substâncias sujeitas ao controle das Nações Unidas: 1) os entorpecentes, sujeitos à Convenção Única de 1961; 2) as drogas psicotrópicas sujeitas à Convenção de Viena de 1971; 3) e a Convenção de Viena de 1988 para substâncias utilizadas na preparação de medicamentos, narcóticos e psicotrópicos. 

As convenções internacionais utilizam a técnica jurídica de conceito aberto e definem os conceitos de entorpecentes e psicotrópicos sujeitos a controle a partir das listas de substâncias constantes dos seus anexos. Estas listas são atualizadas periodicamente pela Comissão de Narcóticos da ONU, com participação do Comitê de Experts da Farmacodependência da OMS. Nestas listas estão definidos os critérios de controle das diferentes drogas, que podem ir desde a proibição total de produção e consumo até a liberação condicional ou total para fins terapêuticos.

Em síntese, embora os conceitos de “narcóticos” e “psicotrópicos” utilizados nas convenções internacionais sejam conceitos abertos, elas se baseiam em um princípio simples: o único uso lícito de drogas é para fins médicos ou científicos (artigo 4º), sendo admitidas algumas exceções para as drogas listadas no artigo 49 da Convenção Única de 1961, tais como o ópio, a folha de coca e a cannabis (esta podendo ser usada inclusive para fins recreativos, se o Estado-parte assim decidir). 

A Lei 11.343/2006 – que trata do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas e define crimes – conceitua drogas como “as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União, adotando técnica semelhante à das convenções internacionais. Este conceito aberto de “drogas”, ao mesmo tempo em que possibilita uma atualização tempestiva da lista de drogas lícitas e ilícitas e das suas respectivas condições de produção, comércio e uso, também gera uma insegurança jurídica na medida em que torna tal definição mais sujeita às pressões políticas, morais e ideológicas contingenciais. 

No campo da saúde pública, encontramos conceitos de drogas e medicamentos um pouco distintos na Lei 5.991/73, que são conceituados como tais a partir de suas propriedades terapêuticas. Essa lei define droga como sendo asubstância ou matéria-prima que tenha a finalidade medicamentosa ou sanitária; e o medicamento como sendo o “produto farmacêutico, tecnicamente obtido ou elaborado, com finalidade profilática, curativa, paliativa ou para fins de diagnóstico. 

Pode-se dizer que o Brasil, desde a década de 1970, vem avançando lentamente na sua política regulatória de drogas e medicamentos. A aprovação das leis que regularam medicamentos na década de 1970 (Leis 5.991/1973 e 6.360/1976), que criou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em 1999 (Lei 9.782/1999) e a Lei 11.343/2006 representaram avanços importantes, mas ainda insuficientes para fazer frente aos desafios atuais no que se refere à regulação de drogas e medicamentos. Além de uma articulação intersetorial efetiva entre saúde, justiça e segurança pública, uma política eficiente de regulação de drogas e medicamentos deve ser capaz de atingir objetivos-chave, tais como:  

  1. controle adequado de drogas e medicamentos, levando-se em conta os riscos e benefícios de tais produtos à saúde individual e coletiva, em especial no que se refere ao potencial terapêutico cientificamente comprovado destes produtos, ou ainda ao potencial de causar dependência física ou psicológica, toxicomania e efeitos nocivos ao indivíduo ou à sociedade;
  2. seleção atualizada de uma lista de medicamentos e drogas essenciais cujo acesso deve ser garantido pelo Estado;
  3. acessibilidade econômica aos medicamentos;
  4. financiamento adequado;
  5.  sistema de gestão de estoques e aprovisionamento, especialmente em situações de urgência sanitária;
  6. regulação do mercado farmacêutico por autoridade nacional independente e autônoma;
  7. uso racional de medicamentos;
  8. pesquisa e inovação farmacêutica;  
  9. desenvolvimento de recursos humanos e;
  10. sistema de vigilância e avaliação permanente. 

Já passou da hora de a sociedade brasileira organizar o seu direito das drogas e dos medicamentos no país com base nos conhecimentos científicos multissetoriais que temos sobre esses produtos na atualidade, deixando de lado preconceitos e cargas morais, políticas e ideológicas que algumas drogas ou medicamentos possam ter. Os danos à sociedade de uma regulação mal calibrada são visíveis, tanto no campo da saúde pública quanto no campo da segurança pública. Até quando?logo-jota