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coluna do davi tangerino

Abuso de direito e fraude tributária à luz do direito sancionador

O ponto de partida e de chegada deve ser a lei

Davi Tangerino
24/04/2022|05:00
MP 1185
Crédito: Pixabay

Recentemente, a 1ª Turma do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), conforme informou Caio Quintella, em artigo publicado no Valor Econômico no último dia 18, proferiu algumas decisões relevantes no campo do planejamento tributário, com impacto de natureza sancionatória, diretamente, e criminal, via de consequência.

No acórdão 9101-005.876, a controvérsia cinge-se ao seguinte fato: entre as pessoas jurídicas investidora e investida, interpôs-se uma outra pessoa jurídica – “empresa-veículo” – sem, portanto, extinção do investimento, porém um deslocamento do investimento antes direto, e, após a inserção da empresa-veículo, uma participação indireta por meio desta. Por não considerar ter havido confusão patrimonial, o Carf entendeu pela dedutibilidade do ágio. No entender da fiscalização, a inserção da empresa-veículo constituiria “uma simulação, pela sequência de atos apenas formais, sem conteúdo econômico ou propósito negocial, com intuito único de evitar o pagamento dos tributos devidos”, o que justificaria aplicação de penalidade adicional de 75%.

A relatora entendeu que o único papel da referida interposição era garantir a dedutibilidade do ágio, mantendo, portanto, a penalidade. A divergência sustentou que: a estruturação negocial, inclusiva via holdings e empresas-veículo, "faz parte do corolário de livre organização empresarial" e, não havendo vedação legal para a referida estruturação, não há que falar em contaminação a dedutibilidade da despesa. Em essência, entendeu que o emprego das referidas estruturas atende a uma racionalidade em si, a de deter posições societárias, com consequências jurídicas relevantes, ou seja, ao contrário de sociedades propriamente comerciais, é de sua natureza jurídica não terem característica operacional.

O voto divergente – e prevalente – ingressa, ainda, no conceito de simulação, sinteticamente subjugando sua aplicação no âmbito tributário, ao desenho da figura dado pelo Código Civil, que não alista entre suas modalidades aquela de “ausência de causa” ou “ausência de propósito negocial”. De maneira ainda mais simples, descarta-se a fraude, já que nada houve de oculto ou indutor de erro da estruturação tributária da dedutibilidade do ágio.

Discute, ainda, a viabilidade de aplicar-se a figura do abuso de direito, prevista no art. 187 do Código Civil, porém fora das hipóteses qualificadoras da multa, na legislação tributária; o princípio da legalidade tributária parece afastar sem maiores dificuldades a aplicação da figura.

Mais espinhosa a discussão da dissimulação, contida no art. 116, § 1º, do CTN, objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.246, que autorizaria o fisco a “desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos fatos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária”, lei esta, a propósito, que ainda não sobreveio. Quer parecer que a constitucionalidade do referido dispositivo – confirmada, em termos, pelo STF – não muda o fato de que as hipóteses de multa qualificada devem ser taxativas e previstas em lei, não meramente como um instituto jurídico, porém como uma norma sancionatória propriamente dita.

Em síntese, no âmbito federal, conforme o art. 44 da Lei 9.430/96, apenas as figuras contidas nos artigos 71 a 73 da Lei 4.502/64 servem ao apenamento exasperado, à luz da legalidade estrita.

O tema se coloca como verdadeiro tópico de direito sancionador. Para além da legalidade estrita em tema sancionatório, convida para uma reflexão em torno do dolo, figura comum à sonegação e à fraude, tal como definidas em lei:

  • sonegação é "toda ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou parcialmente, o conhecimento por parte da autoridade fazendária" de dois eventos relevantes: "I - da ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal, sua natureza ou circunstâncias materiais"; ou "II - das condições pessoais do contribuinte, suscetíveis de afetar a obrigação tributária principal ou o crédito tributário correspondente"  (art. 71 da Lei 4.502/64);
  • fraude, por sua vez, "é toda ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou parcialmente, a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal, ou a excluir ou modificar as suas características essenciais, de modo a reduzir o montante do imposto devido a evitar ou diferir o seu pagamento" (art. 71 da Lei 4.502/64).

Recorrente, nesse ponto, a distinção entre fraude e evasão fiscal. Rubens Gomes de Souza, em 1964, definia fraude fiscal como "toda ação ou omissão destinada a evitar ou retardar o pagamento de um tributo devido, ou pagar a menor que o devido" ("Compêndio de legislação tributária", p. 109). Como vinculou a definição ao pagamento, propunha que a distinção entre a evasão e a fraude seria temporal: a ocorrência do fato gerador. Ações anteriores ao fato gerador seriam evasão; posteriores, fraude.

O texto legal, todavia, é expresso naquilo que se esconde da administração: a própria ocorrência do fato gerador ou relevantes informações do contribuinte, para fins fiscais (na fraude) ou o conhecimento desse fato, por parte da autoridade (sonegação). Com efeito, a exposição de motivos 25-65, publicada em Diário Oficial em 25 de fevereiro de 1965, afirmava que a criminalização era "arma eficaz para combater as diversas formas de evasão ilícita dos tributos". Como se vê, a evasão lícita estava fora do radar.

Elemento chave, portanto, as hipóteses mais recorrentes de multa qualificada é o dolo que, todavia, é um conceito plurívoco.

O dolo, na esfera penal, integra a categoria da tipicidade subjetiva, geralmente entendido como um binômio: consciência do que se faz, aliada à vontade de realização da conduta. Em síntese: quando A mata B, age com dolo quando sabe realiza o disparo e deseja fazê-lo; eventual circunstância a justificar essa ação é tema da antijuridicidade (como a legítima defesa), assim como é no âmbito da culpabilidade que se analisa o conhecimento da proibição daquela conduta (a exemplo do erro quanto à permissão de eutanásia). Chega-se, assim, a afirmar que o dolo é neutro, descolando a vontade/consciência de realizar uma conduta (âmbito do dolo) da vontade/consciência de realizar uma conduta ilícita (âmbitos da antijuridicidade ou da culpabilidade).

O finalismo, porém, chegou ao Brasil depois da Lei 4.502/64, e demorou ainda mais tempo para se firmar como a corrente prevalente no Brasil, até hoje, diga-se.

Assim, na década de 1960, é bem seguro afirmar, continha a dimensão da reprovabilidade pelo conduzir-se consciente quanto à ilicitude pelo agente. Nelson Hungria, em seu célebre "Comentários ao Código Penal", afirmava que "para que se considere um fato como punível, não basta a existência do vínculo causal objetivo entre a ação (ou omissão) e o resultado, nem o seu enquadramento formal num artigo da lei penal; é necessária a culpabilidade (culpa sensu lato) do agente, isto é, que tenha havido uma vontade a exercer-se livre e conscientemente, para o resultado antijurídico ou apesar da representada probabilidade de que este ocorresse, ou, pelo menos, revele ainda que sem previsão do resultado inescusável inadvertência ou imponderação" (5ª ed., vol. I, tomo II, 1978, p. 112). Como se vê, dolo direto, dolo eventual e culpa são temas de culpabilidade, consoante a teoria causalista preponderante à época.

Nelson Hungria, ainda em 1934, quando buscava teorizar sobre a diferença entre fraude civil e fraude penal, afirmava que a fraude, de modo genérico "é o engano doloso, ou ou malicioso induzimento em erro, tendende à consecução ou facilitação de um fim ilícito" (Fraude Penal. Rio de Janeiro: A. Coêlho Branco Filho, 1934, p. 31).

Tanto a figura da sonegação como da fraude, na Lei 4.502/64, convergem para essa ideia de fraude como engano doloso, ou de induzimento em erro, com vistas a um fim ilícito: subtrair-se ao dever tributário nascido relacionado ao fato gerado evitado, ou a seu posterior conhecimento.

Hungria, nos "Comentários", advoga o seguinte critério a separar a fraude civil da penal: "há quase sempre fraude penal quando, relativamente idôneo o meio iludente, se descobre, na investigação retrospectiva do fato, a ideia preconcebida, a propósito ab initio da frustração do equivalente econômico" (4ª ed., vol. VII, 1980, p. 191).

Os temas do dolo e da multa qualificada se reencontram, portanto, no caso concreto: o emprego de empresa-veículo, sem caráter negocial, permitindo a dedutibilidade do ágio, autoriza multa qualificada?

O ponto de partida e de chegada deve ser a lei: há norma societária expressa autorizando pessoas jurídicas cujo objeto social é detenção de participações societárias, não se lhes exigindo, por definição negocial, nenhum sentido negocial autônomo. Referidas holdings cumprem seu requisito legal expresso pelo mero deter de participações societárias. Um segundo passo seria analisar se as declarações se deram de modo a dissimular ou ocultar a holding na dinâmica das transações. Em outras palavras: se tudo quanto compartilhado com a administração reflete a verdade, digamos, formal, das operações.

O artigo 187 do Código Civil traz como ilícito civil o exercício de um direito com excesso manifesto dos limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Referido ilícito civil, de aplicação duvidosa ao caso concreto, por tudo quanto exposto, só poderia espraiar sentido punitivo autônomo diante da existência de norma sancionatória expressa, seja no tributário, seja no penal. Como sustentado acima, tanto a simulação como a fraude exigem consciência e vontade de inserir elementos inexatos, ou omitir elementos devidos, com o intuito de dificultar a correta apreensão do fato jurídico-tributário pela autoridade, e, assim, diminuir as chances da constituição da relação jurídico-tributário. Tudo quanto límpida e abertamente declarado já retiraria o caráter de fraude.

A discordância subjetiva da administração quanto à conveniência ou mesmo moralidade de holdings deterem participação societária, fazendo investimentos indiretos tais que dão ensejo à dedutibilidade do ágio, não pode autorizar o exasperamento da multa, por ausência de previsão legal. A separação entre direito e moral é tema antigo, consolidado, e caro ao exercício legítimo do poder punitivo estatal.logo-jota