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Energia

Um setor atropelado pelos subsídios

Como consequência da CDE, setor elétrico sofre com custeamento de políticas públicas pelo orçamento da União

Aline Bagesteiro
23/07/2022|06:20
setor
Linha de transmissão de energia que liga a Hidrelétrica de Belo Monte ao Sudeste. Crédito: Beth Santos/Secretaria-Geral da PR

Quem atua no setor elétrico há algum tempo bem sabe que o setor sempre foi um alvo fácil para os chamados “penduricalhos”, incluídos corriqueiramente na conta de energia. Mas nos últimos anos, mesmo para os padrões do setor elétrico, esta praxe atingiu patamares insustentáveis.

Passados 20 anos da criação da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) – a maior fonte de arrecadação do setor –, em 2022, o orçamento da CDE foi fixado em R$ 32 bilhões, atingindo o seu ápice – deste total, R$ 30 bilhões estão sendo pagos pelos consumidores por meio das quotas. Em 2003, logo após a criação da conta, o orçamento foi fixado em R$ 1,591 bilhões. Ainda que atualizássemos esse valor pelo IPCA, chegaríamos a um orçamento de R$ 5 bilhões. Ou seja, seis vezes menor!

Na sua origem, os recursos arrecadados por meio da CDE destinavam-se à cobertura de poucas rubricas, dentre elas o custo de combustível de empreendimentos termelétricos que utilizassem carvão mineral nacional; o custo das instalações de transporte de gás natural a serem implantados nos Estados onde não existia fornecimento de gás natural canalizado; e subsídio ao desenvolvimento de fontes incentivadas (eólicas, térmicas a gás natural, biomassa e pequenas centrais hidrelétricas), conforme redação original do art. 13 da Lei 10.438, de 2002.

Ao longo dos anos, a conta se tornou um poço sem fundo, por meio do qual são concedidas reduções, descontos e vantagens que financiam as mais diversas políticas públicas e que custeiam a prestação de serviços e disponibilização de instalações de energia elétrica a grupos específicos, e que são suportadas, na sua quase totalidade, pelos consumidores de energia. Vale destacar: todos os consumidores, desde os pequenos, que veem suas contas de energia se tornarem impagáveis, aos grandes consumidores que, face aos recorrentes e expressivos aumentos, se veem obrigados a repassar os custos da energia nos seus produtos, penalizando duplamente cada um de nós, pequenos consumidores.

Mesmo custos que já estavam previstos para serem extintos estão sendo prolongados no tempo, majorados e custeados por meio da CDE.

Tomemos por base a conta associada ao consumo de combustíveis fósseis dos Sistemas Isolados (CCC). Em 1993, a Lei 8.631, estendeu a todos os concessionários distribuidores o rateio do custo de consumo de combustíveis para geração de energia elétrica nos sistemas isolados. Em 1998, quando da publicação da Lei 9.648, foi mantida, pelo prazo de quinze anos, a aplicação da sistemática de rateio. Poucos anos depois, com a Lei 10.438, de 2002, o prazo passou a ser de 20 anos. Em 2009, com a publicação da Medida Provisória 466, convertida na Lei 12.111, foram revogadas as disposições das Leis 8.631/1993 e 9.648/1998, inclusive os prazos previstos para a extinção do rateio.

De acordo com a nova Lei, a CCC deixou de estar associada apenas ao reembolso do custo de combustíveis e passou a custear diversas outras despesas associadas à geração de energia nos sistemas isolados, como a contratação de energia e de potência associada; a geração própria para atendimento ao serviço público de distribuição de energia elétrica; encargos do Setor Elétrico e impostos; e investimentos realizados pelas distribuidoras de energia nos Sistemas Isolados.

Embora haja previsão legal para a introdução de mecanismos que induzam à eficiência econômica e energética visando atingir a sustentabilidade econômica da geração de energia elétrica nos Sistemas Isolados, não é o que se observa na prática. A conta da CCC tem aumentado drasticamente. Se em 2019 o custo anual da CCC estava próximo de R$ 6 bilhões, em 2022 ele praticamente dobrou, chegando a quase R$ 12 bilhões.

E este é só um dos itens que compõem a CDE.

A Tarifa Social de Energia Elétrica (TSEE), política pública inserida na CDE, era aplicada a um grupo específico de consumidores, de acordo com cadastro compatibilizado entre o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). No entanto, com o advento da Lei 14.203, de 2021, o cadastro, que já dava indícios de ser falho, passou a contar com a inscrição automática de unidades consumidoras. Esta única alteração fez com que a parcela da TSEE passasse de R$ 3,6 bilhões em 2021 para R$ 5,4 bilhões m 2022, representando um aumento de 56%.

O incentivo ao carvão, custo incluído na CDE desde a sua criação, é outra política que vem onerando desnecessariamente a conta. Originalmente previsto para acabar em 2027 – assim com a própria CDE, em 2022, foi editada a Lei 14.299, criando o Programa de Transição Energética Justa (TEJ), com vistas a “promover uma transição energética justa para a região carbonífera do Estado de Santa Catarina”. O benefício dado pelo governo para a “região carbonífera do Estado de Santa Catarina” acarretou na postergação para 2040 do prazo do subsídio ao carvão, fonte sabidamente poluente de geração de energia.

Em 2013 foi incluído novo custo a ser coberto pela CDE (previsto no inciso VII do artigo 13 da Lei 10.438, de 2002), decorrente de descontos aplicados nas tarifas de uso dos sistemas de distribuição (atualmente também transmissão) e nas tarifas de energia elétrica. Este dispositivo da Lei foi regulamentado pelo Decreto nº 7.891, de 2013, que entendeu por incluir nos tais descontos uma gama de custos que refletem políticas públicas: descontos para fontes incentivadas (eólica, solar, biomassa, dentre outras); para unidades que desenvolvam atividade de irrigação e aquicultura; para unidades consumidoras classificadas como serviço público de água, esgoto, saneamento e irrigação; bem como unidades classificadas como rural e cooperativas de eletrificação rural.

Um aspecto relevante sobre estes descontos, que somam aproximadamente R$ 11 bilhões, são as falhas na fiscalização por parte da agência reguladora, seja pela insuficiente abrangência dos poucos processos de fiscalização em andamento (apenas nove processos), seja pela injustificada morosidade na conclusão dos processos (muitos processos sem movimentação desde 2019). Sabe-se que os próprios relatórios de fiscalização da Aneel apontam para existência de beneficiários não elegíveis ao benefício que recebiam.

No entanto, como consequência destas constatações, na maioria dos casos, as distribuidoras simplesmente excluíram tais consumidores da base de beneficiários. Nos únicos dois processos de fiscalização em que a Aneel recomendou expressamente em Notas Técnicas a necessidade de devolução de valores à CDE, não é possível identificar os passos subsequentes para aprovar as recomendações e operacionalizá-las. Um único processo foi concluído com encaminhamento para devolução de recursos à CDE, expresso no Despacho Aneel nº 3.452, de 2021. No entanto o efeito desta fiscalização foi completamente ignorado na elaboração do orçamento da CDE para 2022.

Veja que não se está, em hipótese alguma, a criticar a existência de políticas públicas que beneficiem parte carente da população ou mesmo que incentivem determinados setores da economia. Tais política, na maioria dos casos, são extremamente necessárias. O que se está questionando é que custos associados a políticas públicas sejam imputados aos consumidores de energia, na forma de subsídios, e não sejam arcados por recursos públicos, na forma de subvenções. E vamos além, subsídios muitas vezes instituídos sem observância aos requisitos formais e materiais exigidos pela Constituição da República e pela legislação vigente.

Vale lembrar que a CDE é um fundo constituído tanto por recursos “públicos” (receitas oriundas do pagamento de multas impostas pela Aneel; pagamentos pelo uso de bem público; e eventual transferência de recursos do orçamento geral da União), como por recursos “privados” (como o encargo tarifário CDE inserido nas Tarifas de Uso dos Sistemas de Distribuição ou de Transmissão pago pelos consumidores e cujos recursos integralizarão as quotas anuais rateadas entre os agentes que comercializam energia com o consumidor final). No entanto, há uma peculiaridade no mecanismo da CDE: os montantes dos recursos privados, arrecadados junto aos consumidores, não estão previamente fixados, eles correspondem ao valor necessário para fazer frente às despesas da conta CDE, descontados os recursos públicos efetivamente disponibilizados em cada ano, conforme prevê o § 2º do artigo 13 da Lei 10.438, de 2002.

Desta forma, a fonte de recursos privados da CDE tem sofrido uma oneração excessiva e desprovida de qualquer limite. O correto seria que as despesas custeadas pela CDE, especialmente aquelas que refletem políticas públicas, sejam cobertas pelo orçamento da União. Ou seja, esta deveria ser a grande parcela das receitas da CDE. No entanto, desde 2015 a União não faz nenhum aporte de recursos na CDE.

Uma solução para esta grave distorção é a aprovação do PL 4012/2021, de autoria do deputado Paulo Ganime. O projeto de lei busca alterar o § 1º do artigo 13 da Lei 10.438, de 2002, estabelecendo que “os recursos da CDE serão provenientes das provisões estabelecidas na Lei Orçamentária Anual (LOA)”, limitando os pagamentos das despesas incluídas na CDE à disponibilidade de recursos aportados pela União. O projeto foi apresentado em novembro do ano passado e aguarda parecer da Comissão de Minas e Energia (CME). Após aprovação nas demais comissões na Câmara, o projeto deverá seguir para o Senado.

Ou seja, o que se propõe é transferir o custo das políticas públicas, hoje suportados pelos consumidores de energia, para o orçamento da União, desonerando as tarifas e permitindo que se busca a tão sonhada modicidade tarifária.logo-jota