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STF

Mais Supremo que Tribunal?

Diferença de atos políticos dos atos administrativos, e como a falta de clareza conceitual do STF afeta democracia

reforma da previdência; desembargador
Fachada do Supremo Tribunal Federal / Crédito: Dorivan Marinho/SCO/STF

Em decisão monocrática da manhã de 29 de abril de 2020, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, impediu a posse do Delegado Alexandre Ramagem Rodrigues como diretor-geral da Polícia Federal.

Ainda no mesmo dia, o presidente da República tornou sem efeito a nomeação de Ramagem, feita em 27 de abril, mas afirmou que a Advocacia Geral da União deveria recorrer da decisão do STF (“quem manda sou eu”).

O Editorial da Folha de São Paulo de 30 de abril, sob o título “Desvio de Finalidade” (pág. A2), elogiou a decisão do STF e concluiu: “em casos assim, cabe responder com firmeza aos que abusam de seu poder”.

Mas linhas antes, o mesmo editorial lembrou que o STF, em decisão também monocrática do ministro Gilmar Mendes em 2016, igualmente via argumento do desvio de finalidade, havia impedido a posse de Lula como ministro do governo Dilma, ocasião em que a Folha de São Paulo criticou a decisão, por “indevida, à luz do princípio da separação de Poderes”.

A opinião da Folha de São Paulo sobre a decisão no caso Ramagem estaria justificada, porque, segundo o Editorial, “deve-se reconhecer que circunstâncias que o país vive hoje tornam mais defensáveis medidas excepcionais como a tomada por Moraes”. O argumento tem a seguinte estrutura: a situação fática excepcional justifica a excepcionalidade da medida judicial.

Não é tão simples assim. Ambas as decisões resolvem os casos lançando mão do conceito de desvio de finalidade, apelidado de “novo xodó do ativismo judicial” à época do caso Lula.[1]

Para além de serem tomadas por um único ministro, as decisões do STF vêm em ambos os casos embaladas em considerações genéricas fundadas em princípios vagos e abertos como impessoalidade e moralidade e interesse público, o que só enfraquece o poder argumentativo do Tribunal e mina sua legitimidade democrática, que se dá justamente pela força do argumento persuasivo e convincente (aliás, na ADPF 663, o ministro Alexandre de Moraes também se valeu da eficiência e da razoabilidade para suspender a vigência do art. 62, §9º da CF88 durante a pandemia). Antes, precisamos identificar o que está em jogo.

As questões principais em jogo são duas, nesta ordem: num Estado de Direito, existe ainda ato estatal imune ao controle judicial? Se não existe, quais os limites deste controle? Ambas as decisões do STF nos casos Ramagem e Lula pressupõem resposta negativa à primeira pergunta e não enfrentam a segunda.

Para esse enfrentamento, alguns conceitos jurídicos deveriam ser mais bem precisados, e, como quase sempre ocorre em Direito, uma resposta jurídica às questões passa pela clareza dos conceitos e das classificações a serem feitas.

O desvio de finalidade, positivado e definido no Brasil em 1965 na Lei de Ação Popular (Lei 4.717, art. 2º, parágrafo único, letra “e”), é instituto jurídico de origem francesa que se destinou desde sempre ao controle dos atos administrativos.

Mas o Direito brasileiro também convive com o conceito de ato político, em princípio imune ao controle judicial, ou pelo menos sujeito a um controle restritíssimo. Atos políticos são regidos pelo Direito constitucional material, e não pelo Direito administrativo.

Se podemos estender aos atos políticos todos os institutos de controle dos atos administrativos, e na mesma extensão, é questão em aberto. O entendimento tradicional é o de que o controle judicial do ato político é cabível, mas em níveis muitíssimo restritos, nos parâmetros rarefeitos que a própria CF estabelece.

Por mais chocante que possa parecer, os princípios do art. 37 da CF88 são aplicáveis apenas e tão somente à Administração Pública, e não podem ser aplicáveis a um caso materialmente constitucional (porque envolve questão política); isso seria elevar uma norma de direito administrativo material ao plano superior do direito constitucional.

O STF passa ao largo da questão dos atos políticos tanto no caso Lula quanto no caso Ramagem. É verdade que seria fácil descartar os atos políticos com mais uma frase genérica: “no Estado de Direito, não há ato estatal imune ao controle judicial”.

Não faltam doutrinadores, em todas as línguas, que repetem esse truísmo (ao mesmo tempo em que esquecemos facilmente que certos vácuos do controle judicial na alta cúpula dos três Poderes são supridos pelo processo político de impedimento).

Mas aquela resposta é uma petição de princípio e remete à definição de Estado de Direito e à extensão do controle judicial nesse conceito mais que fluido. Voltamos ao ponto de partida.

Podemos também questionar se o ato de nomeação do delegado diretor-geral da Polícia Federal (art. 84, XXV, c/c art. 2º-C, Lei 9.266/96) se equipara ao ato de nomeação de ministros de Estado (art. 84, I, CF88).

Não há dúvida de que a nomeação de um ministro é um ato político, como são os atos de manutenção de relações com estados estrangeiros, celebrar tratados, convenções e atos internacionais, decretar o estado de defesa e o estado de sítio (art. 84, VII, VIII, IX, CF88) para ficarmos em exemplos clássicos.[2]

É difícil, se não impossível, a conceituação de ato político, mas não é difícil ver que o cargo de ministro de Estado, que, pela estrutura Constitucional, auxilia o presidente da República no Poder Executivo e na formulação das políticas públicas (art. 76, CF88), e não apenas na Administração Pública (art. 37, CF88), tem mais natureza política do que o diretor-geral da Polícia Federal, a qual é, na estrutura normativa do Estado brasileiro, composta por servidores de carreira “considerada como típica de Estado” (art. 10 da Lei 9.266/96).

É verdade que o diretor-geral é demissível ad nutum pelo mesmo presidente da República que o nomeia, mas parece haver entre o diretor-geral da PF e o Ministro de Estado alguma diferença de natureza política que indique mais liberdade no que toca ao seu ato de nomeação.

Ainda que se aceite o ato de nomeação de ministro de Estado ou mesmo o de diretor-geral da Polícia Federal como sendo atos administrativos, ou mesmo atos políticos sujeitos a controle judicial como se atos administrativos fossem, teríamos ainda que superar questão tormentosa: a da prova pré-constituída do desvio de finalidade, prova necessária na ação de mandado de segurança.

Será que bastam declarações públicas dos presidentes (Dilma ou Bolsonaro) para que se conclua que as nomeações de Lula e Ramagem eram feitas com o fim de beneficiar o interesse privado em detrimento do interesse público?

No caso mais recente, é curioso que ninguém cogitou que o delegado Ramagem pudesse querer, no cargo de chefe da PF, provar a todos justamente que comandaria uma instituição de Estado, não de governo, elevando de vez o status da corporação. No suposto conluio entre o presidente e o nomeado, só ouviram as tresloucadas e irresponsáveis palavras do primeiro, mas ninguém quis ouvir Ramagem.

A CF88 deu a todos os presidentes da República o poder de nomear ministros de Estado e diretor-chefe da PF, e aparentemente não oferece maiores subsídios para que ocorra a intervenção judicial nesse poder, independentemente de qual seja a natureza específica desses cargos.

Seria salutar para a democracia brasileira que o STF fundamentasse mais e melhor suas decisões, em especial as que tocam no coração de escolhas políticas e das altas cúpulas diretivas do Poder Público, e que as decisões da envergadura das aqui comentadas jamais ficassem a cargo de um único ministro. Só assim o STF recuperaria a efetiva legitimidade que pretende exercer no âmbito dos freios e contrapesos.

Por fim, há fortes elementos para se afirmar que, sob o ponto de vista jurídico, o presidente da República já cometeu ano passado e comete mais intensamente nas últimas semanas, durante a pandemia, crimes de responsabilidade muito mais nítidos do que qualquer outro presidente da história deste país.

Estão postos, portanto, os fatos para se esperar uma ação mais forte do titular para o impeachment, antes do que uma ação mais forte (e de legitimidade até aqui discutível) na esfera judicial.

 


[1] Cf. JORDÃO, Eduardo. “Desvio de finalidade” e ativismo judicial: O que está na base da decisão do Supremo sobre a indicação de Lula para a Casa Civil? https://www.jota.info/stf/supra/desvio-de-finalidade-e-ativismo-judicial-20042016

[2] Cf. SEABRA FAGUNDES, Miguel. O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário. 8.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 198.logo-jota