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Direito ambiental

Como os mercados de carbono do Acordo de Paris podem ajudar a salvar o planeta?

A criação de um mercado de carbono global deve promover mais ambição dos países na mitigação de gases de efeito estufa

Imagem: PIxabay

O objetivo do Acordo de Paris da ONU, como claramente estabelecido em seu artigo 2, é de fortalecer a resposta global à ameaça das mudanças climáticas mantendo o aumento da temperatura média do planeta bem abaixo de 2ºC em relação aos níveis pré-industriais, e envidar esforços para limitar esse aumento da temperatura a 1.5ºC.

Há um consenso científico de que o aquecimento de 2ºC já implicaria em resultados catastróficos, sendo necessários todos os esforços possíveis para conter o aquecimento a 1.5°C. Dados mais recentes divulgados pelo IPCC1 afirmam que para manter o aquecimento abaixo de 1.5ºC, as emissões globais de gases de efeito estufa deveriam ser reduzidas em 45% até 2030.

Para alcançar os objetivos propostos, o Acordo de Paris prevê diversas disposições e instrumentos que buscam facilitar a redução de emissões por parte de todos os países signatários, sem deixar de promover o desenvolvimento sustentável, especialmente nos países menos desenvolvidos. Neste sentido, os mecanismos de mercado previstos no artigo 6 do Acordo de Paris podem desempenhar papel fundamental para acelerar a ambição na descarbonização das economias e evitar o aquecimento global perigoso previsto pelo IPCC.

Uma das características mais importantes do Acordo de Paris e que permitiu a sua “universalização” (o acordo atingiu o número mínimo de países membros para entrar em vigor em tempo recorde no ano de 2016 e hoje já há 185 países membros) foi a de que cada país apresentaria a sua Contribuição Nacionalmente Determinada (conhecida como “NDC”), na qual proporia metas e/ou medidas a serem adotadas para a redução de emissões, contribuindo para evitar o aumento global de temperatura estabelecido no artigo 2. Nesse sentido, ainda que a meta seja global, cada país pode determinar dentro da sua realidade o que acredita ser uma contribuição ambiciosa e ao mesmo tempo viável. No Protocolo de Quioto, os países em desenvolvimento não possuíam metas de reduções de emissões; apenas tinham metas os países desenvolvidos, identificados no chamado Anexo I da Convenção-Quadro da ONU sobre Mudança do Clima. Já em Paris, foi possível acordar obrigações “bottom-up” para todos os países, independentemente de serem considerados países desenvolvidos ou não, sendo que assim ninguém pode afirmar que lhes foram atribuídas metas não factíveis.

Mas e se essas NDCs autodeterminadas não forem suficientes para evitar o aumento de temperatura de 1.5ºC ou bem abaixo dos 2ºC?

O artigo 6 do Acordo de Paris prevê dois mecanismos de mercado para promover a cooperação entre os países na execução de medidas de redução de emissões de gases de efeito estufa.

O primeiro mecanismo está previsto no artigo 6.2, o qual dispõe sobre a possibilidade de negociação entre países de créditos oriundos de “resultados de mitigação”, chamados Internationally Transferable Mitigation Outcomes (ITMOS). Isto significa dizer que os países poderão transferir e comercializar entre si os resultados de redução de emissões de gases de efeito estufa que atingirem a partir de seus esforços de mitigação domésticos para cumprir sua NDC.

O segundo mecanismo, por sua vez, previsto no artigo 6.4 e chamado de Mecanismo de Desenvolvimento Sustentável (MDS), permite a geração de créditos decorrentes da redução de emissões promovida por um projeto especificamente em relação a uma linha de base de projeção de emissões, que pode ser realizado inclusive pela iniciativa privada com a anuência do governo local.

A questão é: será que esses mercados servem apenas para que os países possam cumprir aquelas Contribuições Nacionalmente Determinadas que eles já disseram que promoveriam de qualquer forma? Ou será que eles devem ser desenhados para permitir que os países realizem mais reduções de emissões do que fariam em suas metas nacionais, uma vez que um mercado global de carbono permitirá que essas reduções aconteçam de uma forma eficiente e barata? Vejamos.

No âmbito do Acordo de Paris, o artigo 6.1 estabelece que os países podem cooperar entre si para promover “maior ambição” nas medidas de mitigação e adaptação. Logo, depreende-se que a intenção dos mecanismos de cooperação dispostos no artigo 6 é de gerar esforços adicionais de mitigação, tendo em vista o objetivo último do Acordo de Paris de evitar o aquecimento global perigoso.

Ocorre que ambos os mecanismos previstos no artigo 6 parecem ter sido inspirados em instrumentos do Protocolo de Quioto, que, como visto, existiram em um contexto diferente. Isso causa dificuldades de interpretação e transposição para o contexto do Acordo de Paris, pois as premissas dos dois tratados são distintas.

Por exemplo, o artigo 6.2 do Acordo de Paris se assemelha ao mercado de comércio de emissões do artigo 17 do Protocolo de Quioto, que era um mercado de “cap and trade” de emissões entre países desenvolvidos. No Protocolo, foi fixado um limite (cap) de emissões para cada um dos países desenvolvidos, que poderiam compensar entre si as emissões, com o objetivo de cumprir suas respectivas cotas.

Além disso, o Protocolo de Quioto propôs o chamado Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), por meio do qual países desenvolvidos poderiam investir em projetos que reduzissem as emissões projetadas em países em desenvolvimento definidas em determinada linha de base, gerando créditos que poderiam ser utilizados pelo país investidor para cumprimento de suas metas de redução dentro do Protocolo.

Esses mecanismos, contudo, permitiram somente o offset de emissões, ou seja, a realocação das emissões de um local para outro. A ideia por trás do offset é minimizar os custos associados à redução de emissões de carbono em um local ao permitir que essas reduções de emissões ocorram em outros locais em que os custos são mais baixos.

Apesar dessa vantagem econômica, o offset permite somente a transferência do local onde a redução ocorreria, sem alterar o resultado final de emissões na atmosfera. Nesse sentido, a grande crítica a esse tipo de mecanismo é de que, ainda que economicamente oportuno, ele não promove ganhos ambientais adicionais, uma vez que apenas permite “gerenciar” um cap de “poluição” tolerada, e não promove efetivas reduções do passivo.

O pressuposto desse mecanismo, porém, era de que os países em desenvolvimento não possuíam obrigação de redução de emissões no Protocolo de Quioto. Assim, qualquer medida desenvolvida nesses países era vista como adicional às metas do Protocolo, trazendo assim supostos ganhos “adicionais” para o meio ambiente. No contexto do Acordo de Paris, todavia, essa realidade não subsiste mais: todos os países possuem metas (NDCs) e, portanto, espera-se que todos entrem em uma trajetória de baixo carbono. Neste sentido, o artigo 6.4, muito semelhante ao MDL, também permitiria somente a transferência do local onde as emissões serão reduzidas, sem ganho adicional para a atmosfera.

Tendo em vista o objetivo maior do Acordo de Paris e a urgência de reduções significativas para alcançá-lo, o grupo da Aliança dos Pequenos Estados Insulares (AOSIS), por exemplo, defende que as ações tomadas no âmbito do artigo 6 devem ser suplementares aos esforços de mitigação domésticos, não podendo substituí-los.

Dentro de uma lógica semelhante, o Brasil defende que as atividades elegíveis para o MDS do artigo 6.4 sejam somente aquelas adicionais à NDC do país que receberá o projeto. Nesse sentido, o Brasil entende que essa adicionalidade seria suficiente para garantir a mitigação global. Essa adicionalidade, entretanto, é criticada em decorrência das dificuldades de se demonstrar a elegibilidade das atividades e, assim, de se garantir a integridade ambiental desse processo.

Outros países, por sua vez, defendem que as atividades elegíveis devem ser estabelecidas para além de uma linha de base ainda mais conservadora que a NDC. As linhas de base são os cálculos realizados para cada projeto ocorrido no âmbito do artigo 6.4 a partir dos quais são gerados os créditos. Quanto mais conservadora uma linha de base, menos créditos serão gerados para a mesma redução de emissões, o que em tese asseguraria a mitigação global. Esse argumento também é criticado2, contudo, já que essas reduções permaneceriam no inventário do país que recebe o projeto, podendo ser utilizadas para demonstrar cumprimento de sua NDC, o que acabaria por não contribuir para a redução de emissões globais.

Como alternativa, a proposta elaborada pelo grupo AOSIS estabelece uma porcentagem fixa (ainda não definida) de reduções de emissões que seria obrigatoriamente cancelada no momento da emissão, de forma que nem o país que compra os créditos nem aquele onde a redução de emissões se verifica podem usá-las para fins de cumprimento de suas NDCs. Nesse sentido, ocorrendo uma transferência de créditos, essa quantidade de redução de emissões cancelada funcionaria como uma “taxa” a ser “paga” para benefício da atmosfera, contribuindo para a mitigação global almejada pelo artigo 2 do Acordo de Paris. Apesar de essa proposta, que se popularizou chamar “OMGE” (Overall Mitigation in Global Emissions), decorrer de texto expresso no artigo 6.4, ela se aplica tanto aos mecanismos do art. 6.2 quanto do art. 6.4.

A necessidade de mais ambição é reforçada pelos dados recentes da ciência. Lembre-se que a ciência é pilar do regime internacional de mudanças climáticas da ONU desde a formulação do princípio da precaução no artigo 3 da Convenção-Quadro da ONU sobre Mudança do Clima. O relatório da UNEP sobre a “lacuna de emissões”3 de 2017, por exemplo, concluiu que, mesmo que todos os países cumpram suas metas estabelecidas nas NDCs apresentadas, o aquecimento global em 2100 será de 3.2°C. Logo, se os mercados de carbono do artigo 6 forem utilizados somente para atingir esses objetivos consubstanciados nas NDCs, serão de pouco impacto na mitigação global.

Na 25a Conferência das Partes da Convenção do Clima da ONU (COP 25) a ser realizada em Santiago no final desse ano, esses pontos serão discutidos e – espera-se – resolvidos. Entretanto, é possível que nessa ocasião ainda não haja decisão definitiva acerca das regras aplicáveis ao artigo 6, pois há ainda muitos desafios para acomodar diferentes interesses e visões dos países sobre o papel desses mercados, havendo também receio de que um mecanismo de mercado mal desenhado cause mais prejuízos do que benefícios para a atmosfera – na medida em que poderia haver um aumento de emissões se as regras não forem bem estruturadas.

Seja qual for a específica solução encontrada pelos países, é importante que, não obstante os interesses econômicos e geopolíticos envolvidos, os negociadores tomem consciência do papel legalmente atribuído ao artigo 6 do Acordo de Paris: permitir aumentar a ambição na redução de emissões de gases de efeito estufa, ensejando efetivos resultados de mitigação global. Em Santiago, espera-se que os países signatários do Acordo de Paris empenhem-se em desenhar esses mercados de acordo com uma interpretação sistêmica do Acordo de Paris e do regime internacional de mudanças climáticas da UNFCCC, seus objetivos, princípios e disposições. Isto significa construir um mercado que, ao contribuir para a redução das emissões de forma global e ambiciosa, seja um instrumento efetivo para evitar o aquecimento global.

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1 IPCC Special Report 2018: https://www.ipcc.ch/sr15/.