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Gilmar Mendes

A Constituição interpretada sem regras

O que “vale”: a letra da Constituição ou a solução “justa” mediante interpretação livre?

Dimitri Dimoulis
03/10/2016|08:36
Atualizado em 22/11/2016 às 12:48
Foto:Carlos Humberto/SCO/STF

O processo de impeachment da presidenta Dilma gerou muitos embates políticos e jurídicos, como era de se esperar. Uma das maiores controvérsias jurídicas se deu no momento do desfecho. A decisão do min. Lewandowski pelo fatiamento da votação sobre as sanções permitiu que a presidenta condenada mantivesse seus direitos políticos. O parágrafo único do art. 52 da Constituição prevê que compete ao Senado julgar o presidente da República por crime de responsabilidade, “limitando-se a condenação (...) à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública”.

Se a perda do cargo deve ser imposta com inabilitação política, como justificar o fato de ela ter sido decidida sem inabilitação? Lewandowski sofreu duríssimas críticas, relacionadas a uma questão existencial para os profissionais do direito. Para além das cláusulas vagas, o que acontece quando a constituição regula algo de forma expressa e densa?

Ao permitir a votação das sanções em separado, o Lewandowski parece ter alterado um mandamento constitucional expresso. Poderíamos considerar que inseriu na Constituição a palavra “eventual” (“perda do cargo com eventual inabilitação”). Ou mesmo que criou um precedente mais radical, substituindo o “com” pelo “e/ou” (“perda do cargo e/ou inabilitação”). Em todo caso, afastou-se deliberadamente do texto. Se peço suco de abacaxi com hortelã, posso esperar receber um simples suco de abacaxi? Ou apenas folhas de hortelã?

Não passa na prova dos 9 do jardim de infância do direito constitucional”, disse o min. Gilmar Mendes sobre essa interpretação, entendendo que o aplicador deve respeitar a formulação literal da Constituição.

Esse textualismo e sua conotação matemática contrariam, porém, o que escreveu o mesmo ministro na Reclamação 4.374: “os juízes, quando se deparam com uma situação de incompatibilidade entre o que prescreve a lei e o que se lhes apresenta como a solução mais justa para o caso, não tergiversam na procura das melhores técnicas hermenêuticas para reconstruir os sentidos possíveis do texto legal e viabilizar a adoção da justa solução”.

O que “vale”, afinal? A letra da Constituição ou a solução “justa” mediante interpretação livre? O debate é secular e não se pode esperar resposta definitiva. Mas, em nível descritivo, já temos uma resposta institucional do Supremo. Os ministros não consideram a letra da Constituição como relevante obstáculo quando a solução que essa letra dita lhes parece disfuncional.

No MS 27.931, interpretaram o art. 62 § 6 da Constituição que dispõe: “Se a medida provisória não for apreciada em até 45 dias contados de sua publicação, entrará em regime de urgência (...), ficando sobrestadas, até que se ultime a votação, todas as demais deliberações legislativas da Casa em que estiver tramitando”.

O que significa “todas as demais deliberações”? Em 2009, o min. Celso de Mello adotou parecer do então presidente da Câmara Michel Temer que recomendava não seguir a letra da Constituição. Com o argumento político-consequencialista de não tornar o Congresso Nacional refém da agenda imposta pelas medidas provisórias do Executivo, Temer argumentava que devem ser suspensas apenas as deliberações sobre leis ordinárias que dizem respeito a temas passíveis de regulamentação por medida provisória. Sete anos depois, o Supremo mantém a liminar com a qual “todas as demais deliberações” virou “algumas deliberações”, modificando-se o equilíbrio entre poderes da República.

Outra decisão contrária à letra constitucional é a ADPF 132 (união homoafetiva). O art. 226 § 3 da Constituição reconhece a união estável como relação entre “o homem e a mulher”. Foi opção consciente dos constituintes que adotaram emenda de um bispo evangélico, com o objetivo de excluir as uniões homossexuais, como lembrou o Min. Lewandowski no julgamento. O Supremo foi unânime em admitir a união estável de pessoas do mesmo sexo e afirmou, na ementa, sua competência “para manter, interpretativamente, o Texto Magno na posse do seu fundamental atributo da coerência, o que passa pela eliminação de preconceito quanto à orientação sexual das pessoas”. Dito de maneira mais direta, o Supremo teria a competência de mudar a letra da Constituição que lhe parece preconceituosa.

São apenas dois entre os muitos casos nos quais o Supremo ignorou o sentido evidente do texto. É comum alegar “mutações” e “evoluções” para mudar o conteúdo normativo da Constituição. Mesmo quando os ministros invocam regras e “cânones” de interpretação, o fazem conforme considerações de conveniência, sem justificar as suas decisões e ignorando o imperativo da previsibilidade.

No mundo ideal da segurança jurídica, o Supremo deveria manter coerência em relação aos métodos de intepretação e determinar o valor da “letra” da Constituição. Enquanto não se tomam iniciativas institucionais para tentar estabilizar as interpretações, a crítica que certa decisão não respeitou as formulações da Carta Magna serve apenas para expressar discordâncias com o resultado. Não interessa como se decide, mas o que foi decidido. Acertando ou errando, o Supremo e seus críticos apropriam-se de maneira seletiva e imprevisível da letra da Constituição.logo-jota