Rogério Campos
Secretário-executivo da Secretaria da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo. Procurador da Fazenda Nacional, foi assessor especial da Secretaria Executiva no Ministério da Economia
Crises econômicas e fiscais não são fenômeno recente na história do país. Como não poderia deixar de ser, esses fatores, somados ao complexo sistema tributário, desacertos em políticas macroeconômicas, aventuras fiscais e a adoção de remédios amargos, como o período dos “juros mais altos do planeta”, fomentaram o cenário ideal para a criação dos Programas de Recuperação Fiscal – Refis.
Essa sorte de parcelamentos extraordinários, enquanto programas de recuperação fiscal, filhote desse histórico, surge com o objetivo de impulsionar a arrecadação fiscal e permitir a superação de reflexos de crises econômicas na saúde financeiro-fiscal das empresas, encontrando no Refis (Programa de Recuperação Fiscal) criado pela Lei nº 9.964, de 10 de abril de 2000, sua gênese contemporânea.
A partir dele, e em alguma medida em razão de sucessivas crises desde então, lançaram-se mão de dezenas de programas, com nomes próprios e legislação específica, ou meramente reaberturas com nuances setoriais, batizados de Refis, algo comum quando um “produto” ou “marca” representam toda uma categoria de similares.
Aqui incluem-se, por exemplo, o Parcelamento Especial da Lei nº 10.684, de 2003 (PAES), Parcelamento Extraordinário da MP nº 303, de 2006 (PAEX), o Programa de Parcelamento instituído pela MP nº 449, de 2008 e o Programa Especial da Lei nº 11.941, de 2009 (fruto do PLV da MP 449), reaberto e alterado sucessivas vezes (em 2013, 2014), o Programa de Regularização Tributária (PRR) instituído pela MP nº 793, 2017 até a edição da Lei nº 13.496, de 2017, com o Programa de Regularização Tributária (PERT).
A toda evidência essa prática reiterada, consubstanciada na sucessão periódica de parcelamentos benéficos, repise-se, em cenário de complexidade e elevada carga tributária, agregada por juros estratosféricos e multas severas, trouxe efeitos deletérios à arrecadação, criando incentivos perversos, estimulando a não conformidade fiscal.
Em economia comportamental não seria difícil reconhecer que em dado cenário, agentes econômicos racionais se comportariam de modo a, antecipando cenários futuro, utilizar a contração de passivos tributários como mecanismo inerente ao seu processo produtivo, prejudicando a concorrência leal e livre iniciativa.
A acumulação de passivo passaria a servir de mecanismo de financiamento, já que os juros estratosféricos oferecidos ao mercado não baixaram, diferentemente da taxa SELIC (em patamares quase negativo no momento atual), de determinado segmento de contribuintes, com plena capacidade de pagamento, inclusive dela se utilizando para obter ganhos competitivos e prejudicar a concorrência, em especial de novos, pequenos e micro empreendedores.
Por coerência, não se pode olvidar que mesmo sendo criação daquele contexto de externalidades negativas e incentivos perversos, o Refis foi concebido como instrumento com potencial de contribuir, de fato, com a superação de momentos de crise e a recuperação das empresas, ou seja, trazendo solução para empresas sadias arrebatadas por uma crise pontual e externa, e até mesmo empreendimentos mal sucedidos.
Diga-se, inclusive, que empreender não é tarefa fácil, sendo a regra o insucesso que comporá a curva de aprendizado (e realocação do capital) para que outro empreendimento seja tentado e, ao final, tenha sucesso.
Contudo, por ser o Refis linear, horizontal e despersonalizado (ou “impessoal”), via de regra é insuficiente para os casos mais agudos, além beneficiar empresas sadias e que, não raro, pertencem a segmentos beneficiados pela crise que arrebatou demais setores – sim, isso ocorre – ou, pior, aqueles devedores contumazes, sonegadores, que passaram a utilizar da expectativa de concessões de descontos e prazos como elemento de formação de seu preço ou como elemento de sua cadeia produtiva, obtendo com isso ganhos econômicos, praticando concorrência e atentando contra os anseios do livre mercado.
Pretendendo dentre outros objetivos superar esse estado de coisas, com evidentes externalidades negativas e incentivos perversos, que resultou na alcunha de “viciados em Refis”, a administração tributária federal lançou mão de política pública adequadamente modelada, com incentivos bem alocados, externalidades positivas, inerentes ao ambiente de ganha-ganha dos métodos adequados de resolução de conflitos, socorrendo-se de um conjunto de medidas transversais, aptas a apresentar múltiplas soluções por meio da Lei no. 13.988, de 14 de abril de 2020, fruto da conversão da denominada MP do Contribuinte Legal (MP 899, de 2019).
Desapegando-se das vicissitudes do modelo anterior, por meio da concessão descontos exclusivamente àqueles contribuintes que possuem capacidade de pagamento comprometida, a transação expõe, às vísceras, em fratura exposta, as mazelas do Refis.
Diversamente das renúncias de receita caracterizadas pelos parcelamentos excepcionais, sem qualquer avaliação de recuperabilidade, a transação tributária, no âmbito federal, não constitui renúncia, porquanto se amolda ao instituto que congrega concessões mútuas e restringe descontos aos créditos já baixados do balanço geral da União e cuja recuperabilidade foi comprometida pela capacidade de pagamento do devedor.
Ou seja, os descontos dar-se-ão em ativos já baixados (ativo contingente), em relação aos quais, fosse uma empresa, haveria a assunção do prejuízo com a tomada de benefícios fiscais (relacionados à renda e lucro).
Importante destacar que esse entendimento, de origem contábil, foi objeto de interpretação autêntica do legislador, verbalizado no art. 3º da Lei Complementar nº 174, de 05 de agosto de 2020: a transação resolutiva de litígio relativo à cobrança de créditos da Fazenda Pública não caracteriza renúncia de receita para fins do disposto no art. 14 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000.
Para delimitar o escopo desse ensaio, reconhece-se que, apenas desse aspecto, escancaram-se duas externalidades negativas do Refis, amplificadas pela construção da transação tributária, que denotam a inadequação da utilização do primeiro em detrimento do segundo.
O modelo horizontal de Refis ao conceder benefícios uniformes a todo e qualquer contribuinte, o que viola a isonomia sob a perspectiva de não atribuir tratamento desigual aos desiguais, beneficia contribuintes que deles não necessitam, seja porque não afetados pela crise ou dela beneficiados, bem como atende aos sonegadores e devedores contumazes, os primeiros incluídos na transação, mas vedada a concessão de desconto, e os últimos efetivamente excluídos dessa seara.
Exatamente por esse motivo, diferentemente da transação, materializa renúncia de receitas públicas relevantes, em cenário fiscal delicado, onde se consumará o pior resultado primário da história.
Agrava-se a renúncia porquanto, atribuindo benefícios fiscais aos sonegadores, devedores contumazes e empresas com ampla capacidade de pagamento, exigirão de toda a sociedade, inclusive daquelas duramente afetados pela crise econômica e sanitária, arcar comas as medidas compensatórias exigidas pela LRF: “elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição” – art. 14, II, LC 101, 2000. A política “redistributiva” nesse caso realoca capital daquele em situação de necessidade em benefício daqueles que teriam capacidade de contribuir mais fortemente com o esforço fiscal considerando sua capacidade contributiva.
Bom que se diga que sequer o artifício, já rechaçado pelo Tribunal de Contas da União (AC 2198/2020), consubstanciado “demonstrar” que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, na forma do art. 12 da LRF é factível: seja pelo fato de que a LOA já foi encaminhada, seja porque qualquer renúncia afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias, das combalidas contas públicas.
Diga-se, inclusive que, a partir do acórdão mencionado, oriundo da Corte de Contas, impera a insegurança jurídica no trato da solução de vincular vigência de Refis à estimativa de renúncia em LOA: o TCU reputou ineficaz a norma.
Nem mesmo a vã ilusão de socorro ao “orçamento de guerra” permite aventuras no trato das medidas compensatórias, considerando que os efeitos da medida vão para além do Decreto-Legislativo nº 6, de 2020.
De outro giro, nenhuma modalidade de Refis, inclusive pelo esforço da medida compensatória, permite (ou permitiu) diversamente da transação tributária federal com edital aberto para adesão desconto de 100% de todos os acréscimos (algo que em nenhum Refis ocorria, mesmo para pagamento a vista), ou mesmo desconto sobre o principal, o que se opera, por exemplo, na transação do contencioso tributário de pequeno valor, para além dos encargos e acréscimos.
Em suma, a transação possui melhores benefícios e, para os pequenos empreendedores, aqueles mais severamente abatidos pela crise, os descontos avançam sobre o crédito principal e sequer exigem demonstração de capacidade de pagamento – os descontos decorrem da economia de recursos com os custos da cobrança.
Em suma, a partir de análise criteriosa de dados repassados pelos próprios contribuintes e de uso geral da administração tributária, a transação contempla incentivos adequados, em especial para aqueles mais severamente abatidos pela crise, assegurando sua volta segura ao sistema produtivo e ao conjunto de contribuintes ativos ao conceder descontos compatíveis com a capacidade contributiva, eliminando assim o risco moral. Como qualquer política pública focalizada, os benefícios são mais bem alocados, atribuídos em maior proporção a quem deles precisa em detrimento daqueles que não necessitam.
Exemplo dessa adequada focalização, cite-se recém firmado acordo de transação no âmbito da recuperação judicial do Grupo Oi, pela Procuradoria Geral Federal da AGU, da ordem de R$ 14 bilhões.
O acordo permitiu, com incentivos adequados, solucionar litígio que se arrastava há anos, viabilizando importante ingresso de recursos nos cofres públicos e viabilizando a adequada alocação de capital no setor de telefonia, algo que não seria obtido com o Refis.
De maneira figurativa, o Refis contemplaria um auxílio emergencial para milionários, impedidos de viajar ao exterior seja pela crise, seja para mitigar os efeitos do câmbio e a transação um modelo de distribuição de renda emergencial, em maior valor para o grupo de beneficiados, exclusivamente àqueles vulneráveis severamente abatidos pela crise, que pouco ou nada receberiam no modelo de “bolsa-variação cambial”. É o dilema da escolha entre o ruim e o ótimo.
Inegável, portanto, seja pelo novo panorama no qual inserida a administração tributária federal com o implemento da transação, seja porquanto as contas públicas não comportam renúncia de receita, a criação de um Refis no contexto atual, tal como proposto em diversos projetos, na câmara e senado (citem-se os PL 4728 e o PL 2735, ambos de 2020), beneficia única e exclusivamente contribuintes que dele não necessitam, seja porque não afetados pela crise ou dela beneficiados, bem como atende aos sonegadores e devedores contumazes, excluídos da transação, às custas de todos os demais contribuintes, inclusive aqueles em dificuldades, não se coadunando com os anseios da sociedade, os princípios republicados, o Estado de direito e o ideal de justiça fiscal.
O episódio 43 do podcast Sem Precedentes analisa a nova rotina do STF, que hoje tem julgado apenas 1% dos processos de forma presencial. Ouça: