Para este artigo analisamos 18 acórdãos publicados no período de 19.09.2019 a 30.09.2019 e proferidos pela Câmara Superior do TIT-SP, dos quais metade o Tribunal deixou de conhecer os recursos especiais interpostos sob o fundamento de inexistência de decisões paradigmas e impossibilidade de reanálise de provas. Abaixo um resumo do que foi analisado pela Câmara Superior no período:
Contudo, e inobstante sequer conhecido o recurso especial, a decisão proferida no AIIM 4049334-9 nos apresenta questão sensível e é sobre ela que passamos a tratar adiante de forma mais detalhada.
A autuação selecionada para a análise neste artigo versa sobre a glosa de créditos de ICMS registrados quando da entrada de mercadorias recebidas de “fornecedor inidôneo” (cujos documentos por ele emitidos e que acobertaram as vendas foram declarados inidôneos).
Trata-se, sem questionamentos, de matéria cujo entendimento já há muito se encontra consolidado tanto no âmbito judicial, face ao julgamento do Recurso Especial nº 1.148.444/MG, analisado sob a sistemática dos recursos repetitivos, como na seara de competência deste próprio Tribunal de Impostos e Taxas, em consonância à sessão monotemática realizada sobre o tema ainda no ano de 2012.
Em ambas as oportunidades mencionadas, restou firmado o entendimento no sentido de, uma vez demonstrada a boa-fé do adquirente da mercadoria – comprovando-se documentalmente a materialidade da operação – os créditos devidamente destacados em nota fiscal e registrados na entrada deveriam ser mantidos na escrituração fiscal do contribuinte, afastando-se qualquer pretensão à responsabilização objetiva deste em face de possível ilicitude incorrida pelo fornecedor. Tal discussão foi ampla e cuidadosamente tratada na primeira fase deste Projeto Observatório[1] e o presente artigo não se presta para rediscuti-la.
Observamos, porém, que na decisão ora selecionada, inobstante o entendimento já firmado pelas cortes judicial e administrativa, e sob o fundamento da valoração das provas em garantia ao livre convencimento do julgador, a responsabilização objetiva do contribuinte adquirente voltou a ser aplicada ao arrepio do entendimento anterior.
De fato, a decisão proferida no AIIM 4049334-9 nos apresenta a especial peculiaridade de terem sido documentalmente comprovadas as operações mercantis questionadas. Não se debate ali a ausência de uma ou outra prova específica entendida por supostamente omitida e necessária para fins de comprovação da efetiva operação comercial. Ao contrário: tanto no acórdão recorrido como até mesmo a própria autoridade fiscal autuante atestam em suas manifestações inexistirem dúvidas sobre a materialidade das operações, chegando inclusive, este último, a confirmar a boa-fé do contribuinte autuado: “Reafirmo que a operação comercial foi efetivamente realizada e que nesse sentido a empresa não incorreu em má-fé (...)”
A única justificativa para a glosa dos créditos recaiu, então, para o fato de que a empresa fornecedora das mercadorias – que inquestionavelmente foram pagas e ingressaram no estabelecimento do contribuinte autuado – teve sua inscrição estadual declarada nula desde o momento de sua constituição, fato que motivou o entendimento de que não teria sido acostada aos autos a suposta comprovação da veracidade da compra e venda sob a justificativa de “se tratar de estabelecimento que simulou sua existência”.
De início, o respeitável Juiz Relator acolhia a nulidade suscitada pelo autuado manifestando-se no sentido de ser, “no mínimo prudente”, que todos os argumentos apresentados em defesa fossem devidamente enfrentados, uma vez reconhecida a boa-fé pela própria autoridade autuante. Assim registrou que “ao menos em princípio, parecia indicar a existência de comprovação da realização das operações”.
Contudo, o Voto-Vista, aposto em confronto à posição do Juiz Relator, se pautou em sustentar que as provas trazidas aos autos já haviam sido enfrentadas pela decisão a quo, decisão esta que, ao analisar “de forma objetiva” a boa-fé do contribuinte, entendeu não ser possível atestar a regularidade operacional da empresa fornecedora “de fachada”. Assim, e sob o manto da suposta “análise objetiva da boa-fé do contribuinte”, corroborou o segundo Juiz o entendimento da decisão recorrida, confirmando a responsabilidade do contribuinte nos moldes do art. 136 do CTN.
Neste ponto, o Voto-Vista destaca o trecho da decisão recorrida que neste sentido argumenta: “Pode ter havido a regularidade da transação comercial, presunção da boa-fé do adquirente, porém se as mercadorias foram adquiridas de empresa espúria e de fachada, como admitir que o imposto estava embutido no preço e lhe desse o direito de creditamento, creditar-se de um imposto que não existiu?”.
Por voto de desempate do Presidente, a nulidade foi então rejeitada.
Prosseguindo com a análise do mérito, entendeu por bem o Juiz Relator encerrar a discussão concluindo que, ainda que com ressalvas à decisão recorrida, por tratar o recurso especial de matéria que devolvia à Câmara Superior a suposta rediscussão de provas, este não poderia ser conhecido.
Por certo, e conforme brevemente demonstrado, a questão afeta à comprovação da boa-fé do contribuinte sequer era objeto dos autos, sendo certo que a decisão pelo não conhecimento do recurso claramente reabriu a possibilidade de se imputar novamente a responsabilidade objetiva enunciada pelo art. 136 do CTN ao adquirente, legitimando novamente discussão já pacificada. Destacamos na decisão por ora analisada, assim, o retrocesso e a contradição com o entendimento jurisprudencial firmado nos últimos aproximados 10 anos.
De fato, o entendimento do STF quando do já mencionado REsp 1.148.444/MG, expressamente afastou a possibilidade de aplicação da responsabilidade objetiva do adquirente – nos moldes do art. 136 do CTN – quando demonstrada a boa-fé do adquirente das mercadorias lastreadas por notas fiscais posteriormente declaradas inidôneas. Logo, uma vez comprovada a operação comercial ter sido efetivamente realizada há que se manter o direito ao crédito do imposto destacados em tais notas.
Nesse sentido, e conforme já mencionado, ao passo em que a sólida jurisprudência firmada sobre este tema se pauta em analisar exclusivamente a boa-fé do adquirente, nos parece frontalmente contraditória a decisão que mantém a pretensão de glosa dos créditos sob o fundamento de que o fornecedor encerraria uma “empresa espúria e de fachada”, sendo impossível “creditar-se de um posto que nunca existiu”. A nosso ver, tal entendimento se presta tão somente para devolver ao contribuinte que documentalmente comprovou ter realizado a operação comercial a responsabilidade ilimitada e irrestrita de ter contratado com empresa declarada inidônea.
Importante destacar que o Voto-Vista não se furta em fazer referência ao entendimento do STJ e do TIT. Contudo imbuído na intenção de convalidar seu posicionamento, esclarece que, inobstante não ser questionada a boa-fé do contribuinte, o requisito essencial para a confirmação dos créditos glosados não foi atendido na medida em que a “veracidade das operações” não poderia ser demonstrada face à “inexistência fáctica do estabelecimento fornecedor”.
Posto isso, e no contexto do exposto neste artigo, não estaria a Câmara Superior no presente processo reapreciando provas, prosseguisse com o julgamento do recurso especial levado à discussão. Isso porque a análise de provas no tema que por ora se coloca – possibilidade de creditamento de notas fiscais declaradas inidôneas – reside, conforme sólida orientação jurisprudencial, exclusivamente na análise da boa-fé do contribuinte adquirente, matéria superada nestes autos até mesmo pela autoridade fiscal autuante.
Assim, e ao deixar de conhecer o recurso especial do contribuinte, possivelmente a decisão proferida apenas trouxe novamente ao cenário administrativo paulista a possibilidade de se atribuir a responsabilidade objetiva e automática à todos os contribuintes, retrocedendo à aplicação, para estes casos, do art. 136 do CTN.
Autora:
Daniela Cristina Ismael Floriano
Coordenação:
Eurico Marcos Diniz de Santi
Eduardo Perez Salusse
Lina Santin
Dolina Sol Pedroso de Toledo
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[1] Vide artigo da 1ª fase do Projeto Observatório de Jurisprudência do TIT publicado no JOTA sobre o tema: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/observatorio-do-tit-direito-ao-credito-de-icms-30012018