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Comércio exterior

O Brasil sob investigação da Section 301

Enquanto os EUA respeitavam o GATT, era mais fácil lidar com investigações do USTR; essa realidade já não existe mais

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O presidente dos EUA, Donald Trump / Crédito: Reprodução/Casa Branca

No último dia 15 de julho, o representante comercial dos Estados Unidos anunciou[1] o início de uma investigação do Brasil sob a chamada Section 301 da Lei de Comércio de 1974 (Trade Act of 1974 [2]).

O objetivo é determinar se atos, políticas e práticas do governo brasileiro relacionados ao comércio digital e serviços de pagamento eletrônico; tarifas preferenciais injustas; interferência anticorrupção; proteção da propriedade intelectual; acesso ao mercado de etanol; e desmatamento ilegal são irracionais ou discriminatórios e oneram ou restringem o comércio dos EUA.

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A Section 301 refere-se aos artigos 301 e seguintes, do capítulo 1 (aplicação dos direitos dos Estados Unidos sob acordos comerciais e resposta às práticas de comércio exterior) e do título III (resposta a práticas comerciais desleais, daquela lei de 1974).

Eles autorizam o presidente dos EUA a tomar todas as medidas apropriadas, incluindo retaliação tarifária e não tarifária, para obter a remoção de qualquer ato, política ou prática de um governo estrangeiro que viole acordo comercial internacional ou seja considerada nociva ao comércio internacional dos EUA, podendo ser comparado, a grosso modo, com a Lei de Reciprocidade Econômica, Lei 15.122 de 11 de abril de 2025, coincidentemente regulada no mesmo dia 15 de julho, por meio do Decreto 12.551.

O Trade Act surge por iniciativa do presidente Richard Nixon, após sua reeleição em 1972 em um contexto peculiar de expansão da influência norte-americana no comércio mundial. Neste cenário, podemos mencionar a reação estadunidense ao embargo do petróleo que havia sido organizado pelos países da Opep em razão do apoio dos Estados Unidos e de outros países ocidentais a Israel durante a Guerra do Yom Kippur (1973).

Outros pontos relevantes que se podem mencionar é a nomeação de Henry Kissinger para secretário de Estado, os estertores da Guerra do Vietnã e uma insatisfação dos EUA com a incapacidade do GATT de lidar com as disputas sobre barreiras não tarifárias de países (especialmente aqueles em desenvolvimento) opunham aos seus produtos.

Note-se que ao Trade Act seguiu-se o Foreign Corrupt Practices Act (FCPA[3]), ou Lei sobre Práticas de Corrupção no Exterior, promulgada em 1977, proibindo empresas e indivíduos estadunidenses de oferecerem ou pagarem propinas a funcionários públicos estrangeiros para obter ou manter negócios, mas estendendo também seus efeitos a empresas estrangeiras com negócios nos EUA.

Nos dois casos, o que se vê é a possibilidade de os EUA imporem sanções a empresas estrangeiras em um evidente efeito extraterritorial de sua lei doméstica.

Na década de 1990, a Section 301 foi contestada por vários membros da Organização Mundial do Comércio por serem contrárias ao acordo da OMC, mas esta acabou decidindo que:

“À luz dos elementos estatutários e não estatutários das Seções 301-310, em particular os compromissos dos EUA articulados na Declaração de Ação Administrativa aprovada pelo Congresso dos EUA na época em que implementou os acordos da Rodada Uruguai e confirmados e ampliados nas declarações dos EUA a este Painel, concluímos que os aspectos das Seções 301-310 da Lei de Comércio dos EUA apresentados a nós nesta disputa não são inconsistentes com as obrigações dos EUA sob a OMC”.[4]

Diante do anúncio feito pelo representante comercial dos Estados Unidos, cumpre analisar os próximos passos.

De acordo com o Trade Act, na data em que uma investigação for iniciada nos termos da Seção 302, o representante comercial, em nome dos Estados Unidos, solicitará consultas com o país estrangeiro em questão sobre as questões envolvidas em tal investigação. O representante comercial buscará informações e aconselhamento do peticionário (se houver) e dos comitês apropriados estabelecidos de acordo com a Seção 135 na preparação de apresentações dos Estados Unidos para consultas e procedimentos de solução de controvérsias na OMC.

É verdade, como a diplomacia brasileira bem sabe, que enquanto os Estados Unidos respeitavam o GATT era mais fácil lidar com as investigações do USTR, naquele tempo centradas em um ou poucos aspectos e com fundamentação fática e econômica consistente. Essa realidade já não existe mais.

Neste ponto entendemos que as razões apontadas no anúncio da investigação deverão ser propriamente afastadas na medida em que não encontram respaldo fático. Ao contrário, será possível demonstrar que as alegações inseridas no anúncio de investigação não se sustentam e são, na verdade, contrárias à realidade.

Além disso, embora seja necessário articular com a sociedade civil uma resposta firme e clara, os efeitos da investigação não são imediatos. O procedimento tem audiência pública em Washington marcada para 3 de setembro, mas é provável que algum pacote com as medidas que houver ficará para bem depois.

Tome-se a questão do etanol, por exemplo. O anúncio menciona que o Brasil teria abandonado sua disposição de fornecer tratamento praticamente isento de impostos para o etanol dos EUA e, em vez disso, agora aplicaria uma tarifa substancialmente mais alta às exportações de etanol dos EUA.

O fato é que o Brasil, em setembro de 2020, durante o primeiro governo Trump, aprovou, sem qualquer contrapartida, uma cota de isenção tarifária para a importação de 187,5 milhões de litros de etanol dos Estados Unidos. Em 2023 a isenção foi revista e a importação de etanol dos Estados Unidos foi restabelecida em 18%, mesma alíquota utilizada para todos os países que não integram o Mercosul.

Esta tarifa é, de fato, a mais alta aplicada a importação de produtos estadunidenses os quais, em grande parte, contam com tarifas muito menores ou mesmo zeradas (ex tarifários) e justifica-se para a proteção das usinas brasileiras.

Outro ponto de destaque do anúncio da investigação é a questão do desflorestamento que é assim mencionada:

“O Brasil parece não estar conseguindo aplicar efetivamente as leis e regulamentações destinadas a impedir o desmatamento ilegal, prejudicando assim a competitividade dos produtores norte-americanos de madeira e produtos agrícolas”.

Ora, embora seja razoável adotar um parâmetro efetivo de desmatamento, eventualmente mais baixo do que o adotado em lei, isso não pode tornar a agência comercial americana o controlador da aplicação da lei no Brasil, cabe-lhe, no máximo, apontar como o desmatamento efetivamente ocorrido afeta injustamente o comércio.

A terra, um dos fatores de produção, ser relativamente mais barata no Brasil do que nos Estados Unidos é um fato econômico que não decorre, apenas, do eventual desmatamento, mas da efetiva composição de cada economia e, particularmente, das relações desses preços com o dos demais fatores produtivos (trabalho e capital).

O Brasil sabidamente possui uma legislação ambiental e florestal bastante exigente e rígida, mas, como se não fosse isso suficiente, também é palco de várias iniciativas multi-stakeholders para o combate ao desmatamento como são exemplos o Protocolo Verde dos Grãos[5], compromisso assumido em 2014 pela Associação Brasileira das Indústrias do Óleo Vegetal (Abiove) e a Associação Nacional dos Exportadores de Cereais (Anec), com o Ministério Público Federal no Pará, que tem como objetivo viabilizar uma produção sustentável, garantir mercado e segurança jurídica à cadeia produtiva dos grãos.

Bem como fortalecer o CAR como ferramenta de ordenamento ambiental, atender mercados exigentes quanto aos critérios de sustentabilidade e manter a boa imagem do agronegócio brasileiro. E a moratória da carne, acordo estabelecido pelas empresas signatárias de não adquirir soja de fazendas com lavouras em desmatamentos realizados após 22 de julho de 2008 no bioma Amazônia visando eliminar o desmatamento da cadeia de produção da soja.

Observe-se, em relação aos temas afeitos ao agronegócio, haver uma clara dissociação da agenda política de entidades e políticos que apoiam sistematicamente o relaxamento de padrões ambientais e os objetivos do trumpismo, claramente expressos no documento que inicia a investigação.

Nesse caso, para evitar sanções duras e duradouras às exportações brasileiras para os Estados Unidos, é preciso apoiar sistemática e efetivamente – com dados e recursos – a diplomacia oficial brasileira. A diplomacia paralela, amasiada com o radicalismo mais rasteiro, joga contra os interesses de todo o agronegócio brasileiro, não apenas o dos atores social e ambientalmente responsáveis.

O fato é que esta investigação se situa na mesma política externa do governo Trump 2 que vem promovendo as tarifas como medida de coerção comercial e até política. Isso ficou evidente na carta enviada pelo presidente estadunidense ao presidente brasileiro, por meio de uma rede social, no dia 9 de julho. Esta política vem subvertendo os princípios do livre-comércio estabelecidos, desde 1947, com o GATT.


[1] https://ustr.gov/about/policy-offices/press-office/press-releases/2025/july/ustr-announces-initiation-section-301-investigation-brazils-unfair-trading-practices

[2] https://www.govinfo.gov/content/pkg/COMPS-10384/pdf/COMPS-10384.pdf

[3] https://www.trade.gov/us-foreign-corrupt-practices-act#:~:text=Corrupt%20Practices%20Act-,U.S.%20Foreign%20Corrupt%20Practices%20Act,in%20obtaining%20or%20retaining%20business.

[4] WT/DS152/R - United States - Sections 301-310 of the Trade Act of 1974 - Report of the Panel, pág. 350, disponível em https://docs.wto.org/dol2fe/Pages/SS/directdoc.aspx?filename=Q:/WT/DS/152R.pdf&Open=True

[5] https://protocolodegraos.com.br/logo-jota