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Abuso de autoridade

Apenas uma dúvida, se não for incômodo

Em época de caça às bruxas, a ordem do dia elegeu o MP, a polícia e parte da magistratura como as bolas da vez

Sérgio Cruz Arenhart
03/09/2019|07:50
PGR, procurador
Crédito: Antonio Augusto/Secom/PGR

Em uma época de caça às bruxas, a ordem do dia elegeu o Ministério Público, a Polícia e parte da magistratura como as bolas da vez. As homeopáticas e seletivas divulgações de mensagens supostamente envolvendo esses sujeitos, o projeto de lei sobre abuso de autoridade (aprovado à velocidade de papa-léguas na Câmara dos Deputados) e outras várias iniciativas que povoam diariamente as manchetes brasileiras, que ninguém duvide, têm pouca relação com o “bem comum” ou com a preservação dos interesses da sociedade. São, na mais clara expressão da 3ª Lei de Newton, a reação a uma ação até pouco tempo proibida: a ousadia de fazer com que a Lei também fosse aplicada a algumas castas antes intocáveis.

Vende-se a ideia, porém, de um imenso abuso – orquestrado por esses grupos, que se intitulariam de paladinos da Justiça – que precisa ser refreado. A verdade, porém, é que abusos pontuais sempre existiram, aqui ou acolá, mas jamais – enquanto não atingiram alguns segmentos da sociedade brasileira – tiveram a “relevância” para chamar a atenção, seja da mídia ou do legislador pátrio. Noticia-se que agentes do Ministério Público, do Judiciário e da polícia se valem de suas funções públicas para fins políticos, com o exclusivo intuito de prejudicar a este ou àquele grupo e para, assim, direcionar os caminhos de eleições ou o futuro de governos.

Há, porém, nisso tudo, alguns pontos para os quais não atentamos, mas que talvez mostrem que “essa conta não fecha”.

O primeiro deles é a percepção de que Ministério Público, Judiciário e polícia funcionam em um modelo hierarquizado, em que cada sujeito desempenha apenas uma função. Essas instituições funcionam como correntes, em que cada sujeito é um elo, que se agrega a tantos outros para que as coisas funcionem como devem funcionar.

Assim, por exemplo, o Procurador da República tem – por lei – atribuição apenas para atuar nos processos enquanto estes estiverem em 1º grau, na Justiça Federal. Saindo dali – seja porque o processo é encaminhado ao Tribunal, seja porque é remetido por alguma razão à Justiça Estadual – necessariamente outro agente do Ministério Público passa a ter atribuição para o caso, de modo que aquele primeiro perde qualquer possibilidade de interferir no seu andamento. Além disso, inúmeras outras causas (como férias, remoções ou promoções) também podem fazer com que o agente perca a direção do processo, temporária ou definitivamente. Situação semelhante ocorre com o Judiciário.

Diante disso, supor que um ou alguns poucos membros do Ministério Público ou do Judiciário têm – sequer em tese – condições de impactar significativamente o ambiente político soa quase ridículo. A menos que se tenha uma verdadeira conspiração geral, um verdadeiro motim institucional, é praticamente certo que abusos ou excessos praticados em alguma instância serão corrigidos na instância subsequente e que equívocos cometidos nos graus inferiores sejam rapidamente (graças ao fecundo e criativo sistema recursal previsto no Brasil) sanados pelos tribunais superiores. Nesses ambientes, para quem os conhece bem, vale sem dúvida o provérbio de que “uma andorinha só não faz verão”.

Desse modo, parece esquisito que se puna – como pretende o projeto de lei de Abuso de Autoridade – uma única autoridade por prender alguém fora dos casos de lei ou por manter investigações para além dos prazos legais. Se isso ocorre, e sem dúvida ocorre, é por causa de um defeito sistêmico, raramente imputável a apenas um único sujeito.

Ao lado disso, outro ponto também parece ser negligenciado no debate. Ao contrário de advogados, que são contratados por clientes determinados para defender seus interesses, agentes do Judiciário, do Ministério Público e da polícia não estão a serviço de ninguém em específico; servem à sociedade como um todo. Por isso, não têm benefício direto e próprio com a adoção deste ou daquele comportamento. Para ser mais claro: nenhum agente do Ministério Público ganha mais por denunciar ou deixar de denunciar alguém, por propor uma ação de improbidade ou não, por investigar este ou aquele comportamento. Bem ao contrário: ao agir, a única coisa que ganha é, obviamente, mais trabalho! E ao se omitir, mantém sua exata remuneração, sem nenhum incômodo.

É claro que a maioria desses agentes não se importa com essa equação e trabalha – corretamente – porque este é o seu dever. No entanto, ninguém deve ser ingênuo a ponto de supor que, ante a ameça de punições, de perda do cargo e de coisas parecidas, esses sujeitos continuarão com a mesma disposição de agir, mesmo quando necessário. Se a omissão não implica nenhum risco, mas a ação gera a ameaça – que dependerá, como se vê do conteúdo aberto da maioria dos tipos penais previstos pelo projeto de lei de Abuso de Autoridade, da interpretação daquele que aplicará essa lei – eu me pergunto: vale a pena agir?

A situação parece lembrar a fábula da cigarra e da formiga. Só que aqui, a moral da história é outra: o certo é ser a cigarra, porque é para a formiga que o inverno é rigoroso.

Por isso, acho que fica uma pergunta a ser respondida: quando a formiga se acostumar à vida de cigarra, quem vai cuidar das necessidades do formigueiro?logo-jota