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Accountability

Alteração da Lei de Improbidade Administrativa e restrição da legitimidade ativa

PL 10.887/18 pretende excluir legitimidade concorrente dos entes públicos lesados: quais prejuízos da proposta?

código eleitoral, câmara
Crédito: Saulo Cruz/Agência Câmara

O Projeto de Lei no 10.887/2018, que tramita na Câmara dos Deputados, pretende alterar substancialmente a Lei no 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa). Diversas reflexões já foram apresentadas em relação tanto ao texto originário do projeto, como ao substitutivo elaborado pelo relator.

Neste artigo se analisa apenas uma questão específica: em ambas as versões do Projeto de Lei no 10.887/2018 confere-se legitimidade ativa para o ajuizamento da ação apenas ao Ministério Público, excluindo-se a atual legitimidade ativa concorrente por parte da pessoa jurídica de direito público interessada.

De acordo com a proposta, a pessoa jurídica lesada seria tão somente intimada para, querendo, intervir no processo. Naturalmente, na ausência de legitimidade ativa para a propositura de feitos da espécie, tampouco lhe competiria a iniciativa para soluções negociais por meio dos acordos de não persecução cível.

Não parece que a rede de accountability brasileira se beneficiaria da concessão de legitimidade exclusiva ao Ministério Público. Aliás, a multiplicidade institucional para a proteção da integridade foi uma opção adotada pelo constituinte e reproduzida pelo legislador infraconstitucional ao longo do tempo.

Nesse sentido, conferiram-se competências a diferentes órgãos – a exemplo do Ministério Público, dos Tribunais de Contas e dos órgãos de advocacia pública – para, em suas esferas, tutelar a probidade e a moralidade na gestão pública.

A multiplicidade institucional não é fruto de um acaso legislativo, mas sim uma estratégia adotada na tentativa de construção de uma rede de accountability mais efetiva.

Abraçando-se a nomenclatura utilizada por Mariana Mota Prado e Lindsey Carson[1], há pelo menos três potenciais benefícios da adoção desse modelo no que concerne à repressão à improbidade administrativa: a compensação, a colaboração e a competição.

A atribuição de legitimidade a múltiplos órgãos resulta na possibilidade de compensação, que significa que, se uma instituição falhar em desempenhar adequadamente as suas funções – por qualquer razão que seja –, outra poderá suprir (compensar) a sua omissão.

O modelo permite, ainda, a colaboração interinstitucional, com a soma de mais recursos humanos e financeiros dedicados a alcançar uma finalidade pública comum.

Por fim, pode incentivar uma salutar competição entre as diferentes autoridades públicas para o exercício daquelas atribuições, criando incentivos para o aprimoramento da performance de cada um[2].

A Lei no 12.846/2013 é um exemplo legislativo recente em que se reiterou o modelo de controle pautado na multiplicidade institucional. Assim como ocorre na atual Lei de Improbidade Administrativa, conferiu-se legitimidade concorrente ao Ministério Público e aos entes públicos para o ajuizamento das demandas atinentes à responsabilização judicial das pessoas jurídicas infratoras.

Ademais, em esfera federal, atribuiu-se a um terceiro órgão, a CGU, a competência concorrente para instaurar e avocar processos administrativos de responsabilização atinentes àquele diploma.

No mais, com o escopo de melhor tutelar os bens jurídicos sensíveis, em todo o microssistema de tutela coletiva do qual a Lei no 8.429/1992 faz parte, adota-se como regra a legitimidade concorrente entre diferentes atores para a inauguração do processo coletivo[3].

Mais do que isso, o histórico legislativo das últimas décadas retrata um movimento de expansão do número de legitimados para a proteção de direitos coletivos, sendo certo que a probidade administrativa e a moralidade são apenas dois exemplos desses direitos.

Como lembram Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr., essa tendência se iniciou ainda em 1985, com a permissão de que associações promovessem ações coletivas[4].

Em 2007, ampliou-se o rol de legitimados para ações civis públicas, a incluir também a Defensoria Pública. Causa estranheza, portanto, que a proposta em exame caminhe na contramão dessa consolidada tendência, excluindo a legitimidade da pessoa jurídica para ajuizar uma demanda sancionatória em relação ao seu próprio direito lesado.

Ainda que, eventualmente, problemas de coordenação possam advir do modelo de legitimidade plúrima, há outras formas de aperfeiçoar a interação interinstitucional, tais como a celebração de acordos de cooperação ou a incorporação, no direito brasileiro, de soluções semelhantes à conferência de serviços italiana, sem a necessidade de atribuição de legitimidade exclusiva a um único órgão para o ajuizamento de ações por ato de improbidade.

Cabe observar, ainda, que ações por ato de improbidade administrativa vêm sendo efetivamente manejadas, na prática, como parte de políticas de tutela à integridade por determinados órgãos de advocacia pública.

São exemplos de experiências recentes o Grupo de Ajuizamento decorrente de Acordos de Leniência, no âmbito da AGU, e do Núcleo de Contencioso Estratégico e de Defesa da Probidade, da PGE-RJ. Essas iniciativas – que se revelaram exitosas – tendem a ser extintas na hipótese de aprovação da proposta em exame, em potencial prejuízo à defesa da coisa pública.

Na justificativa ao Projeto de Lei no 10.887/2018, sugere-se que a motivação para a proposta examinada seria a de não ser razoável “manter-se questões de estado ao alvedrio das alterações políticas”, indicando-se haver um “viés político-institucional” a ser observado.

Ora, se a salutar preocupação do legislador é a de evitar eventuais desvirtuamentos das ações por improbidade administrativa para fins políticos, uma alternativa intermediária poderia ser cogitada: restringir a legitimidade ativa para o ajuizamento do instrumento, bem como para a celebração de acordos de não persecução cível, aos entes públicos que tivessem órgãos de advocacia pública regularmente constituídos, nos termos do art. 133, CRFB/88.

Assim, evitar-se-ia que a tentativa de cura para um suposto mal identificado pelo legislador resultasse, indevidamente, em um remédio com efeitos nocivos para todo o sistema.


O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:


[1] Convém esclarecer que as autoras versam sobre os potenciais benefícios, em termos gerais, da multiplicidade institucional em estratégias anticorrupção, e não especificamente sobre o regime sancionatório de atos de improbidade administrativa. CARSON, Lindsey D.; PRADO, Mariana Mota. Brazilian Anti-Corruption Legislation and its Enforcement: Potential Lessons for Institutional Design. IRIBA Working Paper, n. 09, July 2014, pp. 08-09.

[2] Idem. Um quarto possível benefício advindo de um desenho de multiplicidade institucional para o enfrentamento da corrupção, na classificação adotada por Mariana Mota Prado e Lindsey Carson, seria a possível complementaridade, que se refere à atuação especializada de uma instituição em uma determinada atividade, complementada pela expertise técnica de outra organização em ação distinta. Esse não é o aspecto primordialmente tutelado quando se adota a técnica de estabelecer a legitimidade ativa concorrente disjuntiva para o ajuizamento de demanda, hipótese em que se valoriza, notadamente, as características de compensação, colaboração e competição.

[3] CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 31ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2015, p. 381.

[4] DIDIER JR., Fredie, ZANETI JR., Hermes. Curso de direito processual civil: processo coletivo. 11 ed. Salvador: Ed. JusPodivum, 2017, p. 217.logo-jota